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4.4 A QUESTÃO DA AUSÊNCIA PATERNA: DESCREVENDO ALGUMAS

4.4.7 Tem a questão do lugar no carro, não tem espaço para duas pessoas

Procurei, durante as entrevistas que realizei com os pais, inserir algumas questões sobre como as dinâmicas institucionais atravessavam a experiência de paternidade. Essas questões envolviam à relação que estabeleciam com os serviços de saúde que atendiam seus filhos e filhas e com dos demais setores das prefeituras e com o poder estadual.

Havia a necessidade de transporte, de acesso ao BPC, da confecção de órteses etc. A família demandava uma relação com o Estado e a forma como essa relação se dava interferia no cotidiano das crianças e das próprias famílias.

Também procurei identificar essa relação através dos encontros que tive com os profissi- onais de saúde. Nas entevistas com esses profissionais havia o questionamento sobre como eles consideravam que a unidade de saúde recebia os pais. A intenção com essas perguntas era identificar se os serviços de saúde eram “amigaveis” aos pais.

Sobre o termo amigável aplicado no contexto dos serviços de saúde, gostaria de fazer uma breve introdução, que rememora a minha aproximação com essa questão aplicada ao tema da paternidade. Para isso vou recuperar um pouco da experiência do Instituto PAPAI com o tema.

O ano era 2013, na época eu fazia parte da equipe do Instituto PAPAI que representava os projetos voltados para a questão da paternidade. No início de março deste ano recebemos na sede da instituição duas servidoras ligadas a um dos hospitais universitários da Universidade de Pernambuco.

Uma delas era assistente social e a outra psicóloga do hospital. A visita era motivada pela campanha “Pai não é visita, pelo direito de ser acompanhante”. A iniciativa, desenvolvida pelo Instituto PAPAI, era voltada a garantia de cumprimento da Lei 11.108 de 2005 e que determina que os serviços de saúde do SUS, da rede própria ou conveniada, são obrigados a permitir à gestante o direito a acompanhante durante todo o período de pré-parto, parto e pós-parto imediato (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005).

Já estávamos acostumados a receber profissionais de maternidades com demandas de oficinas ou palestras, mas aquelas profissionais vinham de um serviço de UTI pediátrica. Elas traziam uma preocupação sobre a forma pouco acolhedora que profissionais da medicina e da enfermagem lidavam com os pais, acompanhantes de crianças que estavam internados na UTI.

Para algumas famílias, o pai era a pessoa mais disponível para cuidar do filho ou da filha doente, mas a presença masculina causava desconforto nas equipes. As alegações eram semelhantes aquelas que barravam os homens nas maternidades: de que os pais não sabiam cuidar de crianças doentes, que a UTI era um espaço de intimidade para as mulheres e que os homens poderiam brigar entre si.

Nos informaram sobre profissionais que tinham dado alta antecipada as crianças em situações em que o pai era o único cuidador disponível. A ideia era adaptar os princípios da campanha, na tentativa de sensibilizar os profissionais a possibilidade de que os homens também podiam cuidar e que isso era uma questão de direito: um direito dos homens e das crianças que

estavam internadas.

Serviços de saúde que se mostravam refratários ao exercício de cuidados protagonizados por homens – incluindo aí os pais – não era uma novidade. Já contávamos com alguma experiência de como a invisibilidade sobre as questões de saúde de determinados grupos em serviços e programas de saúde estava relacionada a ausência dessa população no cotidiano das unidades e serviços.

Em 2005, As organizações não-governamentais ECOS – Comunicação em Sexualidade (São Paulo), Instituto PAPAI e Auçuba (Recife) e Canto Jovem (Natal) com a coordenação da Save the Children, do Reino Unido, participaram da implantação de programas-piloto em unidades básicas de saúde (SAVE THE CHILDREN, 2006), projeto que ficou conhecido como: “Serviços Amigavéis”.

O programa era voltado a ações que envolvesse saúde sexual e reprodutiva e que tornassem aquelas unidades amigáveis aos adolescentes, através de ações que envolvessem a formação dos profissionais de saúde, alterações no ambiente da própria unidade e voltados aos próprios adolescentes que passaram a influenciar no cotidiano das unidades.

O projeto não era voltado exclusivamente para a população masculina, mas foi através dele que produzimos questões e materiais sobre como a estrutura, processos e culturas organizacionais de uma unidade de saúde podem contribuir para que determinados grupos fiquem de fora dos serviços de saúde.

Em 2009, frente as primeiras iniciativas governamentais de criação de programas e políticas institucionais voltadas para as questões de saúde da população masculina, um grupo de ONG e núcleos de pesquisa publicaram “Princípios, diretrizes e recomendações para uma atenção integral aos homens na saúde“ (MEDRADO et al., 2009). No Capítulo voltado para os gestores, as organizações fazem a seguinte recomendação:

Os serviços de saúde devem ser atrativos ou“amigáveis”. Muitos homens pensam que cuidar da saúde é “coisa de mulher”, que as instituições de saúde são espaços de mulher (e de crianças) e que os serviços de saúde devem ser procurados apenas quando a doença já está instalada ou em estágio avançado. Assim, a atenção à saúde precisa, por um lado, promover o acolhimento das necessidades dos homens, em geral e, por outro, ser mais atrativa para esta população, ou seja, não apenas responder a demandas (MEDRADO et al., 2009, p. 47).

É um cenário que nos leva a pensar em como nós, profissionais de saúde retroalimentamos a ideia de um lugar distante aos homens quando lidamos com o tema da saúde e, principalmente do lugar desses homens como cuidadores. Esse foi um dos temas das nossas entrevistas com os profissionais de saúde, em determinado momento da entrevista perguntávamos se eles acredi- tavam que o serviço era adequado e se havia espaços para os homens no cotidiano da unidade. Tanto nas falas das famílias, como nas dos profissionais. Observamos que existiam barreiras práticas, que acabavam impactando no cotidiano de cuidado dos homens e protagonizadas pelas instituições.

Sabíamos que a UPAE havia sido adaptada para o atendimento e reabilitação de crianças, seque que a concepção inicial da unidade não foi pensada para receber crianças em condições

crônicas e suas famílias. Não havia uma estrutura que desse conta da jornada de terapias vivenciadas pelas crianças e que, com frequência, levavam um turno inteiro. A sala de espera era um corredor e no setor dedicado a terapia ocupacional e as fisioterapias eram realizados dois atendimentos simultaneamente.

O espaço era pequeno e foi estabelecida uma norma de que cada criança seria acompa- nhada por apenas uma pessoa:

Ricardo: – Na fisioterapia é permitido só um acompanhante né ?

Eduarda: – Tem essa questão, é uma pena, mas o espaço que gente tem que é muito pequeno e como é um espaço para três atendimentos, se for entrar duas pessoas para cada criança já ia ficar mais tumultuado aí tem essa questão que a gente pede para entrar só um acompanhante e esse acompanhante pode ser o pai ou a mãe, eles escolhem. Geralmente quando vem a mãe e o pai, a mãe entra para um atendimento e o pai entra no seguinte, eles acabam dividindo. E aí nessa questão Pode ser que eles digam “só vai entrar o mesmo então vai você”, poderia ser uma coisa que impedisse também, dos pais participarem mais (Eduarda, 29 anos, Terapeuta da UPAE).

As terapias e processos de estimulação desenvolvidas pelos profissionais de fisioterapia, terapia ocupacional e fonoaudiologia necessitavam de algum tipo de complementação a ser reali- zada em casa. As mães eram cobradas se realizavam ou não esse tipo de “cuidado especializado” o que também é problematizado em relação aos pais:

E aí quando os pais vêm a gente pergunta se ele não teria disponibilidade de vir, ou de um dia vira mãe e no outro dia ele, esses caras que são disponíveis, mas ele disse vamos ver, mas acaba que a gente percebe que não acontece, acontece teve uma ou duas vezes, mas depois de pouco tempo já não vem mais, talvez porque quando ele vem aqui só vejam mães e, talvez achem que não é um ambiente deles, ou talvez por ser uma cultura mesmo de que a mãe que tem que ter o cuidado e o pai outras funções, mas até quando vem alguns e nas reações quando a gente pergunta: “como é que você brinca em casa?” “como é estimulação em casa?” ele sempre relata, a gente não sabe se é verdade, que brincam com as crianças, que tem uma relação boa com criança, mas não sabe se reproduz o que a gente faz as terapias.(Eduarda, 29 anos terapeuta UPAE).

O cenário mais comum era da criança ser acompanhada pela mãe. Das 27 famílias tínhamos três que faziam uma alternância entre pai e mãe durante os atendimentos da criança, com a figura do pai no momento do atendimento.

Uma cena que também era comum, era virem o pai e a mãe para o serviço e o pai ficar esperando a realização dos atendimentos no corredor que fazia a função de sala de espera. Havia uma norma interna da UPAE de que as crianças só poderiam ter um acompanhante no momento dos atendimentos, que quase sempre era a mãe.

A questão da falta de espaço para mais de um acompanhante foi tema das entrevistas com os profissionais. Aqui gostaria de destacar três trechos das entrevistas quando trouxe questões referentes a participação dos pais na dinâmica dos serviços:

Ricardo: – Kaliane, analisando do ponto de vista da estrutura, do serviço da UPAE. Como é que tu vê a presença dos pais, ela é estimulada, dentro do contexto de cuidado aqui dentro, porque a gente vê que poucos pais participam aqui dentro do acompa- nhamento das terapias os poucos que chegam ficam aqui na sala de espera, os pais se sentem convidados, como tu avalia, eles lá na sala de espera e as mães aqui?

Kaliane: – Eu acho que a gente podia acolher melhor eles, sinceramente, porque como a gente tem essa política de só poder ficar um acompanhante, até por conta do espaço físico, quando vem os dois é mais difícil de conseguir fazer a terapia, conversar com o pai, conversar com outro e eles estão conversando entre si e acaba atrapalhando um pouquinho o processo, mas talvez seja um falha nossa até de estar tão acostumado da mãe vir que acontece da mãe vir para a UPAE com o pai e na hora de entrar já entra a mãe com o bebê e a gente nem sabe que o pai tá ai e depois que tá saindo ai a gente vê o pai e sabe que fulano está lá fora, e acaba que eles não participam tanto desse processo terapêutico, de sentar, de mostrar como é que está fazendo assim mais nas reuniões de família, de sentir essa necessidade de trazer os pais para mais perto, na maioria das vezes os pais vêm, o s que não vêm são aqueles que não estão mais tão envolvidos assim (Kaliane, 32 anos, teapeuta) .

Havia, por um lado, o reconhecimento de que os homens faziam falta no cotidiano dos cuidados das crianças, incluindo aí o cuidado mais especializado de estimulação complementar que deveria acontecer em casa.

Em contrapartida, não existia uma cultura organizacional voltada para estimular a parti- cipação desses pais no cotidiano de tratamentos da unidade de saúde. Os homens relatavam o estranhamento que sentiam com os corredores, salas e consultórios da UPAE.

Num dos depoimentos um dos pais contou o momento em que acompanhou o filho nas terapias na UPAE e, por coincidência, estava com os óculos quebrados. O relato ilustra o desconhecimento deste pai com a geografia da unidade. É interessante que no mesmo diálogo sua companheira destaca que aquilo que para ele é excepcional, para ela é o cotidiano:

Leonardo: – E no dia que eu fui eu tava sem meus óculos, tinha quebrado, não tava enxergando nada. Tenho astigmatismo, ai uso quatro em cada olho, eu tentei ir na UPAE e não enxergava nada, a senhora pode ler para mim o que tá naquela porta porque eu não estou enxergando nada.

Luziana: – Ele ainda não pegou a agonia porque te deram carona, agonia era quando eu ia de ônibus, meu Deus eu chegava lá estressada e voltava estressada pra casa, porque além dele querendo ou não ele é pesado, agora é mais pesado ainda né, ai chegava no ônibus era uma coisa nova, ficava todo mundo olhando, perguntando, aí Marcus enjoava muito no ônibus vomitava, ai chegava lá na UPAE tipo morta e quando era para voltar eu já meu Deus do céu, vou ter que aguentar tudo de novo para voltar tudo de novo (Leonardo e Luziana, pai e mãe de Marcus).

A ausência dos pais nos atendimentos da unidade de saúde é explicada tanto pelo machismo como pelos mecanismos institucionais que reforçavam o distanciamento dos pais. Os próprios profissionais relatam num tom crítico que é esperado por parte das mães que elas exerçam o cuidado das crianças e que os pais ficariam com a responsabilidade de provimento da casa.

A falta de espaço para os homens no cotidiano da unidade é racionalizada dentro de uma questão mais ampla: a de que toda a unidade não foi pensada para atender pacientes da pediatria ou garantir um apoio para os seus familiares. A unidade carecia de uma sala de espera adequada e de um espaço que as famílias pudessem dispor para descansar e realizar suas refeições.

Se destacava, porem, que esses eram problemas gerais ao serviço, e que não se consti- tuíam em impedimento para que as mulheres deixarem de vir e trazer os seus filhos e filhas,

dando a impressão de que as mulheres seriam mais resilientes (ou resistentes) ao desconforto do serviço, pois no final, independentemente da estrutura oferecida elas viriam com suas crianças:

Ricardo: – Helena, você acredita que o serviço é amigável para os homens?

Helena: – Não, eu acho que devia ter um apoio maior para família, em geral, eu acho que tinha que ter um espaço, um ambiente, para elas, para trocar fralda, para fazer um leite, ter um cantinho para sentar. Como foi o ajeitado para elas virem para cá, não foi pensado, pensaram na inclusão de Terapias, mas não pensaram na assistência às famílias. Imagina você sair do seu município pegar um carro às 5 horas da manhã, vim para cá, sentar numa cadeira, não poder dar comida para criança no corredor, porque não pode, mas também não tem o canto que possa, ter que ir lá para fora para o sol para fazer isso, eu acho que peca, mas não cabe a gente, infelizmente, a gente diz faz uma listinha, se mobilizem. A gente levanta em reuniões para ter um fraldário, mas não é a mesma coisa, talvez estivesse no espaço que pudesse incluir o pai, no carro também, vem um carro com três mães e três crianças, qual é o espaço do pai? o próprio transporte não favorece, Então como é que a gente vai pedir para vir o pai. Ele tem dinheiro para vir de ônibus? Então tem outras questões para se avaliar, é muito fácil falar de pai não vem, às vezes ele não tem segurança de vir com a criança sozinho, e se acontecer alguma coisa? para eles infelizmente ainda é a mãe, ela é a base, ou felizmente, não sei (Helena, 28 anos, terapeuta UPAE).

A questão que envolvia a estrutura de acolhimento da unidade era antecedida por outro elemento, que era o transporte de casa para o serviço de saúde e o retorno para casa. As famílias que moravam em municípios do entorno utilizavam o Tratamento Fora do Domicílio (TFD), cuja gestão ficava a cargo das próprias prefeituras. As famílias de Caruaru circulavam internamente em veículos do programa “PE Conduz” – vinculado a Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude (SDSCJ) – responsável pelo transporte de pessoas deficientes.

Os veículos utilizados no TFD garantiam, por força de lei, a presença de um acompa- nhante, cabendo a família decidir quem iria seguir com a criança durante o tratamento.

As cidades mais distantes de Caruaru tinham como prática trazer quatro famílias por carro, as crianças viajavam no colo das mães (sem equipamento de proteção) e com as cadeiras, carrinhos e bolsas no porta-mala. Em janeiro de 2019, duas crianças com síndrome congênita do Zika vírus, vindas de Sanharó, ficaram feridas em um acidente na altura de Caruaru (G1 CARUARU, 2019). A qualidade do transporte e os riscos impostos as famílias passaram a ser motivo de reivindicações e denúncias a imprensa local.

No dia a dia de tratamento os homens permaneciam em casa e as mulheres seguiam com as crianças, a exerções se davam apenas nos momentos de reunião com a família ou de intervenções com um grupo maior. Os pais que encontrei acompanhado os atendimentos foram Armando, Neto, Shan e Geraldo, todos os homens que tinham transporte próprio:

Ricardo – Estamos falando um pouquinho sobre o cotidiano de Josenildo lá na UPAE, você já foi lá na UPAE?

Fabrício – Fui. . . Frequentava de primeira, no começo eu acompanhava. Às vezes quando eu queria ir, mas tem a questão do lugar no carro, não tem espaço para ir duas pessoas.

Ricardo – Esse carro é só para as crianças que tem microcefalia?

Alba – Não, ele vem com outras pessoas. Gente daqui dos sítios, de Pau Santo de Brejo das Palmeiras.

Fabrício – Ai de lá ele já vem cheio e ai só tem espaço para um. Ricardo – E pra Recife você já foi alguma vez com ele? Fabrício – Não (Fabrício e Alba, pai e mãe de Josenildo).

Em três anos convivendo com a rotina de tratamento de seus filhos as famílias acabaram se re-organizando. As mulheres ao não voltaram aos seus empregos e se tornaram mães em tempo integral. Aconteceu algo semelhante aos homens que adotaram uma posição mais inflexível de provedores financeiros.

Nas famílias em que observamos uma flexibilidade nestes papéis, um elemento que se destacava era o fato desse homem ter um emprego estável e com carteira assinada, o que trazia algumas garantias. Outra possibilidade era ter uma família extensa que garantisse uma rede apoio ao casal. Era essa rede de apoio familiar que possibilitava que o casal encontrasse algum espaço na sua rotina para desenvolverem atividades diferentes de cuidar do filho ou filha.