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Uma das primeiras dimensões que alimentava o meu interesse no campo era o próprio cotidiano de cuidado das crianças com SCZV. O cuidado com crianças com deficiências graves já é descrito nos meios de comunicação e em textos acadêmicos. Contudo, no caso das crianças com SCZV havia algumas diferenças, pois eram crianças que de certa forma foram publicizadas, pais e mães tinham experiência de prestar várias entrevistas e tinham na agenda do celular os contatos dos repórteres da região. A confirmação do diagnóstico de Fátima, por exemplo, foi registrada ao vivo e divulgada em rede nacional:

Ricardo:–Vocês já foram entrevistados pela TV Asa Branca1? 1 Afiliada local da Rede Globo de Televisão

Vânia:–Já, umas oito. G1, Fátima Bernardes, fomos uma das primeiras que deu entrevista, quando recebi o laudo da microcefalia foi ao vivo, no (Hospital) Mestre Vitalino. Ela sempre saiu. Camila (reporter) que tava com ela, que tudo ela fica vermelha.

Ricardo:–Já entrevistaram o senhor também,

Fábio:–Claro, aqui em casa foi três ou quatro, veio Anderson, veio Amanda Dantas. Ai depois fomos pra UPAE e no INSS e foi através de Anderson que eu consegui o benefício dela, foi através da TV Asa Branca. Chegou lá o diretor disse que vai pra perícia agora e quando passou concedeu a perícia. Sabe o que ela falou pra mim e disse não tem o questionar não, não tem nem o que questionar, ela só olhou bateu os papel e pronto (Vânia e Fábio, mãe e pai de Fátima e residentes na zona rural de Caruaru). Outra questão que envolvia esse cuidado cotidiano era o tempo. Não o tempo dedicado a um dia de cuidado, mas o tempo que se traduz passar dos meses e anos. Um tempo marcado por uma rotina de cuidado sem grandes perspectivas de mudança. Um dos elementos destacados pelos profissionais de saúde era de que havia uma circulação entre os profissionais, terapeutas se desligavam do serviço e outros eram admitidos, mas as famílias permaneciam: “A terapeuta Ocu- pacional recebeu uma proposta melhor de trabalho e sai da UPAE, depois é a fono e elas vão ficando“ (Fernanda, terapeuta, 30 anos).

No momento da nossa pesquisa as crianças tinham completado ou estavam em via de completar três anos. Temas como o momento do diagnóstico, as dúvidas sobre o que seria a microcefalia e a síndrome congênita do Zika Vírus chegam até nós através de processos de recordação e reflexão. O momento é outro, fala da adaptação e da construção de uma vida cotidiana e familiar com uma criança maior e que ainda necessita de cuidados diários.

Cuidar de uma criança com Síndrome Congênita do Zika Vírus traria algum tipo de especificidade? Nesse caso foi importante trazer a experiência dos terapeutas que trouxeram a percepção deles sobre esse quadro específico, quando eu perguntava como eles percebiam a SCZV em comparação com outras síndromes ou patologias.

Havia uma compreensão de que o quadro observado era diferente de outras situações de saúde que também apresentavam a microcefalia como sintoma:

Carla: – Bem difícil, micro (microcefalia) já existia, inclusive eu tive uma irmã com micro e as características que eles apresentam são muito diferentes. É muito difícil eles apresentarem alguma evolução de verdade. Eu me pergunto até quando eles vão conseguir sobreviver, são muito, muito graves, quando a gente vai para a parte de exames, a gente até pensou em explicar essa parte do cérebro, massa tal, mas é muito complexo e quando a gente vai para a parte de exame e vê que falta muito coisa e a evolução que eles vão ter é pouquíssima (Carla terapeuta, 25 anos).

Yuri – A micro se aproxima, chega mais perto a paralisia cerebral de um nível mais grave, mas ainda é mais grave que a paralisia cerebral de um nível mais grave. Ela não tem nada a ver com as microcefalias antigas (Yuri, terapeuta, 27 anos).

A referência que passa a ser a mais presente é de que as crianças com síndrome congênita de Zika Vírus vão apresentar alguma semelhança com crianças portadoras de Paralisia Cerebral, mas que se apresentariam ainda com um comprometimento motor e cognitivo mais severo. Além de apresentar outras complicações:

Eduarda: – Por mais que seja muito semelhante com a paralisia cerebral, existe um fator cognitivo que é mais forte, que eu percebo que é mais comprometido do que na paralisia cerebral, porque na paralisia cerebral tanto faz ter o cognitivo comprometido, mas a maioria não tem e na síndrome congênita, a grande maioria, tem o cognitivo comprometido e comprometimento severos. Então muitas vezes eu fico pensando se esse comprometimento motor não seria tão mais grave devido comprometimento cognitivo deles, porque quando uma criança não tem interesse em pegar alguma coisa, entender uma função, muitas vezes ela não vai agir naturalmente porque ela não tem aquela função cognitiva, Então por mais semelhante até onde eu conheço seria com paralisia cerebral, mas seria um quadro mais grave assim, tanto em questão motora como em questão cognitiva em relação à paralisia (Eduarda, terapeuta, 29 anos). Kaliane: – Eles são tipo um PC muito grave, né. Como eu te disse eu atendia crianças com síndrome de West, que tem essas características com convulsões, de especificidade, de espasmos e que a maioria vem com a paralisia cerebral, é uma casadinha, mas esses da síndrome congênita do Zika Vírus são muito diferente, eu atendia uma criança na época, veja hoje o menino tá com 8 anos, mas anda, não oralizou, não fala, mas compreende comandos simples, se alimenta por via oral e são perspectivas que hoje eu não consigo ver muito claro para as crianças da síndrome congênita do Zika Vírus (Kaliane, terapeuta, 32 anos).

Frente um quadro ainda com muitas dúvidas as mães e pais elegiam “eventos-chaves”, que eram destacados nas narrativas sobre a história de seus filhos e filhas. Eram eventos referentes ao nascimento e momentos de destaque como cirurgias e implantação de sondas.

O nascimento da criança acontecia num contexto de vida do casal. As mulheres falavam dos projetos de retorno ao trabalho ou aos estudos após o tempo de licença, ou amamentação, mas que o nascimento da criança implicou abandono ou adiamento dos planos. Eventos que iriam desencadear naquilo que o sociólogo da saúde Michael Bury, nomeou como ruptura biográfica (BURY, 1982).

Estudando a experiência de pacientes crônicos, Bury conceituou a ruptura como um fenômeno desencadeado por eventos de saúde que provocariam descontinuidades nas formas de viver e que seriam expressas em narrativas, situações críticas que atravessavam a experiência. 4.1.1 Crianças raras e crianças com “micro”

No decorrer da pesquisa de campo tive contato com outras famílias que tiveram filhos com microcefalia causada por outros fatores. Algumas encontrei nos serviços de saúde e outras mantive contato pela “internet”. Eram famílias que tiveram filhos acometidos por rubéola, sín- drome de Dandy Walker (que mesmo não sendo microcefalia trazia uma série de deformidades cerebrais que impactavam no desenvolvimento da criança e que podiam também culminar em convulsões) ou síndrome de West. Essas famílias reclamavam que a experiência pessoal de cuidado dessas crianças era muito semelhante a vivenciada pelas famílias com SCZV.

Havia uma diferenciação entre as crianças com “micro” e as crianças “raras”. Isso implicava inclusive uma diferenciação no acesso a direitos e serviços especializados. Um con- trassenso real aos princípios dos SUS de equidade, universalidade e integralidade. A repercussão dos casos de SCZV na sociedade e a organização das famílias em associações poderia ajudar a

explicar o fato. Ao mesmo tempo, que a própria repercussão e a organização das famílias em forma de pressão foi o que permitiu que serviços de referência em reabilitação infantil fossem criados, hoje esses serviços atendem crianças com outras síndromes ou patologias. Essa diferen- ciação entre as famílias com SCZV e as demais famílias com crianças portadoras de “doenças raras” foi também abordada pela equipe do FAGES- UFPE que documentou essa questão no cotidiano das famílias:

Enquanto as demais famílias de crianças raras pareciam estar vivendo um certo iso- lamento. A nossa observação identificou que essas características distintas entre as “raras” e as “micro” são um ponto de tensão entre as próprias participantes do grupo. As mães “raras” sentem que os problemas experimentados por elas ao longo dos anos têm sido negligenciados, e que isso não produziu uma reação maior por parte da sociedade, em geral, e, especialmente por parte do Estado. Contudo, também há o reconhecimento, por parte tanto das mães e famílias raras, de que seus problemas passaram a ter maior visibilidade com a condição experimentada pelas mães e famílias de “micro”, que depois ganharam o nome “técnico” como vítimas da SCZ (SCOTT et al., 2017, p. 78).

Lembrei de debates que presenciei em congressos e encontros entre as pessoas vivendo com HIV/Aids e os portadores de hepatites virais, quando os últimos questionavam o volume de recursos voltados para a Aids se comparado aos destinados para outras enfermidades. Com a sucessão dos eventos, por pressão dos grupos organizados, as hepatites virais passaram a ser integradas aos congressos de Aids como eventos paralelos, mas a diferença de visibilidade permanecia. Algo semelhante acontecia entre a SCZV e as demais “doenças raras”. Acredito que não deveria repetir essa diferenciação na minha pesquisa, já que não conseguia ver diferença na experiência que me era relatada por Camargo (pai de Rafaela que tinha uma microcefalia motivada por causas ainda desconhecidas) de tantas outras que havia escutado das famílias com crianças com SCZV.

4.2 ONDES ESTÃO OS HOMENS (E AS MULHERES) NUMA UNIDADE DE REABILI-