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4.5 PATERNIDADES E TRANSFORMAÇÕES

4.5.4 O cuidado especializado e o direito a creche

O tema da creche e da educação infantil foi se tornando cada vez mais sensível na cidade de Caruaru. Em setembro de 2019 o Ministério Público de Pernambuco estimava um “deficit” de 4000 vagas nas creches do município (MIRANDA, 2019). Apesar da legislação garantir o direito a matrícula a partir dos seis meses o acesso às creches ainda era uma realidade distante para as famílias de Caruaru.

Enquanto a educação formal apresentou um contínuo de crescimento as creches brasileiras sempre se desenvolveram de forma instável. As creches não eram alvos da mesma importância dada a escola regular. Uma família que deixasse seus filhos fora da escola seria passível de punição, mas o mesmo não se daria com uma criança foram da educação infantil. As creches eram consideradas um mal menor, algo que seria imprescindível para as mulheres que trabalhavam fora de casa, mas que carecia da qualidade do cuidado desenvolvido pelas mães (ROSEMBERG, 2013).

O direito a creche respondia várias questões vivenciadas pelas famílias. Possibilitava que as mães voltassem ao trabalho e ao estudo, desenvolvendo atividades que iriam além do cuidado do filho ou da filha. Ao voltarem ao trabalho impactavam na renda familiar e diluiriam a pressão provedora exercida sobre os homens.

A garantia do direito a creche seria uma forma da sociedade, solidariamente, compartilhar os cuidados destinados aquela criança. A figura de um cuidador profissional e remunerado, seria uma mínima resposta esperada por um Estado que baseia suas diretrizes da Assistência Social na promoção da cidadania e no enfrentamento das desigualdades sociais (BRASIL. MINISTÉ- RIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 1993).

Mas a questão da qualidade do atendimento era algo que preocupava as famílias. Os Centros Municipais de Educação Infantil (CMEI) que deveriam substituir as antigas e precárias creches de bairro ainda eram uma realidade distante para a população pobre de Caruaru. Um problema que não é de hoje, em 1996, a pesquisadora Fúlvia Rosemberg fez uma reflexão sobre o tema e que infelizmente ainda é um retrato da atualidade:

Os equipamentos públicos de educação infantil são usados por crianças pobres. Há al- gumas evidências de que quanto mais podre, mais cedo, mais tempo a criança frequenta equipamentos de educação infantil e que são justamente os de pior qualidade (ROSEM- BERG, 1996, p. 64).

No início de julho de 2018 estive em uma reunião realizada entre a secretaria de educação e da mulher de Caruaru e as famílias com crianças com SCZV. A secretaria da mulher abordava a questão da geração de renda e a secretaria de educação a demanda das famílias por matrículas nas creches municipais.

Foi nos informados pela gestão de que Caruaru contava com 881 crianças cadastradas na secretaria de educação e que tinham algum tipo de deficiência, mas que até aquele momento, a gestão não havia sido demandada por nenhuma família de criança com síndrome congênita do Zika vírus. As famílias reagiram e questionavam se as creches estariam preparadas para receber crianças com condições tão complexas.

Sobre a questão da creche Iran disse que Cibele não vai pra creche, que no próximo ano ela vai para a escola. E muitas mães estão inseguras da creche porque estão vendo muito caso e como eles são especiais vão deixar eles lá jogados, deles ficarem assados, ou passar da hora de comer, ou eles terem uma crise e elas não saberem. É mais vai ter cuidadores, mas não vai ter cuidadoras para cada um deles, então a maioria das mães não quer isso (Marta, mãe de Cibele).

Havia o questionamento de que, devido à complexidade das crianças, haveria a demanda de contratação de novos cuidadores e de que às mães poderiam ser contratadas para assumir essa função, o que ajudaria a resolver às duas demandas que motivaram a reunião, que seria a presença das crianças nas creches e escolas da cidade e a garantia de uma renda mínima para às mães.

As gestoras da educação especial que compareceram a reunião informaram que não tinham gerência sobre as contratações do município, mas que levariam a demanda das famílias para seus superiores.

Durante a realização da pesquisa, em vários momentos, tematizamos a questão das creches e da educação infantil com os pais e as mães. Em um dos nossos encontros Leonardo e Luziana trouxeram a discordância do casal sobre a possibilidade de matricular Marcus numa das creches da prefeitura de Caruaru. Agora, a qualidade da creche é colocada em xeque por Leonardo:

Ricardo: – Então Marcus não está na creche?

Leonardo: – Graças a Deus não, ela tem uma opinião sobre isso e eu tenho outra, sinceramente eu prefiro o meu filho, infelizmente eu sei que pra ela seria bom, tudo mais, mas infelizmente eu prefiro mil vezes meu filho longe dessas creches certo, porque me diz uma coisa, em casa, meu filho vai ter eu e minha esposa que gosta dele, sabe.

Luziana: – Mas não é questão de “eu quero”, que vai ser bom pra mim que eu vou ficar a tarde em casa, a questão de que Pedro precisa ser inserido na cidade, acho que as crianças também precisam ter esse contato com ele.

Leonardo: – Eu não confio inserir uma (criança) feito Marcus em uma escola particular que é paga pra fazer aquilo quanto mais numa pública, eu não confio, porque eu juro

a você, se um dia eu chegasse numa escola pública e acontecesse um problema com Marcus, uma professora tratou ele mal, eu voava no pescoço dela, juro a você, eu voava no pescoço dela, tá entendendo, porque uma (criança) feito Marcus você trata ela, com carinho e com respeito, não que ela seja melhor que as outras crianças, o que às vezes (Marcus) tira eu e Luziana do sério que é pai, imagine um estranho, um desconhecido, então sinceramente, prefiro mil vezes ele aqui comigo, do que tá numa creche onde eu sei que pode acontecer, há uma grande chance de acontecer de ele ser mal tratado, porque a gente tá falando não de escola particular, a gente tá falando de pública (Leonardo e Luziana, pai e mãe de Marcus).

As representações da UMA em Recife e Caruaru tentaram pautar a questão das creches em momentos posteriores. A intenção era mobilizar as famílias para que fizessem as matrículas na rede municipal de modo a garantir as vagas para seus filhos e filhas, mas essa resposta acabou não acontecendo. Apenas as famílias de Cibele e Marcus procuraram a gestão buscando informações sobre as creches e a educação infantil. No início de 2019 apenas Cibele estava frequentando uma instituição de ensino no turno da tarde numa pequena escola particular no bairro do Salgado.

A figura da mãe se tornava o resultado de um processo de hiper-especialização de cuidados. A medida que adquiria os conhecimentos para a realização de um cuidado complexo, passava a ser imprescindível para o bem-estar e a sobrevivência da criança que essa mãe estivesse integralmente ao seu lado.

A necessidade de cuidados integrais e carência financeira da família direcionam pais e mães para polos na lógica de cuidado de seus filhos. Essa especialização criava também um empecilho para os processos de institucionalização das crianças em creches e na educação infantil.

Apesar das promessas feitas pelos gestores não havia vagas suficientes nas creches municipais que atendessem a demanda das crianças de Caruaru. A inexistência de uma estrutura adequada e profissionais suficientes e capacitados também significava que mesmo que houvesse uma vaga não haveria a garantia de que aquela criança fosse adequadamente acolhida.