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4.5 PATERNIDADES E TRANSFORMAÇÕES

4.5.3 Homens: O cuidado em casa e o cuidado na rua

4.5.3.1 O Cuidado noturno

No nosso trabalho não havia a intenção de mensurar as atividades de cuidado exercidos pelos pais. A vivência cotidiana era muito complexa para imaginar que poderíamos medir a relação de cuidado através de um check-list de atividades realizadas e de sua frequência. O que buscávamos era compreender como a dinâmica de cuidado se estabelecia na vida do casal, que estratégias foram desenvolvidas ao longo desses três anos e de como essas saídas poderiam ser lidas através de lentes ancoradas nos estudos de gênero.

A medida que abordávamos as atividades de cuidado com as crianças dentro do lar, nos chamou a atenção a quantidade de relatos dos pais que destacavam a rotina noturna e, em destaque o sono das crianças. A hora de dormir surgia como um espaço de cuidado desses homens com seus filhos e filhas. Algumas mães, durante as sessões de fisioterapia, mostravam gravações dos pais cantando ou conversando com a criança. Essas gravações eram usadas quando os pais precisavam viajar ou demoravam a retornar do trabalho.

Em alguns momentos essa presença ao dormir era relatada de uma maneira que dava a entender de que havia um ciúme entre a criança e o pai. Rita que se encontrava num outro relacionamento trazia a questão da convivência da filha com o padrasto: “Ele cuida dela, Ela só dorme com ele. . . acho que gosta mais dele do que de mim”. Frase semelhante foi usada por Vânia ao se referir a relação do pai com a filha: ”Passo o dia todo levando ela pros médicos, mas ela é mais apegada com ele“.

Durante os atendimentos as mães pegavam o celular e mostravam fotos de interação entre as crianças e os pais e destacavam as fotos em que elas apareciam dormindo com os pais em camas ou redes. Confesso que gostaria de reproduzir essas imagens, mas vou me contentar em trazer algumas falas, enunciadas pelas mães e pelos próprios pais:

Antes mesmo da minha filha nascer a minha mãe comprou muitas roupas e mandou muitas roupas da China. A minha família é toda da China. Eu passo a noite toda com ela, para ela fica mais calma, ela dorme abraçada com a gente (Shan, pai de Bruna de oito meses).

Até comida pastosa ele dava, ela é muito apegada com ele. Eu que corro pros médicos, mas ela é mais apegada com ele, mas só dorme comigo, mas quando ela está nos estresses dela, ela só dorme no peito dele, aqui na sala, porque os quartos são muito pequeno. Tem que dormir junto porque essas convulsões dela só acontecem a noite e eu percebo pela respiração. Mas quando ela tá muito nervosa, sentido a falta dele, ela só dorme no peito dele (Vânia, mãe de Fátima de três anos).

Mas hoje em dia, graças a Deus, Marcus está muito, muito bem, comparado a logo os primeiros meses de vida dele, ele tá ótimo maravilhoso, entendeu, só dorme no meu colo (Leonardo, pai de Marcus de três anos).

Quem bota ela geralmente a noite para dormir é ele ai se ela não ver ele durante o dia ela tem febre emocional.(Marta, mãe de Cibele)

Neto, pai de Fabrício me explicava que o filho tinha necessidade de movimento quando dormia, que deixá-lo sozinho numa cama ou berço era a certeza de que ele acordaria chorando, por isso preferia dormir com o filho numa cadeira de balanço ou numa rede.

As crianças apresentavam dificuldade em estabelecer uma rotina de sono. Em parte por causas ligadas diretamente a síndrome congênita como os espasmos, convulsões e dificuldades respiratórias que se somavam a administração de anticonvulsivantes que alteravam o ciclo de sono e vigília das crianças.

Era comum que as crianças fizessem uso de medicamentos benzodiazepínicos, numa tentativa de estabilizar o padrão de sono. Havia também períodos de inversão nos ciclos de sono-vigília quando a criança ficava alerta a noite e dormia durante o dia:

Tem período também que ela fica trocando, dorme o dia todinho quando é a noite, a gente tem que passar o plantão com ela a noite e no outro dia trabalhar com sono, agora eu já percebi que ela não entende o que a gente está fazendo, ela não sabe o que é dia ou o que é noite direito, tem dia dela passar o dia todo nessa cama ai, todo dia no barulho e dormindo, quando é a noite que tá o silêncio, ela acorda e não dorme mais (Camargo, pai de Rafaela).

Mas o uso dos benzodiazepínicos e dos anticonvulsivantes requeria um monitoramento constante para não “dopar” a criança. Esse era um tema que causava tensões entre as famílias e os neuropediatras. Ao aumentar a dose para garantir o controle das convulsões era comum que a criança se apresentasse letárgica nas terapias.

Essas coisas toda e ai a gente tenta fazer o que dá pra fazer sem exagerar tanto e só o fato de a gente não deixar, por exemplo, ele ficar chorando na cama ou dar a ele medicação mais forte, porque muitas crianças tomam medicação que ela vai passar metade do dia apagada então essa criança não vai interagir nesse tempo ela só vai estar dormindo para os pais pode até parecer bom, vai dar até mesmo para descansar, assistir um filme, e a gente não procura isso para Fabrício, a gente prefere tá o tempo todo distraindo ele, levando ele pra brincar, tá com ele no braço, do que deixar ele tomando medicamento e deixar ele dormindo tempo todo e a gente ter tempo para fazer alguma coisa, não sei acho isso talvez até esteja ajudando ele no desenvolvimento cognitivo dele não sei (Neto, pai de Fabrício).

As questões do sono da criança impactava diretamente na qualidade de vida de pais e mães. A sonolência diurna era presente tanto nas mães como nos pais que frequentavam a UPAE. A percepção de cansaço também surgia nas falas dos profissionais:

Aqui para ser bem sincera, vejo guerreiras, eu já me deparei com situações assim de cansaço, observo muito cansaço. Principalmente das mães que são só e se equilibram todo dia, desde o amanhecer, que dorme e acorda naquele rojão direto, mas só o cansaço (Laura, terapeuta UPAE, 40 anos).

A relação entre a sonolência diurna e os riscos de acidentes automobilísticos (CUNHA et al., 2015; MARTINS et al., 2013; BITTENCOURT; VEGAS, 2011) e de trabalho (SOUZA et al., 2008) já é bem reportada Quando olhamos para o cotidiano de pais e mães observamos um cotidiano de longas jornadas de trabalho que pode ser em casa, cuidando da criança ou fora para garantir o sustento da família.

Essas longas jornadas de trabalho eram sucedidas por pequenos períodos de descanso, pois, o padrão de sono do pai e da mãe é afetado pelo padrão de sono das crianças. O que traz a tona uma possível correlação entre o cansaço e os acidentes de trânsito e trabalho que foram relatados durante a realização da nossa pesquisa.

A sonolência diurna já é tema de investigação com profissionais do cuidado (SOUZA, 2007) e com cuidadores de crianças com paralisia cerebral. Além dos riscos ligados a acidentes de transporte e utilização de máquinas de precisão, a sonolência também impacta na saúde mental dos cuidadores, sendo associadas a depressão, ansiedade e aumento de agressividade (RO- DRIGUES, 2011; MARX et al., 2011).