• Nenhum resultado encontrado

Já situamos os nossos estudos sobre paternidade e masculinidades dentro de uma perspec- tiva feminista e de gênero. É essa perspectiva que orientará a nossa pesquisa em seus aspectos epistemológicos e metodológicos, mas é importante que tragamos também essa perspectiva teórica e metodológica discutindo as contribuições do feminismo no debate atual sobre o modelo social da deficiência.

Até a apresentação do modelo social de deficiência, tínhamos como voz hegemônica o modelo biomédico de compreensão da deficiência (AMIRALIAN et al., 2000). Para esse modelo a deficiência era o fruto de uma lesão que gerava comprometimentos a funcionalidade da pessoa, dentro do que era considerado “normal” para dada faixa etária e baseado num conceito de irreversibilidade.

De forma semelhante aos esforços da Organização Mundial de Saúde em estabelecer uma classificação mundial de doenças que permitisse a comunicação entre profissionais de saúde de diferentes países e idiomas. Em 1976 a OMS publicou a International Classification of Impairment, Disabilities and Handicaps (ICIDH), traduzida para o português como Classificação Internacional das Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (CIDID). (FARIAS; BUCHALLA, 2005). Nesta classificação a deficiência seria definida através de “perda ou anormalidade de estru- tura, ou função psicológica, fisiológica ou anatômica, temporária ou permanente” (AMIRALIAN et al., 2000).

A deficiência falaria de alterações biológicas, psicológicas ou físicas que comprometem uma vivência plena do indivíduo. É essa visão biomédica que baseará os dispositivos legais que versam sobre a deficiência e sobre a atuação do Estado perante o deficiente. Um bom exemplo, é a definição operacional de deficiência contida no decreto que institui a política nacional de inclusão da pessoa com deficiência como: “Toda perda ou anormalidade de uma estrutura, ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade dentro do padrão considerado normal para o ser humano” (BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008, p. 6).

A presença de deficiência que gere a impossibilidade para a realização de funções laborais é passível segundo a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS, que garante a título de renda mínima O BPC – Benefício de Prestação Continuada, no valor de um salário para as pessoas deficientes todas as idades e idosos, que comprovem a impossibilidade de se manterem (BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, 1993)5. No Estatuto da Pessoa com Deficiência, promulgado em 2005 a “Deficiência seria uma condição devida as incapacidades biológicas irreversíveis que resulta na incapacidade para o trabalho ou para a vida independente (BRASIL, 2015).

A hegemonia do modelo biomédico de deficiência não é uma exclusividade da realidade 5 O Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Foi criado em 2004 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi responsável pelas políticas nacionais de desenvolvimento social, de segurança alimentar e nutri- cional, de assistência social e de renda de cidadania no país. Era também o gestor do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS). No dia primeiro de Janiero de 2019, durante o governo, Jair Bolsonaro a pasta foi extinta e suas atribuições incorporadas ao Ministério da Cidadania, juntamente com o Ministério do Esporte e da Cultura (BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2019).

brasileira e a crítica a esse modelo parte justamente da organização de acadêmicos (europeus ou norte-americanos, deficientes e professores universitários) que passaram a denunciar o processo de exclusão e tutela vivenciado pelos deficientes:

Os estudos sobre deficiência tiveram início no Reino Unido e nos Estados Unidos em inícios dos anos 1970. Assim como no feminismo, nos estudos sobre deficiência, teoria e política andaram juntas desde o início. Eram deficientes, na sua maioria homens institucionalizados por lesões físicas, inconformados com a situação de opressão em que viviam, que iniciaram a estruturação do campo (DINIZ, 2012, p. 1).

Esses pesquisadores e ativistas empregavam uma analogia entre o processo de exclusão vivenciado pelos deficientes e vivido pelas mulheres através do sexismo foi utilizado como uma ferramenta para convencer a opinião pública de que a causa da deficiência não seria a lesão, mas a intolerância da sociedade em lidar com corpos diferentes (DINIZ, 2007). O processo de construção do modelo social da deficiência trazia para o primeiro plano a voz e o protagonismo dos deficientes e no processo de produção de conhecimento e de ativismo político, evidenciando como ordenamentos sociais excludentes são as verdadeiras causas da opressão e não a lesão:

De modo geral, o modelo social da deficiência, em oposição ao paradigma biomédico, não se foca nas limitações funcionais oriundas de deficiência nem propõe a ideia tão comumente aceita da necessidade de reparação/reabilitação do corpo deficiente, mas sim a concebe como o resultado das interações pessoais, ambientais e sociais da pessoa com seu entorno. Nesse sentido, as experiências de opressão vivenciadas pelas pessoas com deficiência não estão na lesão corporal, mas na estrutura social incapaz de responder à diversidade, à variação corporal humana (MELLO; NUERNBERG, 2012, p. 638).

A contribuição dos teóricos proponentes do modelo social de deficiência se centrava em três aspectos principais (DINIZ, 2007). A primeira se tratava de um esforço em diferenciar aspectos naturais da sociedade, argumentando que a opressão não seria gerada pela lesão ou pelo comprometimento da funcionalidade, mas resultante de um ordenamento social excludente. A segunda proposição seria a de assumir a deficiência como um fenômeno social e cultural, retirando do saber biomédico o poder de definição, classificação e controle da quase totalidade dos aspectos das vidas dos deficientes. O último pressuposto desse modelo se referia a defesa de que se retirando as barreiras (principalmente as de transporte e arquitetônicas) os deficientes seriam tão produtivos como os não deficientes.

Outra contribuição do modelo social da deficiência e que teve inspiração nos estudos feministas foi o cuidado com as terminologias ao se referirem aos deficientes. Logo de início saíram de cena as expressões pejorativas como aleijado, manco e retardado (DINIZ, 2007); num segundo momento foram também problematizadas as expressões “pessoa com deficiência”, já que se queria enfatizar que a deficiência estava na sociedade e não nos sujeitos, ao mesmo tempo, em que se buscava fortalecer a identidade daquelas pessoas como um grupo social com demandas próprias e que precisava se reconhecer. É com base nessa reflexão que optamos pela utilização dos termos “pessoa deficiente” ou mesmo “deficiente”ao longo do nosso texto, apesar do próprio marco-legal brasileiro sobre o tema (Lei13.146) se intitular justamente como “Estatuto da Pessoa com Deficiência”(BRASIL, 2015).

Mesmo com a inspiração inicial no feminismo e nos estudos pós-modernos, não tardou que o modelo social da deficiência recebesse uma crítica proveniente do próprio feminismo. Havia sim um reconhecimento da existência de um sistema social de opressão aos deficientes, mas que o modelo social de deficiência ao ser protagonizado por homens, universitários e com deficiências decorrentes de lesões medulares. Esses militantes resistiam as medidas caritativas e que resultavam numa ameaça a autonomia dos deficientes (já que muitos vieram ou presenciaram contextos de institucionalização) e de que a produtividade seria possível através de iniciativas de adaptação e inclusão.

O movimento feminista ressaltava que esse modelo não considerava especificidades da vivência feminina da deficiência, com destaque para os aspectos reprodutivos das mulheres deficientes além de um certo distanciamento dos aspectos subjetivos que eram frequentemente relatados pelos deficientes e que não tinham espaço no debate político (DINIZ, 2007).

Sem se propor a desqualificar o modelo anterior, a crítica feminista questiona os anseios de adequação e qualificação do ambiente e dos profissionais de saúde, almejado pelas organizações de garantia de direitos dos deficientes. O argumento era de que a ideia de inserção de mercado de trabalho e de produtividade não daria conta da realidade de todos os deficientes. Foram as feministas que trouxeram para primeiro plano das cuidadoras, entendendo que elas são vozes que também buscam protagonismo.

A crítica feminista se centrava em situações de deficientes que exigiam cuidados constan- tes e sobre os quais as mudanças arquitetônicas não teriam o efeito de garantia de produtividade e autonomia. Nessa crítica, o conceito de cuidado passa a ter uma noção central nessa discussão e vira alvo de tensionamento com os primeiros teóricos do modelo social. Naquele contexto o cuidado aparecia de forma ameaçadora e relacionado a uma lógica de tutela e oposição a autonomia almejada.

Foram as teóricas feministas que, pela primeira vez, mencionaram a importância do cuidado, falaram sobre a experiência do corpo doente, exigiram uma discussão sobre a dor e trouxeram os gravemente deficientes para o centro das discussões. Aqueles que jamais serão independentes, produtivos ou capacitados à vida social, não importando (DINIZ, 2012) quais ajustes arquitetônicos ou de transporte sejam feitos.

Uma reflexão bem pertinente ao nosso objeto de estudo. A prática cotidiana de cuidado com as crianças com a síndrome congênita levava a exacerbação de um processo de sobrecarga inerente ao cuidado de uma criança pequena. São crianças na casa dos seus três anos com um nível de dependência e necessidade de cuidados comparável a um bebê de três, quatro meses.

São crianças que exigem uma observação constante frente o risco de uma eventual bronco aspiração, que exigem os cuidados de higiene próprios dos bebês e que levam um longo período para serem alimentadas, entre outras situações complexas do cuidado de uma criança pequena. A produção das pesquisadoras feministas e cuidadoras traz outra contribuição atual ao debate ao problematizar a questão do “lugar de fala” na produção acadêmica e militante, um debate tão fecundo quando se pesquisa mulher, indígenas, populações trans. Quem pode e quem não pode pesquisar e publicar? Principalmente num contexto marcado pela assunção de grupos

que geralmente eram “sujeitos” de pesquisa e que passam para o lugar de autoria, refletindo e produzindo sobre seus cotidianos.

3 CAMINHOS METODOLÓGICOS