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3.2 TERRITÓRIOS DA PESQUISA

3.2.1 O Agreste Pernambucano

Mais a frente teremos um espaço para nos dedicarmos aos aspectos éticos do estudo, mas precisamos adiantar algumas questões que surgiram no decorrer da pesquisa e contribuíram com a escolha do agreste pernambucano como local privilegiado de realização das nossas observações e entrevistas.

No projeto que foi submetido ao exame de qualificação havia a ideia inicial de realizar o estudo em duas regiões, Caruaru e Recife. Recife aparecia como uma referência tanto na assistência obstétrica quanto em serviços especializados de neurologia e reabilitação, sendo comum que as crianças tivessem alguma vinculação com algum serviço da cidade inclusive nascendo em Recife.

Apesar de a região do Agreste contar com maternidades habilitadas para partos de alto risco, as gestações em que havia a suspeita de malformações graves eram sistematicamente encaminhadas para as maternidades de referência de Recife:

Ricardo: – Vocês são moradores do Salgado já faz tempo né? Então me conta como é que foi a gravidez?

Luziana: – A gravidez foi super tranquila no final de cinco meses fiz uma ultrassom e descobri que ele viria com a síndrome Dandy Walker e hidrocefalia, porque ela não tinha conhecimento da micro ainda, nem do surto nem nada, ai na próxima ultrassom foi que deu a microcefalia que eu fui fazer em outro lugar para ter duas opiniões, a partir daí foi. . . Comecei a fazer o meu pré-natal em Recife, aí quando cheguei lá eles falaram que tava realmente acontecendo um surto, que tava aparecendo várias mães com sintomas, mas eu não tive nada, mas teve muitos casos que não tiveram sintomas, ai continuei indo prá lá fazendo ultrassom toda semana.

Ricardo: – Leonardo teve? Leonardo: – Eu tive zika.

Luziana: – Foi zika, eu tava com 3 meses de gestação. Ricardo: – Ai tu tiveste e Luziana não teve.

Luziana: – Não tive nenhum sintoma, ai continuei fazendo o pré-natal lá. Marcus nasceu em Recife também.

Ricardo: – Nasceu em que hospital?

Luziana: – No IMIP, ah! eu ainda fiquei lá 14 dias com ele por causa da sonda que ele sempre tenta, ai quando estava perto da gente ir embora ele teve crise convulsiva, mas também por isso. (Luziana, 23 anos, Leonardo 23 anos, pais de Marcus, 3 anos e meio) Na Região Metropolitana do Recife também estavam as sedes dos grupos de apoio as famílias formalmente organizadas. Havia representações dos grupos em todo o estado, mas a

referência permanecia em Recife. A comunicação acontecia principalmente através de uma rede virtual de aplicativos de mensagem e os momentos de encontro ficavam restritos a eventos (caravanas) organizados pelos grupos de Recife.

Por isso mesmo, Recife já era o cenário de inúmeras pesquisas. Desde o descobrimento do surto, pesquisadores de várias disciplinas e de vário lugares do Brasil e do mundo estavam entrevistando, examinando e coletando materiais dessas crianças e de duas famílias. Não ha- via justificativa suficiente para submeter essas pessoas a novos procedimentos e as eventuais comparações poderiam ser feitas no diálogo entre pesquisadores, sem a necessidade de novas entrevistas, de novas observações.

O cansaço em participar de tantas pesquisas levou a um tensionamento com as famílias e a comunidade acadêmica. Isso ficou evidenciado num diálogo que tive em agosto de 2017 com Iolanda, uma das coordenadoras da UMA:

Iolanda: – Oi Ricardo, lembro de você sim, Só preciso saber como será essa pesquisa. As famílias estão um pouco endurecidas em questões de pesquisa.

Ricardo: – É mesmo Iolanda? Iolanda: – Sim, são inúmeras pessoas.

Ricardo: – Imaginava que isso poderia acontecer, as famílias estão se cansando? Iolanda: – Do mundo inteiro, para fazer as mesmas perguntas. Diz que vai passar 30 minutos e passa a tarde inteira (Recife, agosto de 2017).

As famílias reclamavam que além da quantidade havia pouco retorno por parte dos pes- quisadores que perdiam o contato após a finalização do campo. Publicações em língua estrangeira ou a ausência de convites para eventos científicos também eram motivo de contestação.

As questões éticas, trazidas pelas famílias, eram bem pertinentes e tocavam num aspecto que é pouco abordado pelos comitês de ética em pesquisa das universidades e centros de pesquisa. Da mesma forma que a interação entre medicamentos diferentes e administrados no mesmo momento pode trazer impactos desastrosos para o doente, teríamos uma questão bem delicada que envolveria a interação entre projetos de pesquisa voltados simultaneamente para uma mesma população.

As nossas ferramentas de promoção de ética em pesquisa costumam pensar nos projetos de uma forma isolada. Como proceder quando uma mesma e pequena população passa a ser o interesse de tantas pesquisas simultâneas perguntando, medindo, examinando e furando seus filhos?

Pesquisar é se encontrar com pessoas, no nosso caso, com homens e mulheres que tiveram suas vidas atravessadas por um acontecimento e que agora se encontram invadidas por pessoas estranhas e que sem muito pudor, devassam e escancaram suas vidas e feridas.

Não fomos os primeiros a perceber esse incômodo, essa iatrogenia de pesquisador. Publicações de grupos de pesquisa em antropologia como o FAGES da UFPE já faziam o alerta de como os pesquisadores reproduziam o assédio realizado por profissionais de comunicação:

Nessa incursão através de outros relatos e conversas, nos deparamos com uma frequente narrativa de pesquisadores de outras áreas e de profissionais de saúde, já atuantes nesse

campo, de que essas mulheres já foram bastante ‘assediadas’. Seria necessário ter cuidado para não provocarmos mais uma situação de ‘assédio’ e desconforto com nossa pesquisa. Na verdade, a fala desses profissionais e pesquisadores, também ensejava defender espaços diferenciados para pesquisas e intervenções (suas próprias), de um lado, e apontava a continuidade dessa prática de ‘assédio’ por parte dos meios de comunicação, por outro, sendo esses os que poderiam difundir (ou questionar) os serviços ofertados nas unidades de saúde (LIRA; SCOTT; MEIRA, 2017, p. 211). Então sobravam justificativas metodológicas, éticas e práticas para abandonarmos a expectativa de estudo comparativo com Recife. Decidimos assim centralizar os nossos esforços e encontros em Caruaru.

Mas o próprio campo nos mostrou que o recorte municipal não seria o ideal. Percebemos que as famílias estavam dispersas por várias cidades da região, o nosso foco precisava ser mais amplo e englobar um trecho do agreste pernambucano, esse sim o nosso recorte regional.

Os casos de gestações acometidas pelo Zika se espalhavam de forma desigual pelo Agreste. Havia municípios com quatro, três ou duas crianças com SCZV. Mas Caruaru se manteve importante em nosso estudo, pois por ser a sede da regional de saúde e por abrigar a unidade de referência, Caruaru passou a centralizar as consultas e acompanhamentos das crianças com SCZV.

Caruaru e as outras cidades focalizadas nesse estudo estavam inseridas numa mesma Ge- rência Regional de Saúde (a IV GERES) que é a forma que a secretaria estadual de saúde divide o território de saúde em 12 gerências, que não correspondem diretamente as regiões administrativas do estado de Pernambuco. As cidades de origem e residência das famílias estudadas englobam a área de abrangência da IV GERES, mas são municípios pertencentes as regiões do Agreste Central e do Agreste Setentrional (regiões 8 e 9 na figura abaixo).

Figura 17 – Divisão regional do estado de Pernambuco

Fonte: Secretaria de Educação de Pernambuco

São regiões separadas por critérios administrativos, mas que guardam muita semelhança entre si. Segundo dados do próprio governo de Pernambuco (CONDEPE / FIDEM, AGÊN- CIA ESTADUAL DE PLANEJAMENTO E PESQUISAS DE PERNAMBUCO, 2016) o Agreste

Central1tem uma área total de 10.117 km², sendo formado por 26 municípios, segundo o censo de 2010 possuem 1.048.968 habitantes, sendo 807.285 habitantes na área urbana e 241.683 habitantes na zona rural. Já o Agreste Setentrional2tem uma área de 3.544,5 Km² e é formada por 19 municípios onde, segundo o Censo 2010 do IBGE, vive uma população de 526.905 habitantes, sendo 348.860 habitantes na zona urbana e 178.045 habitantes na zona rural.

Às duas regiões guardam além da proximidade geográfica, o clima e os meios de produ- ção semelhantes. Ambas integram o Polo de Confecção de Pernambuco, considerado o segundo produtor de jeans do Brasil, além da produção agrícola; da pecuária de leite e de corte; da avicul- tura; do turismo; do comércio e serviços.

Como se trata de uma região composta basicamente pelo clima semi-árido a agricultura é dedicada a cultivos tradicionais como o milho, feijão, mandioca e palma. Existem pequenas faixas de brejo e que permitem o cultivo de hortaliças, verduras e do café.

Índice de Desenvolvimento Humano – O IDH do Agreste Central é de 0,634 e o do Agreste Setentrional é de 0,636, ambos inferiores ao de Pernambuco que é de 0,705 e do Brasil que é 0,749 (o 79º em escala mundial).

O município mais populoso das duas regiões é Caruaru no Agreste Central, com 314.951 habitantes, seguido de Santa Cruz do Capibaribe no Agreste Setentrional com 87.538 habitantes. No nosso estudo, Caruaru foi o município em que a maior parte das atividades de campo foram realizadas, já que as famílias frequentavam a cidade cotidianamente para realizar as atividades terapêuticas com seus filhos, mas também realizamos ações em Santa Cruz do Capibaribe e em Belo Jardim.

É importante destacar que a região do agreste pernambucano não esta desligada dos processos sociais e políticos vivenciados pelo restante do estado e pelo Brasil. É importante nos situarmos, brevemente, no cenário político nacional no momento da realização da pesquisa.

Em agosto de 2016 a presidenta Dilma Rousseff teve o seu mandato impedido através de um processo de impeachment que culminou com o golpe de 2016 (BASTOS, 2017). Em decor- rência desse fato o Brasil tinha como presidente, em 2018, o senhor Michel Temer (Movimento Democrático Brasileiro) e o ministros da saúde foram Ricardo Barros (Partido Progressista) e Gilberto Occhi (Partido Progressista).

Em 2018 o governado Paulo Câmara (Partido Socialista Brasileiro) finalizava o seu primeiro mandato (tendo sucedido Eduardo Campos e sendo reeleito para o segundo mandato). Neste ano o secretário de saúde era o médico oncologista José Iran Costa Júnior (sem partido).

O ano de 2018 também foi marcado pelas eleições para presidente, governadores, se- nadores e deputados. Após um segundo turno com o candidato Fernando Haddad (Partido dos 1 Municípios Agreste Central: Agrestina , Alagoinha , Altinho , Barra de Guabiraba , Belo Jardim , Bezerros , Bonito , Brejo da Madre de Deus , Cachoeirinha , Camocim de São Felix , Caruaru , Cupira , Gravatá , Ibirajuba , Jatáuba , Lagoa dos Gatos , Panelas , Pesqueira , Poção , Riacho das Almas , Sairé , Sanharó , São Bento do Una , São Caitano , São Joaquim do Monte , Tacaimbó

2 Municípios Agreste Setentrional: Bom Jardim , Casinhas , Cumaru , Feira Nova , Frei Miguelinho , João Alfredo , Limoeiro , Machados , Orobo , Passira , Salgadinho , Santa Cruz do Capibaribe , Santa Maria do Cambuca , São Vicente Férrer , Surubim , Taquaritinga do Norte , Toritama , Vertente do Lério , Vertentes

Trabalhadores) sagrou-se vitorioso o então deputado federal Jair Bolsonaro (Partido Social Liberal). Jair Bolsonaro foi eleito a partir de bandeiras conservadoras e baseadas na defesa da “família” e da “vida” (mesmo que tenha no armamento da população uma de suas principais bandeiras de campanha). Os grupos apoiadores do atual presidente lutam para conformar o ordenamento jurídico aos valores morais da “maioria cristã”.

O que se observou em sequência foram esforços sistemáticos contra a sociedade ci- vil organizada empreendendo verdadeiras cruzadas (MARIANO; GERARDI, 2019) contra o aborto, pautas ambientalistas, políticas igualitárias e anti-homofóbicas, educação sexual, uni- versidades públicas, imprensa, sindicatos e a suposta doutrinação ideológica e de “gênero” nas escolas (MACEDO, 2017).