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Semelhante ao que observamos com o conceito de experiência, o cuidado é uma palavra polimorfa e que pode funcionar tanto como: (1) adjetivo, que pode ser utilizado em várias situações que denotam zelo ou aprimoramento, como (2) substantivo masculino (uma forma de agir com preocupação) e finalmente uma (3) interjeição que expressa uma advertência frente situação de perigo (MICHAELIS, 2015).

Quando analisamos o uso do termo em produções acadêmicas observamos que o mesmo é utilizado em vários campos e disciplinas, mas com preponderâncias nas ciências da saúde com um destaque para a enfermagem, esta última identificada como arte e ciência do cuidado (TAYLOR et al., 2014).

Num exercício de ilustração lançamos o termo “cuidado” no sistema de busca das bibliotecas da UPFE (plataforma pergamum UFPE) e dai identificamos 70 obras que tinham o termo no título. Dessas 55 eram do setor saúde, com destaque especial para publicações de enfermagem que abordavam temas como cuidados a gestantes, as crianças com paralisia cerebral, ao paciente paliativo e ao paciente oncológico. Também tivemos publicações em exatas (cuidados com a internet), história (que abordava as crianças no tempo da escravidão), literatura, educação (cuidando com o déficit), filosofia e biomedicina (cuidado com animais de laboratório).

Várias publicações trouxeram em seus títulos a associação entre cuidado e elementos referentes a maternidade, contudo, não encontramos nenhuma referência a paternidade ou mesmo o masculino nas obras apresentadas. A palavra homem só apareceu, curiosamente, em um título:

“CUIDADO COM O HOMEM NU QUE LHE OFERECE A CAMISA” (MACKAY, 1990). Obra de auto-ajuda de Harvey Mackay, que promete 85 lições e 35 conselhos rápidos para mudar sua maneira de fazer negócios, que ostenta frases como: “Quando o chefe rouba a sua ideia, ele saberá de onde ela veio, e a quem recorrer na próxima vez” ou “Esforce-se para derrotar o chefe em tudo que puder”. Enfim, aborda um pouco de como os homens devem se comportar no ambiente corporativo, mas esse não é um trabalho sobre masculinidades no “mundo dos negócios”.

Esse exercício, realizado nas bibliotecas da UFPE, foi uma reprodução do trabalho desenvolvido por Cláudio Henrique Pedrosa em 2006 nas bibliotecas da PUC São Paulo e que ilustrou a sua dissertação de mestrado “Cuidado? sim; olhar de gênero? não: os sentidos do cuidado no Caps em documentos técnicos do Ministério da Saúde”(PEDROSA, 2006). Em decorrência desse exercício Cláudio compartilha as seguintes impressões, que guardam semelhanças com o nosso estudo realizado 13 anos depois:

E que pistas foram encontradas? Em primeiro lugar chama o fato de que o cuidado ainda ser fortemente marcado pela produção de conhecimento na área da saúde. Em seguida uma concentração de trabalhos relacionando o cuidado a idosos e a crianças – Além de uma significativa terceira posição para trabalhos com “pessoas execpcionais” e “portadores de deficiência” – sugerindo que o cuidado tem sido visto como associado a pessoas dependentes ou debilitadas. Isso leva-me a pensar sobre a relação entre cuidado e autonomia (PEDROSA, 2006, p. 17).

Diferente do estudo de Cláudio Pedrosa, não temos a intenção de realizar um apanhado exaustivo sobre os vários sentidos que o cuidado possa assumir (e aproveito para recomen- dar a leitura da dissertação do colega e amigo) pois, precisamos abordar o termo dentro das produções do feminismo e dos estudos sobre masculinidades.

Nesse sentido, para situarmos o nosso trabalho, escolheremos a conceito proposto por Juan Gillermo Figueroa Perea, que define o cuidado como: “uma série de práticas que se realizam para satisfazer as necessidades (de caráter físico ou emocional) de outras pessoas“ (PEREA; GARRIDO, 2012).

Se tomarmos como referência a produção feminista, observamos que o conceito de cuidado pode apresentar diferentes enfoques. A pesquisadora Thereza Montenegro, propôs uma sistematização desses enfoques (MONTENEGRO, 2003): Uma das primeiras explicações versam sobre as chamadas “ideologias maternalistas”, teorias feministas baseadas na compreensão do exercício profissional e cotidiano das mulheres relativos ao cuidado “A ideia é que as mulheres transferem habilidades e funções de cuidar – que aprendem e praticam no âmbito da casa e da comunidade – para as profissões que exercem“ .(MONTENEGRO, 2003, p. 494)

Em seguida a autora apresenta a questão do cuidado como uma ferramenta de manutenção, por parte do patriarcado, de mecanismos de dominação dos corpos femininos, na medida que diminui o poder e a mobilidade das mulheres. O processo de desvalorização das atividades de cuidado se dariam justamente por elas serem desempenhadas por um grande número de mulheres.

A terceira interpretação admitida seria a do cuidado interpretado como uma atividade valorativa, em que as mulheres se sentiriam “aceitas e pertencentes a um mundo social, quanto uma forma de buscaram que lhes é negada, utilizando o cuidado como um substituto positivo para interesses egoístas“ (MONTENEGRO, 2003, p. 495).

Independente do enfoque, são produções que enfatizam que as relações entre cuidado e gêneros se dão de forma desigual, persistindo a divisão sexual que assegura as mulheres os espaços domésticos e aos homens as forças produtivas (PEREA; GARRIDO, 2012). O que aproxima as discussões sobre o cuidado com o universo da divisão sexual do trabalho.

A sociedade cria mecanismos que implicavam as mulheres com o cuidado e que naturali- zavam as mulheres nesses lugares. Esse tema de cristalização é trabalhado em “A Dominação masculina” de Pierre Bourdieu:

A força particular da sociodicéia masculina lhe vem do fato de ela acumular e con- densar duas operações: ela legitima uma dominação inscrevendo-a em uma natureza biológica que é, por sua vez, ela própria uma construção social naturalizada.(. . . ) o que é eterno na história não pode ser senão, um produto de um trabalho histórico de eternização(BOURDIEU, 2012, p. 33) .

Do ponto de vista prático, nem todas as pessoas irão exercer as suas práticas de cuidado em conformidade com os modelos essencializados e retroalimentados por processos institucionais, contudo, essas atuações “dissidentes” acabam lidando com mecanismos institucionais voltados a manutenção dessas limitações no exercício do cuidado (LYRA, 1997). Homens que exercem o cuidado observam barreiras no cotidiano que criam “resistência” a esse exercício.