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2.4 POR QUE É IMPORTANTE FOCAR ASPECTOS DE GÊNERO E MAS-

2.4.1 Contribuições dos estudos sobre masculinidades

Os estudos sobre gênero tiveram início e acompanharam a luta das mulheres por equidade. Lutas que aconteceram pelo direito ao voto, a viver sem violência, ao aborto legal e seguro ou pela garantia ao acesso às creches. De forma reflexiva a esses processos protagonizados pelo movimento feminista havia uma correspondência nos meios acadêmicos produzindo e pensando sobre a realidade que era colocada em questão:

A pluralidade de possibilidades de olhares sobre o passado mostrando que este pode ser desvendado a partir de múltiplas questões, entre elas algumas que são motivadas pelo presente permite perceber toda uma vinculação entre a produção acadêmica e a emergência dos movimentos feministas e de mulheres. Este esclarecimento se faz mais necessário quando nos damos conta de que a história não recupera o real no passado, não narra o passado, mas constrói um discurso sobre este, trazendo tanto o olhar, quanto a própria subjetividade, do historiador que recorta e narra o passado (MATOS, 2006, p. 284).

É também desse movimento crítico que se propicia o surgimento das questões que irão alimentar os estudos sobre masculinidades.

Não é que os homens não estivessem na ciência. Se lembrarmos o que acabamos de citar quando abordamos a produção histórica sobre as mulheres; sempre houve um protagonismo

masculino na produção científica. Mas nesses contextos faltava uma visão crítica sobre os processos de construção histórica e social dos homens e das masculinidade.s

Se pensarmos no homem como sujeito genérico, como sinônimo de humanidade po- deríamos datar o início dos estudos com homens antes mesmo do reconhecimento da ciência como atividade humana e teríamos que nos remeter para os primeiros estudos filosóficos e seus esforços de compreensão da humanidade em seus vários aspectos. Contudo, na nossa proposta de estudo, o nosso objetivo é justamente o contrário, marcar a discussão sobre as masculinidades dentro de uma visão crítica e não universalizante.

Um dos elementos que precisamos destacar nessa criticidade é que quando trabalhamos com masculinidades, principalmente sobre paternidade precisamos estar atentos para não ca- minharmos desavisadamente sobre uma corda bamba que poderia nos precipitar em elementos como o masculinismo ou a culpabilização e vitimização dos homens.

É um risco que pode levar uma pesquisa voltada para o trabalho com homens e com foco em paternidade, ora para um processo de culpabilização dos homens, ora para um processo de instrumentalização dos mesmos para a garantia dos direitos das mulheres. Então é sempre importante ficar atento e garantir que os óculos com as lentes de gênero estejam bem guardados no bolso. Uma metáfora oportuna quando o pesquisador tem seis graus de miopia.

Assim o masculino não é sinônimo de humanidade, mas um conjunto de concepções, cren- ças e construções que inclusive superam a dimensão dos corpos dos homens, mas que também nos referimos a corpos masculinos, sem nenhum “medo da biologia“, como nos alertou Ra- ewyn Connell (CONNELL, 1995). Nesse contexto, são estudos que dialogam e são originados da crítica acadêmica feminista, não significando, porem que esses estudos necessariamente, tivessem aproximações teóricas ou políticas com o feminismo (KAUFMAN, 1995).

Na conferência de abertura do Seminário Homens: tempos, práticas e vozes, realizado em 20043, o filosofo mexicano Juan Gillermo Figueroa Perea, inicia a sua fala com a seguinte pergunta: “Quando falamos de Homens, de que homens estamos falando? (FIGUEROA, 2004). Durante a conferência Juan Guillermo se propôs a analisar o que vinha sendo pesquisado sobre masculinidades até aquele momento. Alertava para que muitos dos trabalhos remetiam a uma ideia de uma certa “condição masculina”, algo etéreo e difícil de definir, mas que de certa forma unificava os homens, mesmo que numa “camisa de força”, utilizando uma expressão do pesquisador espanhol Luís Bonino.

Mais adiante, na mesma conferência Figueroa anuncia:

É tão frequente que se fale da masculinidade como fonte de privilégios, entretanto quando alguém lê a literatura sobre os homens alguém encontra contradições, alguém encontra permanentemente situações críticas a que os homens vivemos e, entretanto, poucas vezes as nomeamos como mal-estares. Se de verdade os acreditam que são mal-estares, haverão muitos mais homens interessados em transformá-las sem a ne- cessidade de que as feministas organizem reuniões para que nós homens possamos falar (FIGUEROA, 2004, p. 33) .

Por serem posteriores aos primeiros estudos feministas as pesquisas sobre masculinidades são mais recentes. Os estudos sobre masculinidades oriundos de discussões sobre relações de gênero teriam como um marco inicial os anos 1970, 1980, nos Estados Unidos e na América Latina com os primeiros grupos de estudos sobre homens numa resposta a segunda onda do feminismo. Grupos que nasceram como resposta aos estudos feministas e, pela crescente compre- ensão de que gênero seria um elemento organizador da vida de homens e mulheres (VALDES; OLAVARRIA, 1997). As respostas a esse movimento, não geraram necessariamente produções ocupadas em promover mudanças estruturais nas relações entre homens e mulheres ou entre os próprios homens.

É nesse contexto que surgem inciativas voltadas para a “crise da masculinidade” e que buscam respostas em processos terapêuticos ou de retorno a uma masculinidade perdida. Eram processos que traziam ganhos para os seus participantes, mas que não problematizavam as construções de masculinidades e os custos para homens e mulheres. A falta de uma visão crítica nas melhor das hipóteses trazia uma resposta limitada, mas também abria as portas para respostas masculinistas para essas questões, os “homens sofrem por causa das feministas que ocuparam todos os espaços” ou “não existe mais chances para que o homem de verdade possa existir“.

Existem várias tentativas de sistematizar os estudos sobre homens e masculinidades, bem como os seus conceitos mais fundamentais. Destaco o artigo “La organizacíon Social de la Masculinidad” de Raewyn Connell e publicado em 1997 (CONNELL, 1997). Connell inicia explicitando que toda sociedade possui algum tipo de registro de gênero, mas nem todas definem o que seria masculinidade. Abordando o conceito de forma moderna, Connell defenderia que teríamos quatro enfoques principias de definição de masculinidades:

1) A primeira seria uma concepção essencialista do que é ser homem, essas definições se- lecionariam determinadas características que definiram o núcleo do que ser masculino, seriam escolhidos como representantes das características masculinas. O caráter arbitrário dessas definições é uma das principais críticas a essa concepção.

2) Em segundo lugar, segundo Connell (CONNELL, 1997) teríamos positivistas de masculi- nidades, com uma ênfase para atuma descoberta dos fatos, buscando identificar o que os homens realmente são, com base em proposições psicológicas, psicométricas ou mesmo etnográficas, busca definir os padrões e modelos de masculinidade.

3) Em terceiro lugar teríamos definições baseadas no que Connell chamou de “o-que-os- homens-empiricamente-são” (CONNELL, 1997), essas concepções estão relacionadas a ações e atitudes que chamamos de “masculinas” e de “femininas”, mas sem, neces- sariamente, considerar quem realiza essas atitudes, “Os termos masculino e feminino apontam para mais além do que as diferenças de sexo e sobre como os homens diferem entre si e as mulheres entre elas, em matéria de gênero“ (CONNELL, 1997).

4) Por fim teríamos as definições normativas de masculinidade, essas definições reconhecem as diferenças de gênero e oferecem um modelo de como os homens deveriam ser e que,

na prática, os homens se aproximariam ou se diferenciariam dessas normas.

Essa última concepção é abordada e destacada por Margareth Arilha quando pesquisa os documentos produzidos na conferência de População da ONU realizada no Cairo em 1994:

De toda maneira, o homem nos textos é o “outro”. A visão normativa do masculino nos textos das conferências, com pouca variabilidade no transcurso do tempo, é resultado da ação de vários interlocutores/as e atores/as que, em maior ou menor diálogo, destinaram aos homens, pode-se dizer, um lugar restrito. Se todos os processos indicam que cada vez mais foram as mulheres organizadas que efetivamente ganharam espaço e poder crescente nas conferências, também pelo menos parcialmente é de sua autoria a redução e instrumentalização apontadas(ARILHA, 2005, p. 160).

Após a apresentação dessas quatro concepções e suas críticas Connell defende que a masculinidade não seria definida como objeto, mas sim que o interesse seria compreender os processos e as relações sobre como homens e mulheres levam suas vidas mediadas pelas relações de gênero. Inspirada no trabalho de Gayle Rubin, Connell sintetiza que:

Qualquer masculinidade, como uma configuração da prática, se relaciona simulta- neamente em várias estruturas de relação, que podem seguir diferentes trajetórias históricas. Por consequência, a masculinidade assim como a feminilidade, sempre está associada a contradições internas e rupturas históricas (CONNELL, 1997, p. 37).

Os estudos que tiveram início nos anos 1970 e 1980 ganham corpo na década seguinte. Motivados pelos esforços acadêmicos e militantes dos movimentos feministas e LGBT que se fazem presentes nas conferências da ONU do Cairo (1994) e de Pequim (1995).

Na década seguinte aumentam os esforços e mobilizações em torno da pandemia de Aids. Neste caso, as respostas insurgentes também apontam para a necessidade de envolvimento dos ho- mens em políticas voltadas para temas como direitos sexuais e violência de gênero (MEDRADO; LYRA, 2008).

Analisando as publicações sobre masculinidade são identificadas diferentes enfases dadas aos estudos produzidos até em então. Rayween Connell, Jeff Hearn e Michael Kimmel sistematizaram essas produções emergentes em quatro grupos principais:

1. a organização social das masculinidades em suas “inscrições e reproduções” locais e globais;

2. a compreensão do modo como os homens entendem e expressam “identidades de gênero”;

3. As masculinidades como produtos de interações sociais dos homens com outros homens e com mulheres, ou seja, As masculinidades como expressões da dimensão relacional de gênero (que apontam expressões, desafios e desigualdades);

4. a dimensão institucional das masculinidades, ou seja, o modo como as masculi- nidades são construídas em (e por) relações e dispositivos institucionais (KIMMEL; HEARN; CONNELL, 2004) traduzido por Benedito Medrado e Jorge Lyra (ME- DRADO; LYRA, 2008, p. 810).

A tentativa de enquadrar o nosso trabalho dentro desses cenários ainda é imprecisa e arbitrária já que os quatro elementos são diretamente relacionados, mas encontramos maior

proximidade com os itens 3 e 4 que assinalam estudos em que as masculinidades aparecem “como produtos de interações sociais dos homens com outros homens e com mulheres, ou seja, as masculinidades como expressões da dimensão relacional de gênero (que apontam expressões, desafios e desigualdades“ sobre a ”a dimensão institucional das masculinidades, ou seja, o modo como as masculinidades são construídas em (e por) relações e dispositivos institucionais“.

A pesquisa sobre homens e masculinidades evoluiu nas últimas duas décadas, mobili- zando pesquisadores e pesquisadoras das mais diferentes disciplinas e correntes teóricas. Se tomarmos como exemplo o penúltimo Colóquio Internacional Homens e Masculinidades4, realizado em 2017 em Recife contou com a presença de 978 pessoas e teve 544 trabalhos aprovados (VI COLOQUIO INTERNACIONAL DE ESTUDIOS SOBRE VARONES Y MAS- CULINIDADES, 2017). o que nos apresenta um processo de consolidação de um campo temático e dos grupos de pesquisa em gênero e masculinidades.