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4 PERCURSO DA PESQUISA: DESCRIÇÃO DO TRABALHO DE CAMPO

5.1 VIVÊNCIAS COM A DOENÇA

5.1.2 Abstendo-se e as formas de cuidado

A doença renal crônica exige muitos cuidados por parte do paciente e de seus familiares. Como já foi dito, os cuidados necessários envolvem a terapia substitutiva da função renal, o uso correto da medicação prescrita pelo médico e os cuidados em relação

especialmente a dieta alimentar e hídrica. No caso particular de crianças, há um cuidado especial em relação a certas atividades tais como correr, jogar bola, usar piscina, ir à praia e etc., pois exige cuidados em relação ao cateter tanto para evitar acidentes, quanto para evitar infecções.

Tenho cuidado com o cateter, eu tampo assim no banho e pra brincar, correr, senão sua. (Adriano)

Há também muitas restrições com relação ao deslocamento para certos lugares para manter a assiduidade no tratamento, pois quando não podem ir à determinados lugares para visitar familiares por causa da distância, enfrentam as dificuldades em relação à falta de transporte que dê condição de deslocar-se em tempo e com segurança. Neste sentido, a criança ou o adolescente convive com a impossibilidade de manter um contato mais frequente e próximo com seus pares.

Sinto falta de meus colegas, meus amigos, minha prima, minha família, minha madrinha, meu tio, minha avó e meu avô, sinto muita falta. Eu não posso ver eles porque eu tô aqui fazendo tratamento, aí às vezes eu fico triste, chorando, que eu não posso ir pra lá e quando minha mãe vai pra resolver alguma coisa, eu fico com vontade de ir, mas eu não posso. No natal mesmo, eu vou ficar aqui porque eu não posso ir pro interior por causa do meu tratamento. Minha mãe vai e eu fico mais a vizinha. (Laura) A vida da gente mudou, porque ficou longe da família, longe de casa, longe de tudo né, praticamente a gente tá vivendo aqui ultimamente né. Então é diferente né! Eu acho que se meu interior fosse mais perto assim que nem o dela (se referindo à mãe de Valéria) eu achava melhor viajar todos os dia, porque, por mais que você tinha que viajar, tinha que levantar a noite e tudo, mas pelo menos você final de semana tava em casa, você tinha como cuidar de suas coisa, eu não, minhas coisa já... a minha vida é diferente porque minhas coisa tá lá tudo jogada, eu reformei minha casa, fiz um quarto pra Laura fazer diálise peritoneal, ultimamente quase num participei e não to participando, então o quê, minhas coisa tá tudo lá parada. Então pra mim, eu acho mais difícil. (mãe de Laura)

Há ela pede assim, sempre pra ir na casa da vó, ficar lá um dia, pra de lá vim pegar carro de ir pra hemodiálise dela na segunda, eu digo: Valéria num pode. Lá no caso, nós vai no sábado, aí no domingo de noite a gente tem que vim pra cá (Salvador), é o carro ao contrário, eu num posso marcar um carro pra me pegar lá, aí fica difícil, ela quer ir, ela tem vontade, mas eu acho que num dá assim pra sair, voltar a noite. Na cidade da gente só uma pracinha mesmo que a gente sai a noite mais o pai dela e os meninos. Isso faz bem a ela, muito mais do que quando a gente vai no mercadão, tem lanchinho, essas coisa, aí ela gosta de ir, vou sempre, ai eu levo ela lá, aí ela gosta, aí ela gosta de sair comigo. (mãe de Valéria)

A dificuldade em permanecer com disciplina na dieta e no controle de líquido é a privação mais expressa na fala das crianças e dos adolescentes com a doença renal, pois às vezes aceita esta condição, mas por vezes não consegue conter-se como relata a mãe da criança:

Tem uma menina lá que tem um problema de saúde que é no sangue e hoje essa menina num pode comer, é igual a ela num pode comer quase nada e a menina aceitou isso tudo. E é da mesma idade dela, é por isso que eu digo a ela: olhe a sua colega tem o mesmo problema assim, porque a sua colega é no sangue e o seu é no sangue (lúpus) que atingiu os seu rim e ela num come nada, nada que venha prejudicar a ela, ela num come, ela disse que vai pra festa e não bota nada na boca, eu conversando com ela que ela mesmo disse e ela vai pra festa, aceita tudo e ela quer, ela disse que quer ficar viva, ela quer tratar do problema dela, que ela num liga se ela num comer aquilo que ela num pode não. E porque você num aceita isso também? Ela quieta! Porque sua colega num tem a boca, ela num é uma menina que é comilona e você é. Tem esse problema, porque o problema dela todo num é nada assim de: porque vai pra escola, não ela gosta de ler e escrever ela gosta de riscar papel, ela sempre foi assim, ela sempre fez carta pra mim, fazia carta, bilhete e me dava, ela sempre foi uma ótima aluna. [...] Antes ela comia todos tipo de merenda , ela gosta de comer. Ela bebia muita água, ela corria, com as amigas, que tem umas meninas lá que gosta de correr, ela corria, corria, quando vinha, ela tomava aquela água toda, aquela garrafinha assim de água todinha e sempre fazia, urinava, não tinha problema nenhum, nenhum problema. E agora ela num pode fazer nada disso, aí ela fica se queixando, às vez aceita, às vez não! Tem hora que ela aceita tudo, fica aceitando, tem hora que dá uma revolta que não quer aceitar nada, fica toda assim. (mãe de Marcelina)

As crianças/adolescentes são orientadas e sabem de suas restrições, umas conseguem administrar a dieta com mais tranquilidade, com a ajuda da família que se organiza para cuidar no preparo da alimentação, ferventando alguns alimentos, por mais de uma vez, evitando o uso do sal e substituindo alguns alimentos por outros para amenizar as abstinências da criança com relação ao consumo de chocolates, por exemplo, dando-lhes outros doces que não são proibidos por conterem menos potássio e fósforo.

Antes, a mesma coisa que agora, só impede de comer comida com sal, que não me faz falta, antes eu não gostava de sal também, eu não comia nada de sal também antes.. já estava acostumada a comer sem sal, as coisa que eu comia era às vezes, às vezes... eu ia na praia comer um peixe frito, só que não, não comi nada com sal esses tempos todos que eu tava... desde que eu nasci, eu não como nada, nada, nada exagerado a sal. Tudo... Lasanha, feijoada... Tudo isso que comia não é sal, é sal, mas não é tanto sal não. Mas eu não comia sal não... então não faz falta sal pra mim. Então, só me dá vontade de comer às vezes, mas às vezes, também pode comer, há mas não falta pra mim, faz um ano que eu não como salsicha e não tá me fazendo falta nenhuma. (Carmen)

De uma maneira geral, lidar com as restrições alimentares é muito difícil, exige disciplina e muitos esforços por parte do paciente que precisa se organizar e, muitas vezes, abrir mão do que gosta, no sentido de evitar situações de mal estar por excesso de líquido no organismo ou pela ingestão inadequada de calorias e proteínas que prejudicam a saúde do paciente podendo-o levá-lo à óbito.

Em relação a estes cuidados alimentares e ao controle de líquido, as crianças/adolescentes e suas mães trouxeram relatos de suas angústias em ter que privar-se da ingestão especialmente de líquidos, como sendo um problema que enfrenta e que dificulta muitos aspectos da vida social da criança, sendo necessário, em alguns casos, as mães ficarem bastante atentas para evitar mais riscos à vida de seus filhos nas situações do cotidiano narradas:

O problema dela, num é nada assim de dizer, ah porque eu, eu quero alguma coisa assim não... o problema dela é o que ela quer comer, se ela disser que quer comer aquilo ali, ela fica rodeando você, fica rodeando até querer que você dê aquilo que ela não pode, que às vez só pode na diálise e ela quer comer fora de diálise. É chocolate que ela gosta, gosta desse chocolate assim grande, gosta de comer pizza, gosta de comer coisa assim, uma coxinha, uma peça, ela quer comer fora de diálise e ela não pode. E você sente logo assim que, que se fazer coisa errada, comer fora da diálise e escondido de você, você sente logo que já mostra, começa a fica inchado o rosto, já começa a sentir cansaço, começa cansando, cansando, cansando, porque a semana retrasada ou a semana passada, eu viajei, fui na minha cidade de Nazaré das Farinha pegar meus documento e deixei ela com minha irmã, aí ela foi pra casa da irmã dela por parte de pai e comeu salsicha, que a irmã dela tem pressão baixa, aí ela foi e comeu, ôxi! Quando eu cheguei que avistei assim, que saltei do carro na avenida lá de onde eu moro, eu tô vendo ela assim mais forte do que ela é, o peso dela, eu senti ela assim que o peso dela estava mais, que Marcelina tá cansando, ela: eu num estou cansando não! Você fez coisa errada Marcelina, ah num fiz não, num fiz não! Você fez sim! Você comeu coisa que não devia. Você vai morrer e se uma hora num der tempo, levar as pressas, você tem plano de saúde, tem tudo. Mas só que numa hora, tudo para, você num encontra nenhum táxi, nenhum carro pra levar você num lugar. Ela: ah num comi não, quando chegou aqui na quarta-feira, na segunda, foi. Drª Marina mandou pesar, quando foi pesar tava com 29 e 800. O peso seco dela é 23 e meio. (mãe de Marcelina)

A preocupação com ganho rápido de peso está relacionada ao excesso de peso que esta criança terá que perder na sessão de hemodiálise e o risco de passarem mal em decorrência da falta de cuidado em relação à dieta e ao controle do líquido. Em alguns depoimentos é evidente a dificuldade em manter-se vigilante a estes cuidados.

Ela tem vontade de comer muita coisa e não pode, é na rua, ela quer comer alguma coisa assim na rua que nem ontem a gente saiu pra comer uma

coxinha, ela quis comer uma coxinha eu tive que dar a cozinha a ela, tomou um suco de maracujá, quando chegou em casa ela dormiu logo por causa do suco de maracujá que ela tomou. (mãe de Valéria)

As restrições alimentares dependem também do resultado dos exames de cada paciente, o serviço de nutrição acompanha estes resultados junto ao médico e orienta ao paciente quanto ao cuidado na rotina alimentar, os alimentos que, de uma maneira geral, é prejudicial a todo paciente com doença renal por serem muito ricos em potássio e em fósforo, além do controle do líquido no organismo é também regulado por cada paciente, pois alguns fazem xixi, mas outros, infelizmente, não fazem e necessitam restringir ao máximo o controle de líquido, o que também apareceu como fator de obstáculo da criança de ir para a escola por não poder beber água, correr e comer certos alimentos como foi expresso na fala de Valéria:

Tem crianças que faz hemodiálise não pode ir pra escola, não pode beber muito líquido, pular. Não pode correr, beber muito líquido, comer abacaxi, cajá, tangerina. (Valéria)

No relato a seguir, a mãe de Daniel fala das privações da pessoa com doença renal e explicita a situação particular do seu filho e o alívio em relação à diurese (produção de urina pelos rins) do seu filho que é considerada boa como ele traz:

Antes ele jogava bola, antes ele brincava, a atividade era maior, mas o que melhorou, que piorou foi a questão das restrições alimentares porque é uma restrição muito severa. Antes do paciente realmente entrar na hemo a restrição alimentar se torna pior. Como não tem a máquina para limpar, então você tem que realmente, em toda alimentação, você começa a eliminar e reduzir o potássio, o fósforo, então você tem uma criança que você vai dar um lanchinho com frutas aferventadas e para dar sabor a essa fruta você coloca ou geleia ou um mel. Então um ovo que é sempre um ovo, "Ah, não, vou comer um ovinho", para eles não era, era só uma clara que, entre aspas, frito em água fervente. Então na questão alimentar eu achava pior, porque quando você vai para a máquina, você continua com restrições, mas abre um leque, porque você tem o outro dia da diálise. Os piores dias para o próprio paciente renal que faz hemo, no caso dele que é terça, quinta e sábado, é de sábado para terça porque ainda tem que ter um controle maior por conta que a diálise só vai ser feita na terça-feira. Então você tem três dias, então você controla muito o potássio, que é um dos vilões, quando está em excesso no organismo, que afeta outros órgãos importantes. Mas o líquido em caso de Danielzinho já não é porque Danielzinho, graças a Deus, eu já vejo um outro milagre, em questão diurese muito boa então ele quase não tem restrição líquida, ao contrário, infelizmente, de outros pacientes que não é essa realidade. Ele bebe água, ele toma suco, toma iogurte, eu não tenho muito o controle dessas coisas, porque assim ele tem diurese de dois litros, um litro e meio por dia, então eu não tenho muita restrição líquida com ele, mas em outros pacientes é muito mais sofrido. Aí você vê crianças que tem restrição líquida e assim, acho que tem que trabalhar muito o psicológico porque você poder beber água, e depois você ser tirado

esse direito de necessidade do organismo, principalmente a região nordestina, que é onde nós vivemos que é muito calor. (mãe de Daniel) Ficou bastante manifesto a atenção maior em relação à alimentação para evitar que a criança se prejudique, pois há casos em que, a atenção constante, é a forma encontrada para evitar que a criança coma escondido como relata a mãe de Davi:

Cuidado que eu tenho para ele é para ele não comer as “porcarias,” que se deixar come, para não adoecer. Para ele não comer, porque se deixar, come né! Depender dele come tudo, se deixar. Aí, vou lá para a minha casa, tenho o maior cuidado. A comida dele eu faço separado, dou um banho nele, tudo direitinho para ele não ter que se queixar de mim, porque eu sempre estou pegando ele, que fica comendo. (mãe de Davi)

Quando foi perguntado às mães, especialmente, em relação aos cuidados que têm diante das restrições do dia a dia da criança, também apareceram as questões relacionadas aos cuidados como a preservação do cateter para evitar infecções e acidentes. Em situações particulares com no caso da criança cega, a mãe relata que:

Em relação às outras coisas nem tanto, porque como ela tem o problema da deficiência visual, então tem coisa que assim ela não... sai correndo, essas coisas: pular, fazer cambalhota, então essas coisa ela já não fazia, então acho que isso não mudou muito. Claro que o cuidado é maior. Mas eu procuro colocar ela em atividades que ela possa fazer como ela fazia antes: ir no parquinho, escorregar, brincar, uma coisa assim de areia, de praia, então tem coisas que não podem, mas tipo uma piscina: eu sempre coloco ela da cintura pra baixo, eu tento fazer assim, de uma forma que não mude, que não altere muito do que ela tinha, então pra ela já não gosta, então já não tem este problema, então a piscina. Se a gente vai na piscina eu coloco ela assim sentadinha, ela bate as pernas, a gente pega ela no colo, tenta fazer deu uma foram que não mude muito, mas correr, essas coisa que criança, menino, bola, ela já não gosta muito, já não fazia, então já não fez muita diferença. (mãe de Carmen)

O cateter está muito relacionado ao cuidado, pois ao serem perguntados sobre os cuidados que costumam ter em relação à doença, as mães falaram da atenção especial que é dada a este aspecto para poupar trocas de cateter, perda de acessos e infecções que são as causas de muita dor, tanto por parte da criança/adolescente, quanto por parte de suas mães:

Cuidado é assim, não gosto muito, ele não gosta muito de estar brincando porque o medo de cair, não gosto de deixar ele de bicicleta, e também ele não gosta muito de ficar no meio de menino. Pois acho que é coisa dele mesmo, porque esses dias eu foi cortar cabelo, disse em que os meninos ficam olhando de cara feia para ele, fica falando coisas, soltando piadas por causa do problema dele, e aí ele não gosta, já pegou a coisa de assim... ele não gosta muito de ficar com os menino. (mãe de Davi)

Laura se preocupa assim (com o cateter), ela tem medo de não molhar, ela tem, às vezes tem roupa que ela não gosta de mostrar, porque é roupa que fica mostrando o cateter, ela acha que ali vai pegar alguma infecção, assim, tem muito cuidado porque ela também já é velha de hemodiálise, e se preocupa com falência de acesso né, como ela já ouviu muitas coisas dos médicos aí ela se preocupa.(mãe Laura)

É só ter “cudiado”, o “cudiado” que ela tem, que quando tá um pouco descoberto ela manda botar esparadrapo, é só isso que ela se preocupa, se tiver um pouquinho aberto ela diz: mamãe, bota um esparadrapo, aí eu pego e coloco pra não ficar aberto.(mãe de Valéria)

Para a mãe de Adriano, tanto a preocupação com o cateter, quanto o acompanhamento constante no uso da medicação e a avaliação médica de outros especialistas que não sejam só da nefrologia é uma prática que ela tem constantemente, pois o cuidado não está relacionado apenas a um aspecto ou outro da doença, mas a todo o corpo:

Eu tenho muito cuidado, muita preocupação de deixar fazer, de deixar correr, para não prejudicar. Tem também a medicação... nem comparação! E a alimentação eu tenho bastante preocupação. Esses dias mesmo a Dra. Roberta estava falando, porque agora ele já não toma remédio de pressão, ele não toma nenhum faz pouco tempo. [...] Porque além das médicas aqui que cuidam, eu frequento... ele vai... eu por conta própria, eu levava para otorrino - otorrino não -, endocrinologista, a de osso, oftalmologista, inclusive ele está fazendo uma avaliação porque diz que todo renal corre risco, da córnea, alguma coisa. A cada seis meses eu tenho levado. [...] Então esses cuidados que eu posso ter, eu tenho feito a minha parte. Eu não fico só esperando elas dizerem: “Está precisando fazer, está dando isso, tem que marcar”. E quando elas não pedem, eu peço. Pergunto se pode fazer, se pode liberar tal exame e vou lá e faço. (mãe de Adriano)

Todas estas falas tratam do cuidado ao que não pode acontecer por colocar mais em risco a vida do paciente, mas desde o início do capítulo, o cuidado está presente nos relatos em relação às formas de enfrentar os processos vivenciados por estas pessoas, tanto em relação a si próprio, quanto em relação ao outro, quer seja de mãe para filho(a), ou de filho(a) para mãe, de paciente para outro paciente, de uma mãe para outra, de uma mãe para um paciente e etc.

Este cuidado faz parte dos sentimentos comuns que envolvem as pessoas no ambiente da hemodiálise, desejando que tudo caminhe de maneira favorável sempre e sofrendo junto ao outro quando acontece algo de ruim com alguém. Pude observar algumas vezes, como todos demonstram preocupação e solidariedade, quando alguma criança ou adolescente passa por

alguma intercorrência14 no momento da hemodiálise procurando ajudar no que é possível e até apegando-se ao que acreditam para que o momento de incerteza e dor sejam logo amenizadas.