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4 PERCURSO DA PESQUISA: DESCRIÇÃO DO TRABALHO DE CAMPO

6.1 ACESSANDO OS SENTIMENTOS

Com a utilização do Baralho das Emoções para possibilitar a abertura ao que as crianças/adolescentes tinham a dizer, foram mostradas, primeiro, as cartas referentes aos

sentimentos para cada sexo, ou seja, se a entrevista estava sendo realizada com menino, usávamos as cartas com os bonequinhos, se com as meninas, usávamos as cartas com as bonequinhas. Das vinte cartas com os sentimentos, os participantes podiam selecionar quantas quisessem. No geral, os dois meninos selecionaram menos cartas do que as meninas, sendo sete de Adriano e nove de Daniel. Com as meninas, Carmen selecionou 19 cartas e Laura e Valéria selecionaram 11 cartas cada uma delas. Após a escolha das cartas pelo participante, eu recolhia todas, retirava as que ele/ela não selecionou e a partir das cartas selecionadas, íamos conversando para que ele/ela dissesse o motivo pelo qual escolheu determinada carta.

No momento das conversas, inicialmente, as crianças falavam sem serem muito interrogadas e sempre dentro de um contexto, eram inseridas as perguntas sobre a doença e sobre a escola. Interessante notar que nem todos os sentimentos ruins (medo, tristeza, angústia, etc.) estavam sempre associados à doença como veremos adiante. Esta foi uma grande surpresa, pois, como disse, a doença ganhou destaque nas conversas com as mães e já com as crianças/adolescentes. Houve espaço para falar de sentimentos relacionados a outros assuntos, tais como: medo do escuro e de barata, briga com o colega, decepção quando um desenho preferido e esperado não passa na televisão, dentre outros sentimentos que parecem ser normais às crianças.

O Baralho das Emoções é composto por vinte sentimentos, além de uma carta com o desenho de um termômetro, sendo todos representados tanto por desenhos de bonequinhos de meninas, quanto de meninos, no total, somam-se quarenta cartas. Os sentimentos são: feliz, amoroso, esperançoso, tranquilo, orgulhoso, amedrontado, decepcionado, desesperado, confuso, saudoso, solitário, preocupado, cansado, ansioso, triste, culpado, desconfiado, envergonhado, estressado e irritado. Em um panorama geral, temos: a única carta não selecionada por nenhum dos participantes foi solitário(a) e as cartas selecionadas por todos(as) participantes foram quatro (amoroso(a), tranquilo(a), esperançoso(a) e feliz).

Para a elucidação do que emergiu dos sentimentos expressos pelas crianças e adolescentes, foi feito o agrupamento das emoções que se aproximavam no sentido de possibilitar uma melhor organização no que está aqui apresentado, além de facilitar a compreensão destes sentimentos trazidos pelas crianças e adolescentes.

Feliz, tranquilo, esperançoso, amoroso

Todos os cinco meninos e meninas selecionaram estas cartas que, apesar do sofrimento que os mesmos vivenciam por causa da doença, nenhuma carta que represente

sentimentos negativos foi selecionada por todos, apenas por uns ou por outros participantes. Quando lhes foi perguntado o motivo por ter selecionado estas cartas, eles responderam:

Eu sou feliz porque sim! Não tenho motivo assim pra “mim” ser triste, não tem nenhum não! (Carmen)

O que me deixa feliz é porque eu tô bem. Por ter meus irmãos e meus pais. Eu gosto de desenhar, estudar de brincar. Eu gosto de ir pro mercadão, comer bolo. (Valéria)

Quando eu tô passando por alguma coisa, aí eu oro e fico bom. Aí eu fico feliz. (Daniel)

(Tranquilo) Com tudo. (Daniel)

Com minhas irmãs eu fico tranquila, com minha mãe... (Laura)

Eu sou tranquila porque sim! Não tem nada pra acontecer. Em relação a tudo eu sou tranquila. É tudo assim, eu fico tranquila em casa, tranquila na rua, em tudo. Aqui no hospital, um pouco. (Carmem)

(Tranquila) De vez em quando eu fico assim. Quando eu tô mais meus irmãos, brincando, desenhando. Ontem professora, nós fizemos... meu irmão desenhou, ele vai ser desenhista, ele tem os “zói” meio correndo assim. Aí, ele fez.. ele também é estressado que só! Se ele não conseguir fazer uma coisa, ele se reta. Ele fez uma bandeira do Brasil, não sei porque ele fez. Aí eu disse, menino, como é grande, vamos pintar nós tudo. Aí nós pintemos. Ficou linda, aí ele colou lá no quarto dele. Um bocado de desenho lá. É quando eu tô brincando eu fico tranquila, aí eu esqueço. (Valéria)

Tenho esperança! Milagre... Acho que você sabe! Chuta! Milagre de voltar o rim. (Carmen)

Ao transplante. Muito esperançoso. (Daniel) Eu tenho fé que eu vou transplantar. Só! (Laura)

Esperança! Eu tenho esperança que eu vou ter a minha saúde de volta. E ficar bem, poder brincar, retirar o cateter, sair da hemodiálise. (Valéria) Em relação à carta “amoroso”, todos selecionaram e disseram que são amorosos, especialmente, com a família e com os que mantém uma relação próxima no hospital:

Eu amo meu pai, minha mãe, meu irmão. (Daniel)

Com você, as meninas (as técnicas de enfermagem), Valéria. Algumas pessoas que eu não gosto. Porque tem umas que é metida e não fala. Mamãe, mesmo ela nervosa eu sou também. (Laura)

Com as pessoas, com algumas pessoas: com meus irmãos, com meus pais, com meus avós e só. (Valéria)

Com todo mundo (Adriano) Com a minha família. (Carmen)

Orgulhoso e saudoso

Carmen selecionou a carta “orgulhosa” e justificou a escolha incluindo a professora da classe hospitalar por estar próxima dela e pelo que tem ensinado nos momentos da hemodiálise:

De tudo! Ah, tem uma coisa, posso falar também da professora, porque assim, me ensina tudo, tô há um ano nessa pra estudar, pra aprender tudo, porque me ensina também. Tenho orgulho de outras pessoas, mas vai demorar! (Carmen)

Em relação à carta “saudoso”, Laura e Valéria foram as únicas que se referiram a elas, apesar de não entender, a princípio o que significava a expressão “saudoso”, sendo necessário explicar e exemplificar para que elas se identificassem e falassem da época que não tinham que conviver com a doença renal:

Antes eu brincava. Antes eu brincava de correr, estudava, bebia muita água, comia tudo e agora eu não posso mais. (Laura)

Eu fico mesmo! Da época que eu era bebezinha. Lembro como era antes: era bom, podia beber água, podia correr. Eu sinto mais falta de quando eu era saudável. Eu só tomava remédio de verme e vitamina. (Valéria)

Estressado, irritado, preocupado, ansioso

As situações do dia a dia vividas são trazidas nas falas das crianças/adolescentes para justificar a escolha das cartas “estressado” e irritado”:

Alguma coisa que me irrita... Faz tempo, lá em Barramares, onde eu morava, tinha um homem, ele sabia que eu tinha medo de cachorro e ficava me irritando. Teve um dia, que eu falei, ó, eu não aguento mais não. Eu vou pegar a sandália e vou te bater. (Carmen)

O trânsito me deixa estressado. Quando está engarrafamento da BR pra poder chegar aqui. (Daniel)

Quando eu tô assistindo, aí meus irmãos ficam fazendo zuada, aí isso me deixa estressada. É quando eu quero fazer alguma coisa e não consigo. Como eu quero fazer um desenho e não consigo, aí eu fico estressada. Eu fico estressada quando é pra acordar 1 hora da manhã, aí tem vez que eu acordo chorando, aí tem vez que eu acordo com uma cara ruim pra ir pro banheiro escovar os dentes. Ontem, hoje mesmo, hoje mesmo eu levante com uma cara ruim. Mamãe também tem vez que levanta com uma cara ruim. Também quando eu vou fazer um dever que não consigo fazer em casa, aí eu fico estressada. Em Janeiro eu vou voltar a estudar! (fala com alegria). (Valéria)

Quando alguém fica fazendo, fica falando coisa de baboseira eu fico irritado! A pessoa falar, ó teve um amigo meu que falou assim: fica falando coisa que não existe, aí fica atestando coisa que não existe. (Daniel)

Às vezes eu fico nervosa, porque eu tenho raiva, porque eu não gosto de ficar internada. Aí eu fico nervosa e estressada. A semana passada, eu quase fico internada porque não funcionou, aí no outro dia, a médica mandou vim no outro dia, aí concertou e internou. (Laura)

Carmen e Laura escolheram a carta “Ansiosa” para expressar o desejo que sentem e relação a:

Tudo. Um dia quando minha mãe vai comprar uma coisa, uma casa, uma coisa... me deixa ansiosa. E sobre tratamento sim e não. Nada, nada... Eu já falei, que é no tempo de Deus. Eu não tenho que ficar! Se ele quiser. (Carmen)

Transplantar. Transplantar, ficar livre, ficar feliz com as minhas irmãs, mãe e pronto. (Laura)

Amedrontado, desesperado e triste

Estas cartas foram selecionadas apenas pelas meninas que trouxeram seus sentimentos negativos em relação, especialmente, à doença apesar de expressarem situações do dia a dia que lhes causam medo, tristeza ou desespero:

Medo de tudo, de tudo assim, de tudo que dá medo. Medo de negativar17, ah... Medo de tudo. (Carmen)

Eu vejo todo mundo morrendo, aí eu fico com medo. Valéria mesmo transplantou aí não deu certo. Eu fico com medo de transplantar e não dar certo. [...] O meu pai tá vindo. Aí minha mãe vai ficar uns dias lá no interior, aí vai ficar eu e minha irmã. Ela só vai levar a minha outra irmã. Me dá vontade de viajar e eu não posso. Aí eu fico triste. (Laura)

Medo de noite, medo de noite quando eu durmo, aí eu fico imaginando coisa. Quando eu vejo umas pisada, eu me embrulho todinha. Quando meus irmãos levanta para ir no banheiro, ‘ôxi’, eu tomo choque, me embrulho todinha. E de fazer o transplante. De tomar furada. (Valéria)

As baratas me deixam desesperadas. Teve um dia que eu e minha mãe viu uma barata e a gente pulou pra dentro do quarto.(Carmen)

Às vezes eu venho pra cá aí eu fico triste porque eu fico com medo do meu cateter não funcionar, aí eu fico triste, aí eu fico preocupada. Quando eu ligo, eu fico nervosa de não funcionar, aí eu fico nervosa. Se não fazer

17

Negativar na máquina de hemodiálise é quando a fístula ou o cateter está dando fluxo sanguíneo menor ou maior do que o considerado adequado para realizar a filtração na diálise do paciente. No caso do cateter (comum em crianças), quando fica negativando o paciente se sente muito incomodado porque o profissional de saúde (enfermagem ou equipe médica) além de tentar reposicionar o cateter para normalizar, pode pedir ao paciente que se movimente o mínimo possível para manter este cateter na posição colocada. Quando há problemas em relação a isto, a hemodiálise pode ser prejudicada e o médico orienta que o paciente retorne no dia seguinte para fazer uma sessão a mais de hemodiálise naquela semana.

hemodiálise aí morre, porque o pulmão incha e não aguenta aí eu fico preocupada. (Laura)

Com o transplante. Que esse daí não deu certo e eu fico preocupada de fazer outro. Eu fico com medo, mas eu quero fazer outro. Eu fico com medo porque eu fiquei entubada. [...] Pra sair logo da hemodiálise, poder beber água, brincar estudar. (Valéria)

Culpado, confuso, decepcionado

Todos estes sentimentos estão relacionados a situações cotidianas vividas por estas crianças/adolescentes, nenhum deles trouxe sentimento de culpa (quando, por exemplo, come alguma coisa que não pode e passa mal), confusão ou decepção em relação à doença:

(decepcionada) Às vezes alguém me dá uma notícia boa ou uma notícia ruim em relação a tudo. (Carmen)

(decepcionada) Quando eu penso que vai passar um desenho, quando não passa. Aqui, é quando o almoço demora. (Valéria)

Às vezes tô com a cabeça em outro lugar e tô fazendo outra coisa! Minha mãe às vezes fica confusa, então eu também sou confusa. Eu tô andando, tô com a cabeça em outro mundo, aí eu tropeço. (Carmen)

(Culpado) Quando eu bato numa pessoa. Só isso! (Daniel)

Eu me sinto culpada por uma coisa que eu fiz sem querer. Hoje mesmo, de manhã, eu e minha mãe tava jogando o joguinho, aí eu peguei, não era pra comprar o terreno naquele lado, aí eu fui lá e comprei, aí ela falou assim: ah, não era pra comprar desse lado, aí eu falei desculpa! (Carmen)

Desconfiado, envergonhado

Carmen e Daniel exemplificam, a partir do que pensam ou experienciaram quando se sentem desconfiados e envergonhados:

Eu fico observando tudo. Eu não aceito nada de ninguém da rua. Eu sou desconfiada, isso aí eu sou mais, eu sou muito desconfiada. Aí né, quando eu dialisava lá em Ilhéus, a doutora da clínica disse assim: toma aqui um sonho de valsa. Aí eu não posso que tem amendoim. Aí eu, mas aí eu não posso! Aí ela disse: ah Carmen, eu sou sua médica! Mas eu sei muito mais que você tá! Ela ficou impressionada, a médica. (Carmen)

(desconfiado) Risos... Quando alguém chega estranha aqui e fala com outra pessoa... tem alguma coisa lá! (Daniel)

Por causa que eu tenho vergonha de falar em público. Na igreja é um pouquinho só. (Daniel)

Cansado

A carta que ilustra e remete a situação de cansaço foi selecionada por um dos meninos e por todas as meninas:

Um pouquinho, às vezes. Uma vez por dia. Umas 3 horas. (Adriano)

Depois da diálise. A diálise e os dois (fazer hemodiálise, acordar cedo e me transportar de casa para o hospital). Quando chego cansada eu deito. Tem vez que eu nem deito, de tarde eu não deito e tem vez que eu deito meia noite. Eu não tenho sono e também fico assistindo, aí não dá sono. (Carmen) Quando eu saio daqui da hemodiálise eu fico cansada. Chego com vontade de dormir. às vezes eu chego 1 hora, aí lá em casa eu vou de ônibus. Quando eu subo a ladeira eu fico cansada, quando eu desço eu fico cansada, aí eu não tô com a cadeira mais não. Saio daqui, vou pro ponto, às vezes eu sento, ás vezes não. Ônibus cheio, às vezes vou em pé, aí eu fico cansada. O ponto fica um pouquinho longe, aí eu vou andando, aí eu subo escada. E quando eu chego em casa eu deito, almoço e vou dormir. (Laura) Quando eu chego em casa daqui da hemodiálise eu chego cansada estressada. Quando eu chego, aí eu tomo banho, tomo café e aí eu vou dormir. Eu acordo cedo por causa dos meus irmãos quando vai pra escola Alisson Vitor, Aladim e Graciano quando vai pra escola acorda na pior zuada. 6:20h eles vai pra escola na maior zuada, aí não deixa ninguém dormir. Por causa da viagem eu canso. Hoje mesmo nós não sabe que horas vai chegar em casa, porque tem uma mulher que traz um menino pra tomar sangue e sai 6 horas, que sangue demora, aí gasta 4 horas e a gente vai chegar umas 10 horas lá, aí mamãe tá brigando lá pra dar o carro pequeno. Mamãe disse se não dar o carro pequeno ela vai botar na justiça. O carro pequeno sai cedo, só pega nós e outra pessoa, mas a pessoa sai cedo, aí nós chega em casa 3 horas. (Valéria)

Essas situações expressas se dão pelo esforço diário de cada um, em manter-se no tratamento, pois como foram colocadas várias vezes nas falas apresentadas no capítulo anterior, o deslocamento até o hospital durante três vezes por semana, além do desgaste do próprio processo hemodialítico, causam muito cansaço no paciente e consequentemente no acompanhante que acorda muito cedo também.