• Nenhum resultado encontrado

3.1 EXPERIÊNCIA, CUIDADO E SELF: implicações na escolarização da

3.1.3 Corpo

Nesta parte do texto, foi possível revisitar a noção de corpo, enquanto mediador do ser no mundo e a partir de alguns pensadores, buscou-se o conceito de corpo na intenção de mostrar que essa noção depende de contextos e de compreensões, tendo vista os diferentes conceitos de corpo que se estabeleceram durante a história da humanidade e que tentou criar o homem sem imperfeições por meio de um corpo perfeito, não consolidando o corpo dentro de uma definição única.

Sendo a espécie humana a única na natureza capaz de objetivar sua vontade, sua intencionalidade, o culto ao corpo, hoje difundido pela via midiática de consumo, vende exatamente a mesma ideia do mito narcísico às pessoas: o esguio, o magro, o forte, o robusto, o alto, o belo e o perfeito são conceitos que atravessam o imaginário humano e que não levam em consideração a deterioração na qual os corpos se submetem ao tentar entrar neste “padrão”. Tendo em vista esta realidade, o corpo deixa o seu pertencimento do campo objetivo e passa a residir também na subjetividade. Ele passa a ser essencial para o controle

sobre os indivíduos, sendo o objetivo da vida na sociedade contemporânea a busca pelo belo e pelo perfeito, o medo da velhice e da morte e o sonho da vida eterna.

As definições e as representações do corpo são construídas cultural e historicamente pelo próprio homem e as sociedades diversas lançam seus olhares culturais para uma construção simbólica sobre o corpo (LE BRETON, 2012). Sobre isto também, Mauss (2003) nos apresenta considerações sobre o corpo como sendo o primeiro e mais natural instrumento do homem, para que no decorrer do seu desenvolvimento, os homens, em cada sociedade em que vivem, apreendam seus próprios hábitos, que são definidos pelo autor como sendo as técnicas do corpo.

Todos os modos de agir são considerados por Mauss (2003) como técnicas do corpo que para ele é o ato tradicional e eficaz indissociado do seu instrumento (corpo). O adulto não tem maneira natural, pois é na infância que se inicia a apreensão destas técnicas, sendo a adolescência o momento decisivo, pois “é nesse momento que eles apreendem definitivamente as técnicas do corpo que conservarão durante toda a sua idade adulta” (MAUSS, 2003, p. 214).

Temos a partir do objeto estudado, dois amplos e complexos caminhos sobre o estudo do corpo. Um deles se refere à ideia de como o corpo funciona em sua anatomia e fisiologia, sendo este aspecto, construído a partir das representações dos sujeitos naquilo que ele busca conhecer e que é constituído em suas experiências. O outro caminho se refere às construções subjetivas sobre o corpo envolvendo seus cuidados, suas angústias e também seu próprio self.

Sobre o saber biomédico do corpo, Le Breton (2012, p. 128) em seu estudo antropológico do corpo na modernidade, destaca que:

Cada um recebeu uma aparência de saber anatômico e fisiológico nos bancos da escola ou do liceu, observando o esqueleto das salas de aula, as ilustrações dos dicionários ou assimilando os conhecimentos vulgarizados que se trocam cotidianamente entre vizinhos e amigos e que provêm da experiência vivida e do contato com a instituição médica, a influência das mídias etc. mas esse saber permanece confuso. Raros são aqueles que conhecem realmente a localização dos órgãos e que compreendem os princípios fisiológicos estruturando as diversas funções corporais. Estes são conhecimentos mais do que rudimentares para a maioria dos atores. Eles não aderem a eles, de fato, a não ser de maneira superficial. Na consciência que ele tem daquilo que o funda fisicamente. Daquilo que constitui o interior secreto do seu corpo, o ator recorre paralelamente a muitas outras referências. (LE BRETON, 2012, p. 128).

Quando nesta pesquisa conversamos sobre o que cada um pensa a respeito da doença renal crônica, as explicações além de serem baseadas num conhecimento dentro da perspectiva do saber biomédico, também nos apresentam muito do que se discute

teoricamente no campo sócio-antropológico, não sendo possível vê-los nos discursos de maneira dissociados no que cada um organiza psicologicamente, e que fazendo a relação com o que se falou anteriormente sobre as técnicas do corpo “o que sobressai nitidamente delas é que em toda parte nos encontramos diante de montagens fisio psicossociológicas” (MAUSS, 2003, p. 420).

Em vista desta perspectiva que é marcada culturalmente de maneira muito forte, a primeira ideia de corpo é a ideia do corpo anatômico e quando se procura entender o que a pessoa que tem e convive com a doença renal, ela procura materializar tendo como base o que sabe da estrutura e funcionamento do sistema urinário, iniciando nesta explicação e aos poucos se situando num contexto mais amplo a partir das suas representações, experiências e sentimentos.

A concepção de corpo que nos apoia teoricamente é de base fenomenológica por acreditar que este estudo filosófico nos baseia de forma holística, contemplando o que aparece nas falas trazidas neste trabalho. De maneira bastante geral, o pensamento de Ponty (1999) em Fenomenologia da Percepção nos capítulos que tratam do corpo, elucidam as complexidades nas várias facetas em que o corpo se apresenta.

Para o filósofo Ponty (1999), fenomenólogo que analisa o mundo enquanto fenômeno e como esses ocorrem na consciência, a ideia que se tem de corpo é profunda e complexa, transcendeos âmbitos do físico, do psíquico e do intelectual. Para ele, o corpo, enquanto fenômeno, não existe apenas como um objeto instituído, mas que carrega em si valores inerentes que o constituem, que o determinam, que o identificam e o validam, sendo o corpo o lugar de apropriação do espaço e objeto, o mediador de todas as experiências, o ponto de vista sobre o mundo e o veículo do ser no mundo em que o ser tem consciência do mundo por meio do corpo (PONTY, 1999).

A ideia de corpo no sentido da totalidade nos é apresentada por Copalbo (2011), a partir dos seus estudos da obra Fenomenologia da percepção (1999) de Ponty que fala do “corpo vivido” como sendo constituído do “corpo objetivo” e do “corpo fenomenal” ou “corpo próprio”. Para isto, iremos destacar que:

[...] este corpo vivido é ao mesmo tempo corpo objetivo e corpo fenomenal que se cruzam e se unem um no outro. Diz ele: “meu corpo é de uma só vez corpo fenomenal e corpo objetivo” (Merleau –Ponty, 1964ª, p. 179). Ele traz, desta forma o foco para o estudo da corporeidade, do corpo fenomenal ou vivido, corpo que se apresenta como o de uma subjetividade, corpo próprio possuidor de um esquema corporal dinâmico. (COPALBO, 2011, p. 34).

O corpo objetivo é a forma de ser no mundo e que dá, através do corpo fenomenal, a consciência do ser na esfera subjetiva. O corpo é completo e inacabado e apesar de cada um ter a mesma constituição e de cada um apresentar suas singularidades a partir das experiências individuais e com o outro. Sobre isto, vimos que:

Não basta que um dos sujeitos conscientes tenham os mesmos órgãos e o mesmo sistema nervoso para que em ambos as mesmas emoções se representem pelos mesmos signos. O que importa é a maneira pela qual eles fazem uso de seu corpo, é a informação simultânea do seu corpo e de seu mundo da emoção. O equipamento psicofisiológico deixa abertas múltiplas possibilidades e aqui não há mais, como no domínio dos instintos, uma natureza humana dada de uma vez por todas. O uso que um homem fará de seu corpo é transcendente em relação a esse corpo enquanto ser simplesmente biológico. (PONTY, 1999, p. 256).

Estas complexas e profundas ideias de Ponty (1999) nos apresenta o corpo como um

espaço expressivo que garante a sua existência; o corpo enquanto fenômeno na sua

capacidade singular de apreender o sentido; o corpo expressivo e reflexivo que é resultado de suas ações; e o corpo sexuado no movimento da existência em direção ao outro, ao futuro.

Nesta perspectiva, Le Breton (2012) em sua análise antropológica se reporta à ideia de corpo no campo da fenomenologia e que, de um certo modo, nos ajuda a compreender e a ilustrar as ideias de Ponty sobre o corpo.

Fenomenologicamente, conforme dissemos, o homem é indiscernível de sua carne. Esta não pode ser mantida por uma posse circunstancial; ela encarna seu ser-no-mundo, aquilo sem o que ele não seria. O homem é esse não-sei- o-que e esse quase-nada que transborda seu enraizamento físico, mas não poderia ser dissociado dele. O corpo é a morada do homem, seu rosto. Momentos de dualidade em uma vertente desagradável (doença, precariedade, deficiência, fadiga etc.), ou em uma vertente agradável (prazer, ternura, sensualidade etc.), dão ao ator o sentimento de que seu corpo lhe escapa, de que excede aquilo que ele é. [...] faz do homem uma realidade contraditória, onde a parte do corpo está isolada e afetada por um sentido positivo ou negativo, segundo as circunstâncias. (LE BRETON, 2012, p. 240).

O estudo da corporeidade é de grande importância nesta pesquisa, pois como considera Nettleton apud Canesqui (2010, p. 321), “a enfermidade limita o funcionamento “normal” do corpo, com profundas consequências (sic) sociais, políticas, econômicas e psicológicas”. Neste sentido, as questões do corpo, por um lado aparecem explícitas nos relatos sobre as dificuldades enfrentadas pelas crianças em frequentar a escola, nas relações que estabelecem com os membros da escola, em suas aparências corporais, nos estigmas, bem como em seus imaginários sobre as mudanças que são visíveis através do corpo. E por outro lado, a ideia do controle do corpo sobre as emoções provocadas pelos sofrimentos

vivenciados pelas mães que necessitam conter-se para encorajar o filho no enfrentamento de suas experiências com a doença.