• Nenhum resultado encontrado

4 PERCURSO DA PESQUISA: DESCRIÇÃO DO TRABALHO DE CAMPO

5.2 ESCOLARIZAÇÃO NO CONTEXTO DA DOENÇA

5.2.2 Significados da escola

Quando conversamos a respeito da importância da escola diante da existência com a doença, foi possível perceber momentos de reflexão por parte das mães que procuram conduzir cada dia de vida junto ao seu filho na busca do que cada um necessita e nas condições impostas diante do que lhes é possível e assegurado. As crianças/adolescentes também expressaram seus desejos e sentimentos em relação à visão que tem sobre a escola em suas vidas.

As impressões dadas pelos meninos e meninas são compostas de exemplos de suas situações vividas e de seu ponto de vista construído, a partir do que a mãe ensina ou do que aprendem com suas experiências como trazem nos relatos:

É importante estudar pela nossa inteligência. Quando a gente for adulto a gente não vai poder se formar né, não vai poder se formar em nada. Vai ficar em casa, porque não estudou, não vai poder ser! Antes quando eu estudava, eu gostava, além de levantar cedo... é, mais eu gostava. Eu chegava lá, tinha uma professora. Eu nem ficava dentro da sala às vezes e mesmo assim a gente estudava também. (Carmen)

Acho importante estudar, tanto faz na escola quanto lá, lá na hemodiálise... Porque ensina mais pouco... lá ensina mais, lá no colégio. (Valéria)

Acho importante estudar, porque lá... lá aprende um bocado de coisa... A ler, a escrever, fazer contas... a gente faz tudo.Eu estudei, eu ia duas… três… quatro vezes na semana, segunda, quarta, tinha vezes que eu ia na quinta e na sexta de tarde eu ia para a escola em Feira (de Santana).(Daniel)

Acho (importante estudar). Pra aprender a ler e a escrever... Brincar. (Davi)

As crianças/adolescentes que falaram da importância que atribuem à escola estão relacionadas a aprender, especialmente, a aprender a ler, escrever e fazer contas. Como se para elas, mesmo em meio à doença renal, é possível aprender, ser “inteligente” e

consequentemente, não se sentir tão distante das outras pessoas que não têm a doença. Na fala destes, fica expresso o quanto é necessário e importante estudar, mesmo que seja apenas durante as sessões de hemodiálise para aprender pelo menos um pouco.

Interessante o esforço coletivo vivenciado por Marcelina, em não faltar às aulas, mesmo no dia da hemodiálise, pois a escola adequou-se às necessidades da menina, que mesmo chegando atrasada por viajar até a capital, não desanima junto à sua mãe em ir aos dias de segunda, quarta e sexta no turno vespertino e nos outros dias, no seu turno normal:

Que ela num perde assim, num perdeu aquele vontade, que quando ela chega, ela... à vez o motorista, ele vai levar algumas pessoas que vai em hospital, quando chega em Feira (Feira de Santana), por mais que ele vai ligeiro pra ela chegar lá, assim quando chego em casa, que eu entro, que arrumo ela, faço tudo, penteio o cabelo, que faço, que pego o lanche dela, alguma coisa que compro, que dou a ela que possa comer, ela chega lá é duas hora, mas mesmo assim ela entra porque a dona da escola disse que ela pode entrar, a professora vai tá lá pra dar aula a ela, dar os dever, tudo, passar tudo o que foi de de manhã pra ele num.. (a menina diz: mas de tarde eu só brinco). Ela gosta de ir, tem dia que eu digo: Marcelina tu vai? Vou sim que eu gosto de minha escola, o que é que eu vou ficar fazendo dentro de casa? Vou pra minha escola sim... aí eu levo, os vizinho, as vizinha diz: ô Mãe, você é malvada! Eu digo: Malvada por quê? Se ela tá indo pra escola! Eu digo assim: você quer ir Marcelina, já é 2 horas? Não, vou sim, que tu sabe que tá fazendo prova, revisão, aí eu vou! (mãe de Marcelina)

A mãe de Carmen avalia a perda que a filha teve no ano em que não frequentou a escola, tanto pela aprendizagem, quanto pela socialização para ter contato com outras crianças e conviver em outro ambiente, pois a escola representa para ela um lugar de aprender e interagir:

Eu acho assim que ela tem que estudar. Tanto que eu acho que esse ano assim, é o ano mais perdido pra ela né, a ainda mais por conta da deficiência visual, então acaba sendo um pouquinho mais difícil do que se fosse com uma criança que enxerga, então eu quero assim: fez o transplante e a médica vai dizer: não, tem que ficar tantos meses em casa e a gente vai obedecer isso né. Mas tando tudo direitinho, eu faço questão que ela vá pra escola, mesmo se ela tiver fazendo hemodiálise, que eu peça a Deus que não, que ano que vem ela já esteja livre, mas vai a tarde pra escola e no dia em que ela não esteja bem, faz em casa, vai no outro dia, eu acho muito importante, mesmo porque não tem nem só a questão do estudo, mas do relacionamento dela com outras crianças, de tá numa escola, de tá com outras crianças. Que aqui é só eu e ela, então ela tem que ter a vivência com outras crianças. (mãe de Carmen)

Duas mães que convivem com o abandono escolar do filho lamentam pela situação por trazer prejuízos à aprendizagem dos filhos e defendem que, nesta situação, é melhor continuar

estudando mesmo durante a hemodiálise, ou seja, ver uma forma de possibilitar a inclusão do filho na escola:

Eu acharia melhor ele estudar - né! - porque tem vez que ele fica mandando as pessoas ler as coisas. Falei, "tá vendo? Por isso que é ruim você não ir para o colégio, porque você tem que ir no colégio para você aprender, para poder não estar perguntando às pessoas". É o que eu falo a ele, né! E depois que ele transplantar, ele vai ter dificuldade de seguir tudo direitinho. Tem que pegar no pé dele. (mãe de Davi)

Ô eu queria tanto que ela estudasse, que Valéria fosse pra escola, até o dia que eu disse: você vai pra escola hoje Valéria, aí ela começo a chorar, começou a ficar se acabando de chorar, aí eu disse: ah então eu não vou levar você chorando não. Eu queria, queria sempre que Valéria estudasse que nem eu cansava de dizer: Valéria vai pra escola, Valéria tem que ir pra escola, mas ela num quer ir, mas eu queria que ela “isse” pra escola agora fazendo o tratamento dela, pelo menos uma vez, mas eu queria tanto que ela estudasse agora![...] Eu sempre eu converso com ela, às vez que ela tem realmente que estudar assim, mas ela me disse assim: mãe, mas eu tô estudando com a professora na hemodiálise, eu tenho as professora lá da hemodiálise do hospital, pra que eu vou estudar aqui? Mas Valéria! Eu num dizia a ela, é importante a escola daqui primeiro que lá elas lhe ajuda. Porque a escola daqui é mais importante, passar os dever e as outras de lá lhe ajudar. Aí ela disse que não queria, aí como as outras tão ajudando a ela na hemodiálise, aí tá bom pra ela, pelo menos não perdeu a escola, não tá sem estudar, fora, fora. Tá estudando um pouquinho, mas tá na hora da hemodiálise. (mãe de Valéria)

O diálogo apresentado entre Valéria e sua mãe, além de demonstrar o que elas pensam da importância da escola, nos apresenta os valores que ambas atribuem à classe hospitalar, quer seja como na visão de Valéria para substituir a escola comum, ou também como a de coadjuvante no processo de escolarização no contexto do hospital como pensa a mãe. A classe hospitalar para elas vem para resgatar o que não está totalmente perdido, trazendo para próximo de Valéria o contexto da escola que poderia ter ficado totalmente para trás.

Em contrapartida, mesmo angustiada diante das circunstâncias vividas, a mãe de Adriano compreende que é melhor que o filho só retorne para a escola depois do transplante para garantir a dedicação plena sem tanta correria como na hemodiálise, mesmo que o tempo passe e acumule muitos prejuízos e lança alguns questionamentos:

Eu acho que ele só vai valer a pena depois de transplantado, para ele ir no horário certinho todos os dias. Porque ir apenas três vezes por semana, no dia que puder, não vai ajudar muita coisa. Porque ele vai aproveitar totalmente, vai estar bem. Agora, vejo que vai atrasar muito, porque no caso dele mesmo que já está grande, como ele vai para uma sala de quarto ano? Às vezes isso me angustia, porque às vezes eu falo assim: vai ser quarto ano, as crianças são pequenas e ele deste tamanho; ele vai para uma sala assim? Que turma ele vai ficar? Que turma?(mãe de Adriano)

Também com este mesmo pensamento, Daniel considera que só depois do transplante pretende retornar ao convívio escolar e avalia as dificuldades que enfrenta em conseguir dar continuidade aos estudos no contexto da hemodiálise:

Pra continuar estudando, só quando eu transplantar. Porque é melhor. Não... não fica na correria. Só depois do transplante. É por causa que fica complicado, porque você passa mal no outro dia, aí não vai no outro. [...] Fazendo o transplante, aí crescer, eu vou poder ir para a escola normal, todo dia, vou poder acordar a hora que eu quiser. (Daniel)

A reflexão da mãe de Daniel sobre o que observa na sua convivência com outras mães no hospital contribui no que ela expressa da importância da escolarização na vida da pessoa com doença renal, quer seja antes ou depois do transplante, pois em sua forma de pensar, o papel da família e o modo como concebe a doença e seu tratamento pode contribuir ou retardar o desenvolvimento das habilidades que as crianças e adolescentes em hemodiálise poderiam adquirir com os conhecimentos escolares:

Porque assim, a gente acaba tentando compensar - a verdade é essa - de alguma forma, para não deixar... que eu fico triste quando eu vejo crianças aqui que ainda não sabem ler né! Porque o pai e a mãe ainda acham assim, porque eu acho que na visão, por dentro, por dentro, eu acho que às vezes, acham que não vale muito à pena. E é isso que até o próprio pai, o próprio responsável, tem que mudar, que eles são capazes. Eles podem ultrapassar todas as perspectivas que são dadas a eles. Porque assim, eu conheço gente transplantada que hoje são jornalistas, são advogados. Quer dizer, passou pela hemodiálise, passou por todo esse processo, veio no transplante, mas continuou estudando, e foi até um curso superior. Então, há sim condição. Então eu acho que o pai e a mãe, eu acho que isso modifica muito na vida do paciente, porque se ele tiver a mesma visão de "para que estudar?", "para que eu pegar no pé?", "para que aprender a ler, se vai morrer?", "vai levar para o túmulo?"... eu acho que tem que mudar a visão...Eu já ouvi isso, não diretamente com essas palavras, assim, mas, assim, "ah, fazer o bichinho ficar..." eh... "acordar cedo? Ah, para quê?", "ah, não quer ir para a escola, não vai". Se a criança acordar com vontade de ir para a escola, vai. Também, no dia que ele não quiser mais, acabou. Quem não quer, não quer, e eu já não ajo dessa maneira. Eu digo assim, como eu já falei, eu crio o meu filho para a vida, não é para a morte. Vejo o meu filho se formando, assim, Deus permitindo, o meu filho se casando, construindo família. Então, eu vejo dessa forma. (mãe de Daniel)

É possível a partir deste relato, pensar no que a permanência na escola pode representar na vida destas mães, em relação ao projeto de vida que desejam para os seus filhos. Essa permanência, além de marcar que o filho por um lado não difere muito das outras crianças, por outro, ajuda às mães a continuarem acreditando na “cura” da doença do filho, perspectivando um futuro profissional, com trabalho e família para o filho, sempre pensando na possibilidade de ter uma vida “normal” diante da doença renal.

Com estas formas de pensar, as mães buscam maneiras de compensar as perdas escolares dos filhos em casa ou fora da escola, quer seja no auxílio à aquisição de leitura e escrita, no estímulo à leitura e incentivo ao interesse da criança em determinados assuntos ou também no apoio ao trabalho da classe hospitalar junto ao que a criança estuda no hospital com a professora.

Cada uma ao seu modo, procura observar as necessidades da criança, comparando como era a situação antes da hemodiálise, no sentido de tentar suprir ao seu modo o que cada um deseja e necessita como surgem nos relatos:

Assim, até o transplante e o pós operatório dele, até um período, eu ainda pagava um reforço, aonde pedi à menina que trabalhasse muito redação, leitura e matemática. E aí ele foi para a aula de canto. (mãe de Daniel) Em casa a gente coloca para fazer leitura, para escrever, fazer cópia... É. Antes, como eu trabalhava, eu botava mais no reforço. [...] Aí eu sempre botei em reforço desde a alfabetização. Ele só não foi para reforço antes da alfabetização. Mas da alfabetização ele fazia reforço com a mesma professora. Era de manhã e de tarde ele fazia com a mesma professora. [...] Tem a outra irmã dele, a irmã dele, mais velha, sempre quando precisa de alguma coisa, ela quem ensina. (mãe de Adriano)

Então a gente vê que em questão de entender aparelhos, coisa eletrônica, ele vai, ele conversa com as pessoas normal, a única coisa mesmo é a rotina de escola para ter conteúdo e passar de ano. Isso aí ele não está tendo. Mas apesar de não ter muito convívio, porque eu procuro também, na medida do possível, quando pode, quando ele está em condições, de sair, de levar, de ele ter contato, eu não fico com ele só dentro de casa. Vai no cinema, se ele escolhe o filme que gosta, a irmã vai, leva, se tem um circo que ele gosta, leva para ele não ficar uma criança isolada. Leva no play que ele gosta muito. (mãe de Davi)

A atenção da mãe ao que é despertado na criança, através do trabalho da classe hospitalar é evidenciado nas falas da mãe de Carmen e Laura que se importam com a alfabetização das filhas e contribuem com a alternativa de escolarização ao qual as mesmas têm acesso. Cada uma expondo as formas encontradas nas necessidades e possibilidades que possuem:

Então, eu tento ajudar ao máximo dentro do que eu posso, naquilo que é passado pela professora lá no hospital e dar continuidade, incentivar ela nessa questão de aprender o Braille, então, as caixinhas que vêm com Braille a gente vai vendo, a questão até de escrever no computador, a gente baixou o programa, então ela já escreve tudo no programa, tudo que às vezes, palavras que ela acha mais difíceis, eu vou pedindo pra ela soletrar, pra ver se ela tá fazendo direitinho, então assim, o tempo todo a gente tá interagindo pra poder dar continuidade né!(mãe de Carmen)

Ah, em casa eu ensino. A pró da hemodiálise passa as tarefas para casa, eu sento com ela, é ensino ela a fazer as tarefa, eu ensino ela a ler, então ela tem uma irmãzinha que ajuda muito, aí na escolinha da hemodiálise eu acho que ela tá desenvolvendo um pouco, porque antes ela era uma criança que não queria fazer nada, mas agora ela já tá começando a fazer. (mãe de Laura)

Mesmo sem apresentar muitas dificuldades e esforçar-se para não deixar de frequentar a escola, a mãe de Marcelina expõe como ao seu modo contribui com a aprendizagem da filha e como a professora da escola avalia o desempenho da aluna diante de suas faltas por conta dos internamentos em decorrência da doença:

Eu ensino, eu que sou a professora da banca dela, sempre fui. Gritando, por isso que hoje sabe ler e escrever. Eu que digo que sou a professora da banca porque a banca você paga e o menino faz o dever se quiser que tem banca assim, então eu que ensino os dever a ela desde quando ela foi pro infantil, entrou nos colégio, eu que ensino os deveres dela. E ela sempre foi muito bem na escola, quando tem reunião, aí elas me chama, sempre falava dela, disse que ela era uma aluna boa, pegava tudo no ar. Aí a professora dela disse: como agora mesmo que a senhora tá vendo mãe, que ela tá fazendo o tratamento e passou quatro mês e três dias presa, morando dentro do hospital e ela veio e fez prova que menino que tá vindo a semana toda perdeu nas prova e ela não. Então ela disse que ela é inteligente, uma boa aluna. (mãe de Marcelina)

5.2.3 Relação escola X doença

Entender as necessidades de crianças e adolescentes com doença crônica para, a partir daí, garantir a assistência plena em saúde e educação é importante para o caminhar de todos os processos que os envolvem, pois nem sempre o que pode ser realizado com todos é possível acontecer da mesma forma com a criança ou adolescente que tenha determinados tipo de doença, exigindo-lhes cuidados que se não acontecem podem colocar a vida destes acometidos em risco. Assim acontece com quem possui a Insuficiência Renal Crônica, especialmente com o trato na escola junto aos colegas e aos demais integrantes deste espaço.

A relação de diálogo entre a escola e a família da criança é de grande importância, pois faz-se necessário haver um entendimento do que é a doença, dos cuidados, por causa da hemodiálise, explicando como funcionam, qual a medicação que a criança usa diariamente e que pode ocorrer em horário da aula, os cuidados em relação ao acesso da diálise e à alimentação. Este diálogo, às vezes, ocorre de forma tranquila ou ainda de maneira muito tímida, mas também pode não acontecer da maneira como desejada.

Na descrição feita pela mãe de Marcelina, a escola além de acolher e ajustar-se aos horários da aluna, mantém um cuidado especial em relação ao controle da ingestão de líquido