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3.1 EXPERIÊNCIA, CUIDADO E SELF: implicações na escolarização da

3.1.4 Self

As discussões relacionadas a identidade (biográfica e social) são bastante amplas e proporcionam uma nova forma de enxergar no mundo e perceber os valores que emergem na sociedade contemporânea. Diferentes autores abordam questões, sendo que algumas destas, apresentam-se mais próximas a este estudo. O conceito de identidade para Hall (2006) se estrutura na concepção de uma construção social estabelecida e faz os sujeitos se sentirem mais próximos e semelhantes. Bauman (2005) desenvolve a ideia da identidade como algo criado, discursivamente elaborado, flexibilizando os parâmetros de identificação e pertencimento. Giddens (2002) defende que a identidade é construída através do paralelo entre o modo de funcionamento das instituições na sociedade moderna e a vida dos indivíduos inseridos na atual sociedade.

A partir dessas considerações que dialogam sobre a temática da identidade, compreende-se que há duas vertentes: uma diz respeito à identidade coletiva ou uma identificação social de um determinado grupo, ou seja, o indivíduo definido socialmente; e a outra refere-se a um processo identitário biográfico, estando relacionado à forma como os sujeitos constroem a sua trajetória nos seus diversos aspectos para uma construção subjetiva de sua própria identidade – seu self - no contexto atual, sendo esta última, a que nos deteremos aqui.

Em Identidade e Modernidade, Giddens (2002) discute a identidade do eu (self) com ênfase principal no surgimento dos mecanismos de autoidentidade. A dialética do local e do global nas condições de vida contemporânea são os dois pólos das transformações ocorridas na formação da autoidentidade no contexto atual, ou seja, as mudanças nos aspectos pessoais estão intimamente relacionados às conexões sociais (a relação entre o eu a sociedade)mais amplas.

Como exemplo, o autor demonstra que as influências de acontecimentos distantes a eventos próximos tornam-se cada vez mais comuns na alta modernidade através da mídia (impressa e eletrônica) e dos meios de comunicação que têm influenciado tanto a autoidentidade, quanto a organização das relações sociais. A identidade (self) para este autor seria construída nos tipos de relações características das sociedades modernas e a vida dos indivíduos.

A criança que faz hemodiálise constantemente é tratada como sendo uma criança com uma condição específica intrínseca a ela na condição de ser renal, ou seja, comumente ela é tratada como “a renal” ou “o renal”, essa forma também influencia na maneira como ele constrói seu self, na relação com a doença crônica, parte do princípio de que é renal e todas as suas vivências e escolhas sofrem influências sobre isso, ao invés de conceber que está com a doença que requer cuidados especiais. Para tanto, os sentidos e significados que a pessoa com a doença renal atribui à vida, pode sofrer influência dessa maneira de se ver e de se compreender inserida na sociedade, e por este motivo, a discussão sobre o self se faz importante neste trabalho, tendo em vista as muitas contribuições de autores que tratam desta temática.

Alguns estudos dessa natureza mostram que a vida da pessoa com doença crônica passa a ser vista como uma bifurcação, como se vivesse o antes e o depois da doença, como uma espécie de reinvenção ou como uma disrupção. Bury (2011) chama esta condição de ruptura biográfica, a partir das ideias de Giddens (2002) ao discutir sobre o risco e os estilos de vida, ambos estão relacionados à construção da(s) identidade(s) desses indivíduos (crianças e adultos).

Giddens (2002) traz uma discussão em relação às experiências disruptivas de uma maneira mais ampla, ao tratar de uma “situação crítica”, defende que as rupturas são provocadas por eventos importantes localizados biograficamente, a partir de situações cotidianas e rotineiras em situações perturbadoras e não especificamente relacionada a doença como enfatiza Bury.

A doença crônica é conceituada como um tipo particular de evento disruptivo, sendo um “tipo de experiência em que as estruturas da vida cotidiana e as formas de conhecimento que as sustentam se rompem” (BURY, 2011, p. 43). Ela envolve um reconhecimento dos mundos da dor e do sofrimento, e as possibilidades de conviver com a doença requer desse indivíduo uma reconstrução biográfica que implica em uma nova forma de viver e conviver diante das circunstâncias vivenciadas, sendo ele levado também a rearranjar seus recursos cognitivos e de relações sociais, bem como da sua autoidentidade:

Essa ruptura realça os recursos cognitivos e materiais disponíveis aos indivíduos. Exibe as principais formas que as explicações para a dor e o sofrimento vivenciados na doença assumem na sociedade moderna, a continuidade e descontinuidade dos modos de pensamento profissional e leigo e as fontes de variabilidade da experiência originada da influência das restrições estruturais sobre a habilidade de adaptação. (BURY, 2011, p.52).

Para o autor, a doença crônica provoca uma ruptura na vida dos indivíduos e um processo de reformulação de significados em função das consequências da doença na vida dos acometidos por ela e na ressignificação da autoimagem. Canesqui (2007) nos chama a atenção para as peculiaridades dessa discussão trazida por Bury (2011) em relação à doença crônica na infância, pois para esta situação, o que acontece é a ideia de continuidade e de confirmação ou reforço biográfico, ao invés de ruptura que pode estar presente na vida dos pais que acompanham estas crianças/adolescentes com IRC, tendo que rearranjar as suas trajetórias de vida. Sobre isto, é importante considerar que:

[...] A criança é tomada como um ser em desenvolvimento, ou seja, em transformação. Isso introduz novos elementos no processo de adoecimento crônico, inclusive, quando este é abordado a partir da perspectiva biomédica, uma vez que o tratamento e o curso clínico da doença sofrem a influência do processo de crescimento e desenvolvimento infantil. Porém, para além da perspectiva biomédica, na medida em que a criança é dimensionada temporalmente em seu devir, projeta-se sobre ela todo um conjunto de possibilidades futuras e expectativas presentes relacionadas às trajetórias de vida de seus pais, familiares, etc. Assim, por exemplo, a maneira como essas pessoas reagem ao diagnóstico está diretamente relacionada não só à definição biomédica da gravidade da doença, mas também ao conjunto de eventos biográficos e projetos de vida familiares relacionados àquela criança. Descobrir que seu filho está gravemente doente põe em causa o sentido da própria vida e da sua trajetória biográfica. (CASTELLANOS, 2007, p. 383).

A criança, com doença crônica, encontra-se inserida em realidades diversas, mas diretamente relacionada ao mundo da dor, das limitações, do cuidado, dentre outros, o que a faz apreender valores e estilos de vida para compreender e conviver de modo a constituir-se para dar continuidade em sua identidade pessoal e coletiva, a medida em que interage com seus pares, “reproduzindo e reinventando o mundo” (VASCONCELLOS, 2007, p. 8). A compreensão teórica destes aspectos, nos ajuda no entendimento a respeito do que há de específico e do que emerge da análise empírica desta pesquisa.

Para prosseguir no que está aqui proposto, sigo descrevendo a forma como a pesquisa de campo foi realizada, e assim, apresentar os relatos e o conteúdo do que emergiu no campo, para posteriormente desenvolver uma discussão da compreensão a respeito dos significados da escolarização destas crianças/adolescentes, a partir das experiências e do que pensam os participantes deste estudo, tendo como base os conceitos e o referencial teórico aqui defendido.