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CÓDIGO DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR (LEI N 8.078, DE 11 9-1990)

DOS DIREITOS BÁSICOS DO CONSUMIDOR Art 6° São direitos básicos do consumidor:

12. ACESSO À JUSTIÇA

A proteção de acesso aos órgãos administrativos e judiciais para prevenção e garantia de seus direitos enquanto consumidores é ampla, o que implica abono e isenção de taxas e custas, nomeação de procuradores para defendê-los, atendimento preferencial etc.

13. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA

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13.1 Considerações iniciais

Já tivemos oportunidade de deixar consignado que o Código de Defesa do Consumidor constitui-se num sistema autônomo e próprio, sendo fonte primária (dentro do sistema da Constituição) para o intérprete.

Dessa forma, no que respeita à questão da produção das provas no processo civil, o CDC é o ponto de partida, aplicando-se a seguir, de forma complementar, as regras do Código de Processo Civil (arts. 332 a 443).

Entender, então, a produção das provas em casos que envolvam as relações de consumo é compreender toda a principiologia da Lei n. 8.078, que pressupõe, entre outros princípios e normas, a vulnerabilidade do consumidor, sua hipossuficiência (especialmente em técnica de informação, mas também econômica, como se verá), o plano geral da responsabilização do fornecedor, que é de natureza objetiva etc.

Ao lado disso, têm-se, na lei consumerista, as determinações próprias que tratam da questão da prova. Na realidade é a vulnerabilidade reconhecida no inciso I do art. 4° que principalmente justifica a proteção do consumidor nessa questão da prova199.

A primeira situação envolvendo provas na lei consumerista é a relacionada à responsabilidade civil objetiva do fornecedor pelo fato do produto e do serviço (arts. 12 a 14), bem como à responsabilidade pelo vício do produto e do serviço (arts. 18 a 20, 21, 23 e 24) e que se espraia por todo o sistema normado da Lei n. 8.078/90. Remetemos o leitor à leitura dos comentários a esses artigos, que fazemos mais à frente. Haverá, por exemplo, necessidade de o

consumidor provar o nexo de causalidade entre o produto, o evento danoso e o dano, para pleitear a indenização por acidente de consumo, como demonstraremos em nossos comentários.

E a produção dessa prova preliminar necessária se fará pelas regras do Código de Processo Civil, a partir dos princípios e regras estabelecidos no CDC.

Todavia, também essa prova, como qualquer outra que tiver de ser produzida, deverá guiar-se pelo que está estabelecido no art. 6°, VIII, do CDC (e também no art. 38, no caso específico da publicidade, como se verá).

13.2 Critério do juiz

Além de tudo o que dissemos acima, consigne-se que em matéria de produção de prova o legislador, ao dispor que é direito básico do consumidor a inversão do ônus da prova, o fez para que, no processo civil, concretamente instaurado, o juiz observasse a regra.

verossimilhança das alegações do consumidor ou sua hipossuficiência.

Para entender o sentido do pretendido pela lei consumerista é preciso primeiramente compreender o significado do substantivo “critério”, bem como o do uso da conjunção alternativa “ou”.

O substantivo “critério” há de ser avaliado pelo valor semântico comum, que já permite a compreensão de sua amplitude.

Diga-se inicialmente que agir com critério não tem nada de subjetivo. “Critério” é aquilo que serve de base de comparação, julgamento ou apreciação 200; é o princípio que permite distinguir o erro da verdade201 ou, em última instância, aquilo que permite medir o discernimento ou a prudência de quem age sob esse parâmetro.

No processo civil, como é sabido, o juiz não age com discricionariedade (que é medida pela conveniência e oportunidade da decisão). Age sempre dentro da legalidade, fundando sua decisão em bases objetivas.

O que a lei processual lhe outorga são certas concessões, como acontece, v. g., na fixação de prazos judiciais na hipótese do art. 13202 ou do art. 491203, ambos do Código de Processo Civil.

Assim, também, na hipótese do art. 6°, VIII, do CDC, cabe ao juiz decidir pela inversão do ônus da prova se for verossímil a alegação ou hipossuficiente o consumidor.

Vale dizer, deverá o magistrado determinar a inversão. E esta se dará pela decisão entre duas alternativas:

verossimilhança das alegações ou hipossuficiência. Presente uma das duas, está o magistrado obrigado a inverter o ônus da prova.

13.3 Verossimilhança das alegações

É fato que o vocábulo “verossímil” é indeterminado, mas isso não impede que da análise do caso concreto não se possa aferir verossimilhança.

Para sua avaliação não basta, é verdade, a boa redação da petição inicial ou qualquer outra. Não se trata apenas do bom uso da técnica de argumentação que muitos profissionais têm. Isto é, não basta relatar fatos e conectá-los

logicamente ao direito, de modo a produzir uma boa peça exordial.

É necessário que da narrativa decorra verossimilhança tal que naquele momento da leitura, desde logo, possa-se aferir forte conteúdo persuasivo. E, já que se trata de medida extrema, deve o juiz aguardar a peça de defesa para verificar o grau de verossimilhança na relação com os elementos trazidos pela contestação204. E é essa a teleologia da norma, uma vez que o final da proposição a reforça, ao estabelecer que a base são “as regras ordinárias de

experiência”. Ou, em outros termos, terá o magistrado de se servir dos elementos apresentados na composição do que usualmente é aceito como verossímil.

É fato que a narrativa interpretativa que se faz da norma é um tanto abstrata, mas não há alternativa, porquanto o legislador se utilizou de termos vagos e imprecisos (“regras ordinárias de experiência”). Cai-se, então, de volta no aspecto da razoabilidade e, evidentemente, do bom-senso que deve ter todo juiz205.

13.4 Hipossuficiência

O significado de hipossuficiência do texto do preceito normativo do CDC não é econômico. É técnico.

A vulnerabilidade, como vimos206, é o conceito que afirma a fragilidade econômica do consumidor e também técnica.

Mas hipossuficiência, para fins da possibilidade de inversão do ônus da prova, tem sentido de desconhecimento técnico e informativo do produto e do serviço, de suas propriedades, de seu funcionamento vital e/ou intrínseco, dos modos especiais de controle, dos aspectos que podem ter gerado o acidente de consumo e o dano, das características do vício etc.

Por isso, o reconhecimento da hipossuficiência do consumidor para fins de inversão do ônus da prova não pode ser visto como forma de proteção ao mais “pobre”. Ou, em outras palavras, não é por ser “pobre” que deve ser beneficiado com a inversão do ônus da prova, até porque a questão da produção da prova é processual, e a condição econômica do consumidor diz respeito ao direito material.

Na realidade, para beneficiar o carente econômico no processo não seria necessária a inversão. Bastaria a

determinação judicial de que o fornecedor arcasse com eventuais custas processuais para a produção de provas, tais como as perícias (o que, diga-se, não é ônus para fins de aferição de prova). Determinar-se-ia a inversão do

pagamento, ou seja, o consumidor produz a prova e o fornecedor a paga, e aí sim estar-se-ia protegendo, de forma justa, o economicamente fraco.

Não se pode olvidar que, para os “pobres” na acepção jurídica do termo, existe a justiça gratuita, a qual permite ao beneficiário a isenção do pagamento das custas judiciais, o que não significa que ele está isento de provar o seu direito.

E o inverso é verdadeiro: existem consumidores economicamente poderosos, o que não implica a sua não

hipossuficiência técnica. Mesmo no caso de o consumidor ter grande capacidade econômica, a inversão do ônus da prova deve ser feita na constatação de sua hipossuficiência (técnica e de informação).

13.5 Momento de inversão

Há alguma polêmica em torno do momento processual no qual o magistrado deverá decidir a respeito da inversão do ônus da prova, mas, em nossa opinião, como se verá, esta é fruto de falta de rigorismo lógico e teleológico do sistema processual instaurado pela Lei n. 8.078.

Com efeito, entre os que entendem que o momento de aplicação da regra de inversão do ônus da prova é o do julgamento da causa está Kazuo Watanabe207. Acontece que esse pensamento está alinhado com a distribuição do

ônus da prova do art. 333 do Código de Processo Civil e não com aquela instituída no CDC.

É que as partes que litigam no processo civil, fora da relação de consumo, têm clareza da distribuição do ônus. Ou, melhor dizendo, os advogados das partes sabem de antemão a quem compete o ônus da produção da prova. Leiamos o art. 333 da lei adjetiva:

“Art. 333. O ônus da prova incumbe:

I — ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;

II — ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor”.

É portanto distribuição legal do ônus que se faz, sem sombra de dúvida. E, claro, nesse caso não precisa o juiz fazer qualquer declaração a respeito da distribuição do gravame. Basta levá-lo em consideração no momento de julgar a demanda. Não haverá, na hipótese, qualquer surpresa para as partes, porquanto elas sempre souberam a quem competia a desincumbência da produção da prova.

Ora, não é essa certeza que se verifica no sistema da lei consumerista.

Não teríamos dúvida em afirmar que nas relações de consumo o momento seria o mesmo se a Lei n. 8.078 dissesse: “está invertido o ônus da prova”. Aliás, como fez na hipótese do art. 38208.

Mas acontece que não é isso o que determina o CDC: a inversão não é automática!

Como vimos antes, a inversão se dá por decisão do juiz diante de alternativas postas pela norma: ele inverterá o ônus se for verossímil a alegação ou se for hipossuficiente o consumidor209.

É que pode acontecer de nenhuma das hipóteses estar presente: nem verossímeis as alegações nem hipossuficiente o consumidor.

Anotamos acima que verossimilhança é conceito jurídico indeterminado. Depende de avaliação objetiva do caso concreto e da aplicação de regras e máximas da experiência para o pronunciamento210.

Logo, o raciocínio é de lógica básica: é preciso que o juiz se manifeste no processo para saber se o elemento da verossimilhança está presente.

Da mesma maneira a hipossuficiência depende de reconhecimento expresso do magistrado no caso concreto. É que o desconhecimento técnico e de informação capaz de gerar a inversão tem de estar colocado no feito sub judice. São as circunstâncias do problema aventado e em torno do qual o objeto da ação gira que determinarão se há ou não

hipossuficiência (que, como vimos, regra geral atinge a maior parte dos consumidores). Pode muito bem ser caso de consumidor engenheiro que tinha claras condições de conhecer o funcionamento, de modo a ilidir sua presumida hipossuficiência. Como pode também ser engenheiro e ainda assim, para o caso, constatar-se sua hipossuficiência.

Então, novamente o raciocínio é de singela lógica: é preciso que o juiz se manifeste no processo para saber se a hipossuficiência foi reconhecida.

E, já que assim é, o momento processual mais adequado para a decisão sobre a inversão do ônus da prova é o situado entre o pedido inicial e o saneador. Na maior parte dos casos a fase processual posterior à contestação e na qual se prepara a fase instrutória, indo até o saneador, ou neste, será o melhor momento.

Não vemos qualquer sentido, diante da norma do CDC, que não gera inversão automática (à exceção do art. 38), que o magistrado venha a decidir apenas na sentença a respeito da inversão, como se fosse uma surpresa a ser revelada para as partes.

Há, também, a importante questão do destinatário da norma estatuída no inciso VIII do art. 6°.

Entendemos que, muito embora essa norma trate da distribuição do ônus processual de provar dirigido às partes, ela é mista no sentido de determinar que o juiz expressamente decida e declare de qual das partes é o ônus.

Como a lei não estipula a priori quem está obrigado a se desonerar e a fixação do ônus depende da constatação da verossimilhança ou hipossuficiência, o magistrado está obrigado a se manifestar antes da verificação da

desincumbência, porquanto é ele que dirá se é ou não caso de inversão. E ainda há mais.

Trata-se do problema do ônus econômico da produção de certas provas, como, por exemplo, perícia.

Se ficasse para a sentença a resolução e se o juiz decidisse que não havia nem verossimilhança nem hipossuficiência do consumidor e que este, portanto, teria de ter produzido prova pericial e não o fez porque não tinha dinheiro para adiantar os honorários provisórios do perito, estaríamos diante de um absurdo.

Esse outro fato corrobora nosso entendimento no sentido de que a inversão deve ser decidida até ou no saneador, com o seguinte acréscimo: sendo invertido o ônus da prova, quem deve arcar com o custo do adiantamento das despesas, por exemplo, relativas à perícia? Qual parte deve arcar com o adiantamento dos honorários do perito judicial?

Ora, a resposta salta aos olhos: se o sistema legal protecionista cria norma que obriga à inversão do ônus da prova, como é que se poderia determinar que o consumidor pagasse as despesas ou honorários?

Uma vez determinada a inversão, o ônus econômico da produção da prova tem de ser da parte sobre a qual recai o ônus processual. Caso contrário, estar-se-ia dando com uma mão e tirando com a outra 211.

Se a norma prevê que o ônus da prova pode ser invertido, então automaticamente vai junto para a outra parte a obrigação de proporcionar os meios para sua produção, sob pena de — obviamente — arcar com o ônus de sua não produção.

Se assim não fosse, instaurar-se-ia uma incrível contradição: o ônus da prova seria do réu, e o ônus econômico seria do autor (consumidor). Como este não tem poder econômico, não poderia produzir a prova. Nesse caso, sobre qual parte recairia o ônus da não produção da prova?

Anote-se, em acréscimo, que, em matéria de perícia técnica, o grande ônus é econômico, relativo ao pagamento de honorários e despesas do perito e do assistente técnico.

Para terminarmos os comentários desta parte, deixe-se consignada a correta decisão da 4a Câmara de Direito

Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, que dispôs que o “deferimento da inversão do ônus da prova deverá ocorrer entre o ajuizamento da demanda e o despacho saneador, sob pena de se configurar prejuízo para a defesa do réu”212.