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CÓDIGO DE PROTEÇÃO E DEFESA DO CONSUMIDOR (LEI N 8.078, DE 11 9-1990)

DA POLÍTICA NACIONAL DE RELAÇÕES DE CONSUMO

11. BOA-FÉ E EQUILÍBRIO

O inciso III aponta a harmonização dos interesses dos partícipes das relações de consumo, que, como vimos acima, tem fundamento nos princípios maiores da isonomia e solidariedade.

Essa harmonização nasce, então, fundada na boa-fé e no equilíbrio. Vejamos esses dois outros princípios.

11.1 Boa-fé

A boa-fé estampada no inciso III referido é princípio da Lei n. 8.078. Retornará no art. 51 como cláusula geral (inciso IV). Para esse aspecto remetemos o leitor aos comentários ao art. 51, bem como aos comentários de abertura do Capítulo VI, no qual está inserida tal norma. Analisemos aqui a boa-fé como princípio.

11.1.1 Boa-fé objetiva

A que a lei consumerista incorpora é a chamada boa-fé objetiva, diversa da subjetiva.

A boa-fé subjetiva diz respeito à ignorância de uma pessoa acerca de um fato modificador, impeditivo ou violador de seu direito. É, pois, a falsa crença acerca de uma situação pela qual o detentor do direito acredita em sua

legitimidade, porque desconhece a verdadeira situação. Nesse sentido, a boa-fé pode ser encontrada em vários preceitos do Código Civil, como, por exemplo, no art. 1.561, caput, quando trata dos efeitos do casamento putativo168,

nos arts. 1.201 e 1.202, que regulam a posse de boa-fé169, no art. 879, que se refere à boa-fé do alienante do imóvel

indevidamente recebido170.

Já a boa-fé objetiva, que é a que está presente no CDC, pode ser definida, grosso modo, como sendo uma regra de conduta, isto é, o dever das partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade, a fim de se estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo. Não o equilíbrio econômico, como pretendem alguns, mas o

equilíbrio das posições contratuais, uma vez que, dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo, como regra, há um desequilíbrio de forças. Entretanto, para chegar a um equilíbrio real, somente com a análise global do contrato, de uma cláusula em relação às demais, pois o que pode ser abusivo ou exagerado para um não o será para outro.

A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard, que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva do fornecedor ou mesmo do consumidor.

Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes. Anote-se que o novo Código Civil também incorporou a boa-fé objetiva como norma de conduta imposta a contratantes na conclusão e na execução dos contratos, conforme estabelecido no art. 422171 e no art. 113, que cuida

da interpretação dos negócios jurídicos. 11.1.2 Boa-fé como princípio

O princípio da boa-fé estampado no art. 4° da lei consumerista tem, então, como função viabilizar os ditames constitucionais da ordem econômica, compatibilizando interesses aparentemente contraditórios, como a proteção do consumidor e o desenvolvimento econômico e tecnológico. Com isso, tem-se que a boa-fé não serve somente para a defesa do débil, mas sim como fundamento para orientar a interpretação garantidora da ordem econômica, que, como vimos, tem na harmonia dos princípios constitucionais do art. 170 sua razão de ser172.

Mas não é só isso. Hodiernamente há de se levar em conta o princípio da boa-fé objetiva no papel que ele desempenha na construção do próprio sistema jurídico, assim como na aplicação efetiva dos demais princípios e normas jurídicas, todos suporte do modelo da sociedade capitalista contemporânea.

Com efeito, a hermenêutica jurídica tem apontado no transcurso da história os vários problemas com os quais se depara o intérprete, não só na análise da norma e seu drama no que diz respeito à eficácia, mas também na análise do problema da compreensão do comportamento humano. Deste, dependendo da ideologia ou da escola à qual pertença o hermeneuta, há sempre maior ou menor disposição de se buscar uma adequação/inadequação na questão da

incidência normativa: há os que atribuem o comportamento à incidência direta da norma jurídica; os que alegam que a norma jurídica é produzida por conta da pressão que o comportamento humano exerce sobre o legislador e, logo, sobre o sistema jurídico produzido; os que dizem que a norma tem caráter educador juntamente com os outros

sistemas sociais de educação; os que atestam que, simplesmente, a norma jurídica é superestrutura de manutenção do status quo; os que veem na norma o instrumento de controle político e social; enfim, é possível detectar tantas

variações das implicações existentes entre sistema jurídico e sociedade (ou norma jurídica e comportamento humano) quantas escolas puderem ser investigadas.

Realmente, são várias as teorias que pretendem dar conta do fenômeno produzido no seio social enquanto ação humana ou comportamento humano na sua correlação com as normas em geral e jurídica em particular. Pois bem. Acontece que, independentemente da escola, existem algumas fórmulas gerais que sempre se repetem como topói, isto é, como fórmulas de procura ou operações estruturantes a serem utilizadas pelo intérprete para resolver um problema de aplicação/interpretação normativa, no que diz respeito ao caso concreto173. Vale dizer, esse elemento tópico acaba por ser utilizado pelo intérprete com o intuito de persuadir o receptor de sua mensagem, o que deve ser feito, portanto, de tal modo que cause uma impressão convincente no destinatário174.

Ora, a decisão jurídica decorrente do ato interpretativo surge linguisticamente num texto (numa obra doutrinária, numa decisão judicial, num parecer e, num certo sentido, na própria norma jurídica escrita) como uma argumentação racional, advinda de uma discussão também racional, fruto de um sujeito pensante racional, que, por sua vez,

conseguiu articular proposições racionais. O ciclo surge fechado num sistema racional. Acontece que, muitas vezes, fica difícil para o intérprete resolver o problema de modo racional lançando mão do repertório linguístico do sistema normativo escrito. Por vezes, faltam palavras capazes de dar conta dos fatos, dos valores, das disputas reais

envolvidas, das justaposições de normas, dos conflitos de interesses, das contradições normativas, de suas

antinomias, e até de seus paradoxos. Nesse momento, então, para resolver racionalmente o problema estudado, ele lança mão dessas fórmulas, verdadeiros modelos capazes de apresentar um caminho para a solução do problema. Dentre as várias alternativas, chamamos atenção aqui para standards tais como “fato notório”, “regras ordinárias da experiência”, “homem comum”, “pensamento médio”, “razoabilidade”, “parcimônia”, “equilíbrio”, “justiça” (no sentido de equilíbrio), “bom-senso”, “senso comum” etc.

É importante notar que essas fórmulas funcionam em sua capacidade de persuasão e convencimento porque, de algum modo, elas, muitas vezes, apontam para verdades objetivas, traduzidas aqui como fatos concretos verificáveis. O destinatário do discurso racional preenchido com essas fórmulas o acata como verdadeiro, porque sabe,

intuitivamente, que eles, em algum momento, corresponderam à realidade. Ou, em outras palavras, aceita o

argumento estandartizado, porque reconhecem nele, de forma inconsciente — intuitiva — um foro de legitimidade, posto que produzidos na realidade como um fato inexorável.

Pois bem. O standard da boa-fé objetiva é um desses topói fundamentais que, inseridos no contexto linguístico dos operadores do direito, estudiosos da sociedade capitalista contemporânea, acabaram, no Brasil, por ser erigidos a princípio na Lei n. 8.078/90. O standard foi adotado pelo Novo Código Civil e vem sendo reconhecido como elemento da base do próprio sistema jurídico constitucional.

Examine-se, pois, o funcionamento da boa-fé objetiva: o intérprete lança dela mão, utilizando-a como um modelo, um standard (um topos) a ser adotado na verificação do caso em si. Isto é, qualquer situação jurídica estabelecida para ser validamente legítima, de acordo com o sistema jurídico, deve poder ser submetida à verificação da boa-fé objetiva que lhe é subjacente, de maneira que todas as partes envolvidas (quer seja credora, devedora, interveniente, ofertante, adquirente, estipulante etc.) devem respeitá-la. A boa-fé objetiva é, assim, uma espécie de pré-condição abstrata de uma relação ideal (justa), disposta como um tipo ao qual o caso concreto deve se moldar. Ela aponta, pois, para um comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes, a fim de garantir o respeito ao direito da outra. Ela é um modelo principiológico que visa garantir a ação e/ou conduta sem qualquer abuso ou nenhum tipo de obstrução ou, ainda, lesão à outra parte ou partes envolvidas na relação, tudo de modo a gerar uma atitude

cooperativa que seja capaz de realizar o intento da relação jurídica legitimamente estabelecida.

Desse modo, pode-se afirmar que, na eventualidade de lide, sempre que o magistrado encontrar alguma dificuldade para analisar o caso concreto na verificação de algum tipo de abuso, deve levar em consideração essa condição ideal apriorística, pela qual as partes deveriam, desde logo, ter pautado suas ações e condutas, de forma adequada e justa. Ele deve, então, num esforço de construção, buscar identificar qual o modelo previsto para aquele caso concreto, qual seria o tipo ideal esperado para que aquele caso concreto pudesse estar adequado, pudesse fazer justiça às partes e, a partir desse standard, verificar se o caso concreto nele se enquadra, para daí extrair as consequências jurídicas exigidas.

11.2 Equilíbrio

Este é outro princípio que pretende, concretamente, a realização do princípio magno da justiça (art. 3°, I, da CF). Relações jurídicas equilibradas implicam a solução do tratamento equitativo. O equilíbrio se espraia, no plano

contratual, na norma do inciso IV do art. 51, bem como no inciso III do § 1° do mesmo art. 51.

Art. 5° Para a execução da Política Nacional das Relações de Consumo, contará o Poder Público com os seguintes instrumentos, entre outros:

I — manutenção de assistência jurídica, integral e gratuita para o consumidor carente; II — instituição de Promotorias de Justiça de Defesa do Consumidor, no âmbito do Ministério Público;

III — criação de delegacias de polícia especializadas no atendimento de consumidores vítimas de infrações penais de consumo;

IV — criação de Juizados Especiais de Pequenas Causas e Varas Especializadas para a solução de litígios de consumo;

V — concessão de estímulos à criação e desenvolvimento das Associações de Defesa do Consumidor. § 1° (Vetado.)

§ 2° (Vetado.)