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5. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

5.2 A dignidade da pessoa humana

5.6.1 Igualdade de todos

Continuando a análise, é preciso colocar agora a questão da igualdade de todos perante a lei, a partir da norma do caput do art. 5° da Constituição Federal.

Com efeito, dispõe o art. 5°, caput:

“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”.

É fato conhecido que:

a) o princípio da igualdade ou isonomia é dirigido ao legislador e ao aplicador;

b) a interpretação adequada de tal princípio é tão antiga quanto Aristóteles, que já explicava que seu resultado adequado advinha da fórmula: dar tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, na medida dessa

desigualdade;

c) essa fórmula, que em abstrato é bastante adequada, é muito difícil de ser aplicada concretamente: a medida da desigualdade não surge tão facilmente. Mas, ainda assim, é uma determinação obrigatória ao intérprete e ao

aplicador, que devem seguir todos os esforços possíveis a fim de obter a igualdade como resultado prático de seu mister.

Tratar com desigualdade seria discriminar, não manter uma igualização. Mas, como dito, não é tão simples definir quando há e quando não há discriminação.

Na obra Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, Celso Antônio Bandeira de Mello dá uma série de indicações para a concretização dessa garantia constitucional. Vale aqui lembrar alguns tópicos do trabalho do jurista paulista44.

Uma das funções da lei é discriminar situações, e isso não fere, por si só, o princípio da igualdade. Assim, é

plenamente constitucional a lei45 dizer que a maioridade penal inicia-se aos 18 anos. Nenhum menor de 18 pode dizer que foi discriminado, uma vez que se trata de uma das funções da lei.

A constatação da existência de discriminações, portanto, não é suficiente para definir se o princípio constitucional de isonomia está ou não sendo respeitado, pois, como visto, em determinadas situações a discriminação empreendida está em consonância com o preceito constitucional. Ao contrário, é exatamente da discriminação que nasce o

princípio.

Mas para aferição da adequação ao princípio da igualdade é necessário levar em conta outros aspectos. Todos eles têm de ser avaliados de maneira harmônica: se adotado o critério discriminatório, este tem de estar conectado

afinidade entre essa correlação lógica e os valores protegidos pelo ordenamento constitucional. Ou seja, nenhum elemento, isoladamente, poderá ser tido como válido ou inválido para verificação da isonomia. É o conjunto que poderá designar o cumprimento ou não da violação da norma constitucional.

Assim, resumidamente, afere-se a adequação ou não ao princípio da isonomia verificando-se a harmonização dos seguintes elementos:

a) discriminação;

b) correlação lógica da discriminação com o tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade; c) afinidade entre essa correlação e os valores protegidos no ordenamento constitucional.

Como bem o dizem os Professores David Araujo e Vidal Serrano Nunes, a “exigência de altura mínima de 1,50 metro para inscrição em concurso de advogado da Prefeitura, por exemplo, é claramente inconstitucional, pois o fator

discriminatório adotado em nada se ajusta ao tratamento jurídico atribuído em face da desigualdade entre os que têm altura maior ou menor.

O mesmo critério, contudo, é absolutamente afinado à isonomia se adotado em concurso para ingresso na carreira policial. Aqui, o porte físico é essencial ao bom desempenho das funções. Logo, não implica qualquer

inconstitucionalidade” 46.

Na questão do consumidor existem várias práticas que violam o princípio constitucional. Veja-se, por exemplo, um caso típico de discriminação ao consumidor: o sucesso do filme “Titanic”, ganhador de vários Oscars, levou, durante semanas, milhares de pessoas (consumidores do serviço de diversão) às salas de cinema. A procura era tamanha que o público tinha de chegar mais de três horas antes do início de cada sessão (sendo que o próprio filme tem mais de três horas de exibição). Era um enorme esforço. Mas, ao que tudo indica, os consumidores não se importavam. Acontece que os exibidores firmaram um contrato com os administradores do cartão de crédito Diners Club que permitia que seus usuários pudessem adquirir os ingressos para assistir ao filme sem pegar fila. Foi um verdadeiro “fura-fila”. Esses consumidores privilegiados passaram a gozar de um direito não oferecido aos demais. Isso porque somente podiam comprar pelo telefone os portadores do indigitado cartão de crédito. Bem ao estilo de George Orwel, esses usuários do cartão eram “mais iguais que os outros iguais”. Não resta dúvida de que aquela prática era ilegal, na medida em que feria o princípio de isonomia previsto na Carta Magna47.

Com efeito, utilizando-se dos critérios acima elencados, percebe-se que a discriminação do exibidor não poderia ser efetuada, uma vez que não tem correspondência lógica com o tratamento jurídico oferecido de maneira diferenciada (o que os portadores do cartão têm para serem mais bem tratados que os demais que ficam na fila?), bem como não há afinidade dessa correlação com os valores protegidos pelo ordenamento constitucional (só se justifica o tratamento diferenciado em questões de consumo desse tipo quando o consumidor protegido merecer o tratamento favorável: por exemplo, atendimento privilegiado para idosos e mulheres grávidas). O fato de alguns consumidores, dentre muitos, serem portadores de um cartão de crédito específico não pode ser motivo legitimador da discriminação.

Diga-se, também, que o poder constituinte, ao elaborar o texto magno, desde aquele instante tratou de deixar estabelecidos certos grupos de pessoas e certos indivíduos que merecem a proteção constitucional, isto é, a

Constituição Federal reconhece de plano a hipossuficiência de certas pessoas, que devem, então, ser tratadas pelo intérprete, pelo aplicador e pelo legislador infraconstitucional de maneira diferenciada, visando a busca de uma igualdade material. É o caso do trabalho da mulher (art. 7°, XX); da reserva de cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência (art. 37, VIII) etc.

Da mesma forma é de observar que a Constituição reconhece a vulnerabilidade do consumidor48. Isso porque, nas oportunidades em que a Carta Magna manda que o Estado regule as relações de consumo ou quando põe limites e parâmetros para a atividade econômica, não fala simplesmente em consumidor ou relações de consumo. O texto

constitucional refere-se a “defesa do consumidor”, o que pressupõe que este necessita mesmo de proteção. Assim está no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (“O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor” — grifamos), no art. 5°, XXXII (“O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” —grifamos); e assim está no art. 170, V (“A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,

conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) V — defesa do consumidor” — grifamos). Lembre-se, também, que entre os objetivos da República está a promoção do bem de todos “sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (inciso IV do art. 3°).

5.6.2 o turista

Lendo o caput do art. 5° da Constituição fica-se com uma dúvida: se a norma assegura direitos “aos brasileiros e estrangeiros residentes no País”, isso significa que o estrangeiro visitante, o turista, não tem direitos assegurados?

Isso é relevante para qualquer direito garantido no sistema e ganha relevo na questão do consumidor.

É conhecida, de um lado, a importância do aporte de renda que os estrangeiros levam aos países e que trazem ao Brasil — o que precisa ser incentivado para crescer mais. Essa renda traz benefícios diretos ao País, com criação de empregos, pagamento de impostos etc.

Logo, é preciso resolver o problema. Mas como?

Em termos de garantias ao consumidor, os inúmeros exemplos exigem segura solução. Se um turista estrangeiro sofre intoxicação comendo a mesma comida que um brasileiro, estando ambos no mesmo restaurante, por que se daria guarida apenas ao consumidor brasileiro, que poderia pleitear indeniza-çãopor danos materiais e morais do

restaurante? A responsabilidade objetiva do fornecedor desapareceria só por tratar-se de estrangeiro? Tentemos resolver a questão.

expressão “estrangeiro residente”. É que o argumento de que o turista estrangeiro consumidor goza de direitos enquanto de passagem pelo Brasil é convincente. Mas qual o fundamento jurídico para a validade dessa afirmação?

Não se pode desreconhecer um fato: o texto constitucional expressamente garante “aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País...” direitos.

Alguns autores, como os Professores David Araujo e Vidal Serrano Nunes, resolvem o problema dizendo que a “interpretação sistemática e finalística do texto constitucional não deixa dúvidas de que os direitos fundamentais se destinam a todos os indivíduos, independentemente de sua nacionalidade ou da sua situação no Brasil. Assim, um turista (estrangeiro não residente) que seja vítima de uma arbitrariedade policial, por evidente, poderá se utilizar do Habeas Corpus para proteger o seu direito de locomoção”49.

É uma saída razoável. Porém não responde a questão: que pretendeu o constituinte?

É possível objetar simplesmente que o constituinte originário errou. Disse mais do que devia: não precisava citar brasileiros e estrangeiros residentes; bastava dizer “todos são iguais perante a lei”. Mas não o fez.

De outra pauta, o erro — poder-se-ia bem dizer — veio da omissão. Não se fala do turista, embora se pudesse fazê-lo. Bem, então, nesse caso, nada se poderia argumentar. Como o constituinte não tratou, o turista foi excluído.

O que aflige o intérprete é o fato concreto de que pessoas estrangeiras comparecem ao País na qualidade de turistas e, aqui estando, gastam seu dinheiro realizando diversas operações jurídicas — de consumo ou não.

Como resolver as questões contratuais que envolvem essas pessoas? E os eventuais danos que elas possam sofrer por conta da relação de consumo? Afinal, como se disse, se o estrangeiro gasta seu dinheiro aqui, contribui para o desenvolvimento do mercado nacional, possibilitando distribuição de renda, pagamento de impostos e gerando empregos.

Àqueles que sustentam que os tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatário garantem, eventualmente, direitos ao turista é preciso lembrar, conforme já demonstramos no subitem 5.1.2, retro, que tratado internacional ingressa no sistema jurídico brasileiro como norma infraconstitucional. Logo, não poderá contrariar a Constituição. Com isso, a discussão volta ao texto da Carta Magna.

E o pior de tudo é que o uso da expressão não surgiu na Constituição de 1988. O texto do caput do art. 5° em relação a esse aspecto é o mesmo, pelo menos desde a Constituição Federal de 1946. Vejamos.

Constituição Federal de 1946:

“Título IV

Da Declaração de Direitos

Capítulo II

Dos Direitos e das Garantias Individuais

“Art. 141. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

§ 1° Todos são iguais perante a lei.” Constituição Federal de 1967:

“Título II

Da Declaração de Direitos

Capítulo IV

Dos Direitos e Garantias Individuais

“Art. 150. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

§ 1° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. (...)”. Emenda Constitucional n° 1, de 1969:

“Título II

Da Declaração de Direitos

Capítulo IV

Dos Direitos e Garantias Individuais

“Art. 153. A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)

§ 1° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas. (...)”. Constituição Federal de 1988:

“Título II

Dos Direitos e Garantias Fundamentais Capítulo I

Art. 5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

I — homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.

A nós parece existir uma saída, que nos foi sugerida em conversa com o Professor Nelson Nery Junior. Equivocam-se aqueles que pensam que o conceito de “residência” do texto constitucional é o mesmo das normas inferiores. Quem assim afirma define um conceito constitucional — logo superior e do topo da “pirâmide” jurídica — com sentido posto por normas inferiores — do Código Civil, Código de Processo Civil etc. —, e isso é erro de interpretação.

O conteúdo semântico de “residência” do texto constitucional tem de ser buscado e definido apenas no topo do sistema, na própria Constituição Federal.

E a verdade é que o sentido de “residente” do texto magno é diferente do usualmente utilizado pelas normas

inferiores. Ele significa o local dentro do território brasileiro no qual esteja o estrangeiro-turista. O princípio territorial da soberania é que assim o designa, e nem poderia ser diferente.

A Constituição somente pode conferir e garantir direitos no território nacional. Assim, o turista que está aqui, no território brasileiro, goza das garantias constitucionais, que não são exclusivas de brasileiros natos.

Nessa mesma orientação diz Alexandre de Moraes “que a expressão ‘residentes no Brasil’ deve ser interpretada no sentido de que a Carta Federal só pode assegurar a validade e gozo dos direitos fundamentais dentro do território brasileiro, não excluindo, pois, o estrangeiro em trânsito pelo território nacional”50.