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Princípios gerais da atividade econômica

5. PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

5.10 Princípios gerais da atividade econômica

Antes de analisarmos os princípios indicados no título é importante lembrar que os princípios e normas

constitucionais têm de ser interpretados de forma harmônica, ou seja, é necessário definir parâmetros para que um não exclua o outro e, simultaneamente, não se autoexcluam.

Isso, todavia, como já observamos, não impede que um princípio ou norma limite a abrangência de outro princípio ou norma. Assim, por exemplo, deve parecer evidente ao intérprete que “dignidade da pessoa humana” é um princípio excludente de qualquer outro que possa atingi-lo. E, também, essa constatação não elimina outros princípios e normas; apenas os delimita nos exatos termos em que devem ser interpretados.

Realcemos, então, alguns princípios estampados na Carta Magna para contrapô-los a outros que interessam diretamente à questão das relações de consumo. Guardemos em mente a garantia absoluta da “dignidade da pessoa humana”, depois dos “valores sociais do trabalho e valores sociais da livre iniciativa”, da construção de “uma

sociedade livre, justa e solidária”, a da erradicação da “pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais”, e a da promoção do “bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e

quaisquer outras formas de discriminação”, e ainda da igualdade de todos “perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, com a garantia da “inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

Agora, remetamo-nos diretamente aos princípios gerais da atividade econômica, capítulo importante do título que cuida da ordem econômica e financeira. Vejamos o art. 170, seus incisos e parágrafo único — que terá de ser

examinado à luz dos princípios acima grifados (e em consonância com eles). Dispõe o art. 170, in verbis: “Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I — soberania nacional; II — propriedade privada;

III — função social da propriedade; IV — livre concorrência;

V — defesa do consumidor;

VI — defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

VII — redução das desigualdades regionais e sociais; VIII — busca do pleno emprego;

IX — tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

O art. 170 como um todo estabelece princípios gerais para a atividade econômica. Estes têm de ser interpretados, também, como já o dissemos, de modo a permitir uma harmonização de seus ditames. Acontece que não basta examinar os princípios estampados nos nove incisos dessa norma apenas entre si mesmos. É necessário adequá-los àqueles outros aos quais chamamos a atenção.

O caput do art. 170 está já em harmonia com aqueles outros princípios. Dos nove princípios instituídos nos incisos, quatro nos interessam em nosso exame. São eles: propriedade privada; função social da propriedade; livre

concorrência; defesa do consumidor.

Ora, a Constituição Federal garante a livre iniciativa? Sim. Estabelece garantia à propriedade privada? Sim. Mas isso significa que, sendo proprietário, qualquer um pode ir ao mercado de consumo praticar a “iniciativa privada” sem nenhuma preocupação de ordem ética no sentido da responsabilidade social? Pode qualquer um dispor de seus bens de forma destrutiva para si e para os demais partícipes do mercado? A resposta a essas duas questões é não.

Os demais princípios e normas colocam limites — aliás, bastante claros — à exploração do mercado. É verdade que a livre iniciativa está garantida. Porém, a leitura do texto constitucional define que:

a) o mercado de consumo aberto à exploração não pertence ao explorador; ele é da sociedade e em função dela, de seu benefício, é que se permite sua exploração;

b) como decorrência disso, o explorador tem responsabilidades a saldar no ato exploratório; tal ato não pode ser espoliativo;

c) se lucro é uma decorrência lógica e natural da exploração permitida, não pode ser ilimitado; encontrará resistência e terá de ser refreado toda vez que puder causar dano ao mercado e à sociedade;

d) excetuando os casos de monopólio do Estado (p. ex., do art. 177), o monopólio, o oligopólio e quaisquer outras práticas tendentes à dominação do mercado estão proibidos;

e) o lucro é legítimo, mas o risco é exclusivamente do empreendedor. Ele escolheu arriscar-se: não pode repassar esse ônus para o consumidor.

Essas considerações são decorrentes da interpretação dos princípios já expostos e que devem ser harmonizados. Com efeito, a da letra a decorre das garantias constitucionais da função social da propriedade, da defesa do consumidor, da construção de uma sociedade livre, justa e solidária e da promoção do bem comum. Tudo fundado no princípio máximo da garantia da dignidade da pessoa humana.

Quanto ao estabelecido nas letras b, c, d e e, as bases são as mesmas. Contudo, reforce-se o aspecto da livre concorrência e da defesa do consumidor.

O estabelecimento de um princípio como o da livre concorrência tem uma destinação específica. Pretende que o explorador seja limitado pelo outro explorador e também pelo próprio mercado. Investiguemos de perto.

Que é o mercado? Do que ele se compõe?

O mercado é uma ficção econômica, mas também é uma realidade concreta. Como dissemos, ele pertence à sociedade. Não é da propriedade, posse ou uso de ninguém em particular e também não é de nenhum grupo específico. A existência do mercado é confirmada por sua exploração diuturna concreta e histórica. Mas essa exploração não pode ser tal que possa prejudicar o próprio mercado ou a sociedade.

O mercado é composto, como se sabe, não só pelos empreendedores da atividade econômica, mas também pelos consumidores. Não existe mercado sem consumidor.

Ao estipular como princípios a livre concorrência e a defesa do consumidor, o legislador constituinte está dizendo que nenhuma exploração poderá atingir os consumidores nos direitos a eles outorgados (que estão regrados na Constituição e também nas normas infraconstitucionais). Está também designando que o empreendedor tem de oferecer o melhor de sua exploração, independentemente de atingir ou não os direitos do consumidor. Ou, em outras palavras, mesmo respeitando os direitos do consumidor, o explorador tem de oferecer mais. A garantia dos direitos do consumidor é o mínimo. A regra constitucional exige mais. Essa ilação decorre do sentido de livre concorrência.

Quando se fala em regime capitalista fundado na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais e na cidadania, como é o nosso caso, o que se está pressupondo é que esse regime capitalista é fundado num mercado, numa

possibilidade de exploração econômica que vai gerar responsabilidade social, porque é da sociedade que se trata. Livre mercado composto de consumidores e fornecedores tem, na ponta do consumo, o elemento fraco de sua formação, pois o consumidor é reconhecidamente vulnerável como receptor dos modelos de produção unilateralmente definidos e impostos pelo fornecedor. A questão não é, pois — como às vezes a doutrina apresenta —, de ordem econômica ou financeira, mas técnica: o consumidor é mero espectador no espetáculo da produção80.

O reconhecimento da fragilidade do consumidor no mercado está ligado à sua hipossuficiência técnica: o consumidor não participa do ciclo de produ-çãoe, na medida em que não participa, ele não tem acesso aos meios de produção nem como controlar aquilo que ele compra de produtos e serviços; não tem como decidir o que nem como produzir e à medida que não tem como decidir o que ou como produzir ele precisa de proteção. É por isso que quando chegamos ao CDC há uma ampla proteção ao consumidor com o reconhecimento de sua vulnerabilidade (art. 4°, I).

A livre concorrência é essencialmente uma garantia do consumidor e do mercado. Ela significa que o explorador tem de oferecer ao consumidor produtos e serviços melhores do que os de seu concorrente. Essa obrigação é posta ad infinitum, de forma que sempre haja melhora. Evidente que esse processo de concorrência se faz não só pela

qualidade, mas também por seu parceiro necessário: o preço. Todo elemento concorrencial na luta pelo consumidor é o duplo “qualidade/preço”81.

Dessa maneira, há sim uma meta na exploração: é a da produção e oferta de produtos e serviços com a melhor qualidade e o menor preço possíveis.

Além disso, como todo substrato dos princípios é o da garantia da dignidade da pessoa humana, mesmo atingindo esse nível de excelência constitucional, o empreendedor ainda remanesce com uma imputabilidade ética: seu lucro, ainda que legítimo nos termos que apresentamos, deve contribuir para a construção de uma sociedade fundada nesse princípio. Todo explorador tem responsabilidade social para com todos os indivíduos, mesmo para com aqueles que não são seus clientes82.

O outro aspecto fundamental para o entendimento do direito material do consumidor é o princípio que se extrai da harmonização dos demais princípios do art. 170 na relação com os outros mais relevantes (dignidade da pessoa humana, vida sadia, justiça etc.). É o do risco da atividade do empreendedor.

É que a garantia da livre iniciativa tem uma contrapartida: o empreendedor age porque quer. Cabe unicamente a ele decidir se vai explorar ou não o mercado.

Não está ele obrigado a desenvolver qualquer negócio ou atividade. Se o fizer e obtiver lucro, é legítimo que tenha o ganho. Mas, se sofrer perdas, elas também serão suas.

risco de a empreitada dar certo ou não. E o Código de Defesa do Consumidor assimilou do texto constitucional corretamente essa imposição.

Repise-se, então, que, do ponto de vista do texto constitucional, a possibilidade de produção implica um sistema capitalista de proteção e livre concorrência, o que acarreta risco para aquele que vai ao mercado explorá-lo.

A característica fundamental da produção na sociedade capitalista a partir do sistema jurídico constitucional brasileiro é o risco da atividade. Quem corre risco ao produzir produtos e serviços é o fornecedor, jamais o consumidor.

Examinemos um exemplo elucidativo: se o estudante de direito torna-se bacharel, inscreve-se na Ordem dos

Advogados e, no mês seguinte da inscrição, aluga um andar inteiro, digamos na Av. Paulista, na Capital de São Paulo — o metro quadrado mais caro do país — com 500 m2, emprega cinco secretárias, adquire 20 linhas telefônicas,

contrata 6 estagiários, ele estará assumindo um risco em relação à sua atividade de prestador de serviço público essencial — a advocacia. Pode fazê-lo, mas tudo indica que vai quebrar. Vai quebrar porque vai acabar descobrindo que é difícil conseguir cliente quando se é recém-formado. Mas é direito dele montar o negócio de prestação de serviços, apesar do exagero do porte inicial.

Se esse advogado ficar dois meses sem receber a visita de um único cliente vai amargar altos custos sem poder repassá-lo aos futuros clientes. É risco seu. Se, por um acaso, num belo dia, aparecer no escritório um casal jovem querendo se separar judicialmente, ele engenheiro com salário de R$ 3.000,00 mensais, ela médica com o mesmo salário mensal, sem bens a partilhar, e o advogado quiser cobrar deles todo o custo de seu risco, por exemplo, R$ 100.000,00, com certeza não vai dar certo; o casal vai virar as costas e ir embora. É a prova de que o risco é só do empreendedor. E não é por outro motivo que, mesmo mediante cláusula contratual firmada com o consumidor, não pode o risco ser repassado.

Caso esse advogado firme contrato de honorários mensais para prestar serviços a um cliente e, em função do aumento de seus custos, quiser unilateralmente aumentar seus honorários, não poderá fazê-lo, pois o custo e o risco são seus.

Assim, é pelo mesmo motivo que um banco, uma operadora de plano de saúde, ou uma indústria de automóveis, uma prestadora de serviço público essencial, enfim, qualquer empreendedor está proibido de repassar o risco de seu negócio para o consumidor.

Quem quiser, portanto, se estabelecer produzindo pneus, abrindo bancos, vendendo produtos e serviços, pode fazê- lo, mas corre o risco da atividade. É por isso que, quando se vai estudar a responsabilidade civil objetiva na Lei n. 8.078, ela está estabelecida de forma absoluta, impedindo qualquer possibilidade de o fabricante, produtor, prestador de serviço etc. se esquivar da sua responsabilização. Esse risco vai fazer com que aquele que vai ao mercado oferecer produtos e serviços assuma integralmente a responsabilidade por eventuais danos que seus produtos e seus serviços possam causar aos consumidores, assim como, repita-se, impede que mesmo mediante cláusula contratual, esse risco seja repassado ao consumidor.

É preciso que se afirme esse princípio do risco com todas as letras: a decisão de empreender é livre; o lucro

decorrente dessa exploração é legítimo; o risco é total do empreendedor. Isso implica que, da mesma forma como ele não repassa o lucro para o consumidor, não pode, de maneira alguma, passar-lhe o risco. Nenhum risco, mesmo parcial, pode ser repassado.

Ressalte-se que esse risco não pode ser dividido quer por meio de cláusula contratual, quer por meio de ações concretas ou comportamentos reais. Nem por norma infraconstitucional — por óbvia inconstitucionalidade — poder-se- á transferir o risco da atividade para o consumidor.

A outra previsão importante, como dissemos, é a da livre concorrência, estampada no inciso IX do art. 170 da Constituição Federal.

Por que é que a Constituição Federal brasileira assimilou da história essa ideia de livre concorrência? Na verdade, ela assimilou porque a livre concorrência implica proteção ao consumidor.

Pensar, então, essa questão constitucional é entender o que ela quer dizer com livre concorrência e isso só pode ser melhores produtos e serviços a iguais ou menores preços. “Melhor” produto ou serviço significa mais segurança, mais eficiência, mais economia de uso, maior durabilidade, menor índice de quebra (vício) e menor possibilidade de acidente (defeito) etc.