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VÍCIOS DE QUALIDADE E TAMBÉM DE QUANTIDADE

18.2 “Intuitu personae”

1. VÍCIOS DE QUALIDADE E TAMBÉM DE QUANTIDADE

Na Seção III, ao tratar da responsabilidade pelos vícios, o CDC colocou a questão do vício de qualidade do produto no art. 18 e a do vício de quantidade do produto no art. 19.

Para os serviços, observou apenas o art. 20 e regulou somente os vícios de qualidade, como se não pudessem existir vícios de quantidade dos serviços. Mas se enganou, porque há sim vícios de quantidade de serviço, conforme se demonstrará.

Logo, a primeira observação é a de que se deve fazer uma interpretação extensiva do caput do art. 19 para incluir nas salvaguardas que ele pretende estabelecer o vício de quantidade do serviço. E, uma vez incluído o vício de quantidade do serviço no sistema protecionista, tudo o mais que se aproveitar da norma em comento também valerá para essa outra proteção que se dá ao consumidor.

2. DISTINÇÃO ENTRE VÍCIO E DEFEITO

Antes de iniciarmos a avaliação, o que faremos pelo aspecto do vício de qualidade, mister se faz retornar à distinção entre vício e defeito para ter claro o que estamos investigando401.

Relembremos, então, os conceitos já apontados quando da análise dos vícios de qualidade dos produtos402, adaptando-os aos dos vícios de qualidade (e quantidade) dos serviços.

2.1 Vícios

São consideradas vícios as características de qualidade ou quantidade que tornem os serviços (ou produtos)

impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam e também que lhes diminuam o valor. Da mesma forma são considerados vícios os decorrentes da disparidade havida em relação às indicações constantes do recipiente,

embalagem, rotulagem, oferta ou mensagem publicitária. Os vícios, portanto, são aqueles problemas que, por exemplo:

a) fazem com que o serviço não funcione adequadamente, como a administradora de cartão de crédito que não entrega o cartão magnético no dia prometido;

b) fazem com que o serviço funcione mal, como o filme a que se está assistindo no cinema cujo projetor está desfocado, ou o som está inaudível, a luz da sala acende de repente etc.;

c) diminuam o valor do serviço prestado, como a pintura malfeita no veículo;

d) não estejam de acordo com informações, como a escola que promete 20 aulas e só dá 19403. Os vícios podem ser aparentes ou ocultos.

2.1.1 Vício aparente

Os vícios aparentes ou de fácil constatação, como o próprio nome diz, são os de fácil verificação, perceptíveis no consumo ordinário que se tem do serviço, de maneira que o consumidor logo os perceba, como no exemplo da pintura do veículo cujo capô ficou manchado. Eles aparecem indicados no caput do art. 26, a cujos comentários remetemos o leitor404.

2.1.2 Vício oculto

Os vícios ocultos são aqueles que não estão acessíveis ao consumidor no uso ordinário ou que só aparecem depois de algum ou muito tempo. Por exemplo, num serviço de instalação de carpete, a cola que é de má qualidade e faz com que o carpete colocado se solte depois de certo tempo de uso.

O vício oculto aparece indicado no § 3° do art. 26, a cujos comentários remetemos o leitor405.

2.2 Defeito

O defeito, por sua vez, conforme já dissemos, pressupõe vício. Há vício sem defeito, mas não há defeito sem vício. O vício é uma característica inerente, intrínseca do serviço (ou produto) em si.

O defeito é o vício acrescido de um problema extra, alguma coisa extrínseca ao serviço (ou ao produto), que causa um dano maior que simplesmente o mal funcionamento, o não funcionamento, a quantidade errada, a perda do valor pago — já que o serviço (ou produto) não cumpriu o fim ao qual se destinava etc. O defeito causa, além desse dano do vício, outro ou outros danos ao patrimônio jurídico material e/ou moral do consumidor.

Logo, o defeito tem ligação com o vício, mas, em termos de dano causado ao consumidor, é mais devastador. Temos, então, que o vício pertence ao próprio serviço (ou produto), jamais atingindo a pessoa do consumidor em outros bens seus. O defeito vai além do serviço (ou produto) para atingir o consumidor em seu patrimônio jurídico, seja moral e/ou material. Por isso somente se fala propriamente em acidente e, no caso, acidente de consumo na hipótese de defeito, pois é aí que o consumidor é atingido406.

Rememoremos os dois exemplos trazidos nos comentários ao art. 18 e que elucidam a diferença entre vício e defeito.

2.3 Exemplo n. 1

Uma consumidora e um consumidor comparecem no mesmo momento a uma loja de departamentos para adquirir um liquidificador. Após escolher, resolvem comprar o mesmo produto, da mesma marca e modelo. Por coincidência eles saíram da fábrica na mesma série de fabricação.

Ambos vão para suas casas, cada um com seu liquidificador. Cada um resolve, em sua residência, utilizar o produto. Ele pretende fazer um bolo. Ela, um suco. Retiram o aparelho da caixa, passam uma água e preparam-se para acioná- lo.

Ele liga o botão. O motor, de forma violenta, gira e uma das pás de liquidificação se quebra e sai voando, fura o copo e entra na sua barriga. Ele tem de ser hospitalizado e por pouco não morre.

Ela, por sua vez, aciona o botão. O motor, de forma violenta, gira e uma das pás de liquidificação se quebra e sai voando, fura o copo e cai no chão, sem atingir a consumidora407.

No primeiro caso, ele sofreu acidente de consumo. É defeito. No segundo, ela nada sofreu. Apenas o liquidificador deixou de funcionar. É vício.

2.4 Exemplo n. 2

Vários consumidores estão na fila da nova montanha-russa coberta, que corre por sinistro caminho escuro. Chegado o momento do embarque, elas se acomodam nos assentos e fecham à frente uma barra que funciona como trava de segurança.

Na primeira volta de uma série de oito similares, os carros dão uma brecada brusca sem motivo aparente e deixam de funcionar. Como a freada foi muito forte, a barra de segurança do assento da frente rompeu-se, arremessando ao solo os três consumidores dessa primeira fileira. Todos se feriram. Um sofreu escoriações generalizadas, outro quebrou um braço e o terceiro uma perna.

Para esses três consumidores a hipótese é de acidente de consumo por defeito do serviço. Para os demais que nada sofreram é vício.

Conforme já se viu, o CDC trata vício de maneira muito diferente de defeito, inclusive no que respeita ao agente que pode ser responsabilizado, aos prazos etc.

Visto isso, passemos aos comentários ao caput do art. 20 acima transcrito.

3. QUEM É O RESPONSÁVEL

Como já fizemos, coloquemos como primeira observação a ser feita a do sujeito da oração: “o fornecedor”.

Ao contrário do estabelecido nos arts. 18 e 19, nos quais aparecem como sujeitos os “fornecedores”, assim no plural, aqui no art. 20 há designação do termo no singular: “fornecedor”. Dessa forma, é de entender que a lei se refere ao fornecedor direto dos serviços prestados. E isso é adequado, na medida em que o serviço é sempre prestado

diretamente ao consumidor por alguém. E é essa pessoa, quer seja física quer seja jurídica, a responsável. Claro que, se for pessoa jurídica, o fato concreto de prestação será feito por pessoa física, mas haverá casos em que o serviço poderá ser realizado diretamente por instrumen-tos,como acontece, por exemplo, nos caixas eletrônicos dos bancos, nos lançamentos de contas em geral, efetivados automaticamente por computador etc.

4. PRESTADOR DO SERVIÇO

A redação do art. 20 é a mesma do art. 14 no que respeita ao sujeito. E, como já tivemos oportunidade de observar quando da análise daquele artigo, os termos deveriam ser outros, para estar mais adequados e coerentes com o sistema normado. A lei deveria ter dito “prestador do serviço”, uma vez que o vocábulo “fornecedor” é o gênero do qual “prestador” (do serviço) é espécie —como o são também fabricante, construtor, produtor, importadora e comerciante. Nesse aspecto o legislador falhou, pois toda vez que se refere especificamente a serviço usa a palavra “fornecedor”, em vez do termo tecnicamente correto “prestador”408.

5. SOLIDARIEDADE

Contudo, é necessário fazer uma observação. Ainda que a norma esteja tratando do fornecedor direto, isso não elide a responsabilidade dos demais que indiretamente tenham participado da relação. Não só porque há normas expressas nesse sentido (art. 34409 e §§ 1° e 2° do art. 25410) mas também e em especial pela necessária e legal solidariedade

existente entre todos os partícipes do ciclo de produção que geraram o dano (cf. o parágrafo único do art. 7°411), e, ainda mais, pelo fato de que, dependendo do tipo de serviço prestado, o fornecedor se utiliza necessariamente de serviços e produtos de terceiros412.

Por exemplo, o instalador de carpetes que usa cola, o banco que se utiliza do correio para remeter o talão de cheques, o funileiro que pinta o carro com certa tinta etc. Pode ocorrer em qualquer desses casos que o vício acabe decorrendo não diretamente do serviço prestado, mas do produto utilizado, elabora- do por terceiro (no exemplo do funileiro, a tinta que desbota), ou do serviço utilizado prestado por terceiro (no exemplo do banco, o correio que entrega o talão de cheques em local errado).

Logo, o importante é consignar desde já o que se deve entender por serviço prestado: é aquele feito de

conformidade com a oferta e cujo desenvolvimento esteja adequado e do qual advenha resultado útil, da maneira prometida, e que se tenha estabelecido diretamente pelo prestador, quer ele o faça diretamente (como no exemplo do profissional liberal da nota 391), quer se utilize de produto ou serviço de terceiros.

Insistamos um pouco mais nesse ponto para deixar clara essa responsabilização geral. Utilizemo-nos da argumentação e dos exemplos trazidos quando da interpretação do art. 14.

Lembre-se que, quando comentamos o caput do art. 12, observamos que na fabricação de qualquer produto sempre entra em jogo uma série de componentes, desde a matéria-prima e insumos básicos até o próprio design, o projeto, passando pelas peças, equipamentos etc. O produto final tem um responsável direto. Por exemplo, a montadora do

automóvel. Mas é possível identificar os fabricantes dos componentes. Por exemplo, o fabricante dos amortecedores, dos pneus, dos vidros etc.413.

No caso do serviço, ocorre algo similar. Há alguns serviços prestados de maneira direta e praticamente pura, tais como o de consulta médica, o de ensino, o do cabeleireiro etc.414. Mas há serviços que são compostos de outros serviços, tais como os de administração de cartões de crédito, que envolve a administradora, os bancos, que recebem os pagamentos das contas e os boletos de venda dos comerciantes, os correios, que remetem as faturas e demais correspondências, os serviços telefônicos, cujos canais são importantes no atendimento ao consumidor etc.415.

Há, ainda, outros serviços que são necessariamente compostos pela prestação dos serviços e da utilização de produtos. Não há o serviço sem o produto. Por exemplo, os serviços de consertos de automóveis e as respectivas trocas de peças, os serviços de assistência técnica de conserto de eletrodomésticos, os serviços domésticos de pintura e instalação elétrica etc.

Há, também, similares aos anteriores, produtos e serviços vendidos simultaneamente. Por exemplo, carpetes e sua colocação, papéis de parede e sua fixação, boxes de banheiro e sua instalação etc.

Visto isso, pergunta-se: qual é a participação, na responsabilidade por defeito, de todos esses agentes que se envolvem na prestação dos serviços?

A resposta é exatamente a mesma dada para o caso dos fabricantes das várias peças de um produto final: todos são responsáveis solidários, na medida de suas participações. Haverá, é claro, o prestador do serviço direto, que

provavelmente venha a ser o acionado em caso de dano. Porém, todos os demais participantes da execução do serviço principal, que contribuíram com seus próprios serviços e seus produtos, são, também, responsáveis solidários.

Assim, por exemplo, a Administradora de Cartões de Crédito Y remete ao consumidor a fatura para o pagamento do débito. Esse consumidor, João da Silva, no dia do vencimento da fatura, comparece ao Banco X e faz o pagamento. Foi um mês de muitas despesas, tantas que João até estourou o limite de crédito do seu cartão, concedido pela

administradora. Note-se que os bancos são parceiros do serviço da administradora, na medida em que esta os indica (e os contrata) para que eles recebam e deem quitação aos pagamentos feitos pelo consumidor.

O referido Banco X, por falha de seu sistema operacional, não remete para a administradora o comprovante de pagamento de João, que permanece com sua conta do cartão de crédito em aberto, constando como devedor, a partir do dia do vencimento.

João até recebe uma carta da administradora dizendo que estava em débito, mas não se incomodou, porque ao pé da folha estava escrito para que ele desconsiderasse o aviso caso o pagamento já tivesse sido feito. Depois, como não foi mais contatado, esqueceu o assunto.

Passados alguns dias, João, precisando de dinheiro, foi até um caixa eletrônico perto de sua casa sacar R$ 500,00 com seu cartão de crédito416. Não conseguiu, porque a máquina não processou a operação, indicando que ele estava em débito.

João não pôde sacar o dinheiro naquela hora. Como não sofreu nenhum prejuízo por causa da negativa da operação, o caso é de simples vício. Ele pode simplesmente ligar para a administradora do cartão e exigir que sua conta seja zerada, uma vez que está paga.

Examinando-se o caso, percebe-se, por sua descrição, que o erro no sistema operacional que gerou a não quitação da conta do cartão de crédito de João foi do banco — parceiro da administradora. Aquele é tão responsável pelo vício quanto esta. Do ponto de vista prático, o usual é que o consumidor reclame com o prestador do serviço direto — no caso, a administradora do cartão de crédito e não o banco, muito embora não haja qualquer impedimento jurídico para tanto417.