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Apreciação crítica dos juízos de imputação objetiva

CONDUTA MÉDICA E ESTABELECIMENTO DO NEXO DE CAUSALIDADE

5. JUÍZO DE IMPUTAÇÃO DA RESPONSABILIDADE

5.7 Apreciação crítica dos juízos de imputação objetiva

556 Idem, pp. 48-52. 557 Idem, p. 24. 558 Idem, p. 30.

As críticas que se têm lançado sobre a teoria da imputação objetiva parecem guardar, de fato, certa autoridade no que diz respeito ao processo de imputação penal, quando alertam quanto à possibilidade de exclusão da responsabilidade por outras vias consagradas como a verificação de causas relativamente independentes, visto que o simples rompimento da homogeneidade do encadeamento fático, levando a um resultado incongruente diante da ação inicial, já seria suficiente para se afastar o resultado.559 Contudo, tratando-se de imputação civil, muito em especial no caso de erro médico, a crítica perde força. Não se trata mais de uma avaliação de causa e consequência quanto a uma ação inicial capaz de produzir certos resultados. Não há o escopo de punir uma ação reprovável. O que se encontra, em verdade, é um risco já existente pela enfermidade e uma ação que busca interromper o curso natural do evento lesivo, já deflagrado pela doença.

De outro lado, a imputação objetiva, ao abandonar a análise do tipo subjetivo (dolo e culpa) e centrar-se na verificação de um modelo objetivado de conduta socialmente reprovável, negligencia importante contribuição conferida pela teoria da causalidade adequada, que esquadrinha o nexo de causalidade à luz de elemento inerente ao conceito de culpa, qual seja, a previsibilidade da conduta. De fato, não basta que a conduta seja socialmente reprovável (aos moldes do funcionalismo sistêmico de Jakobs), é necessário que o resultado danoso seja previsível, ainda que não tenha sido previsto no caso concreto. É justamente a previsibilidade das consequências que irá conferir o caráter de injusto necessário para o juízo de imputação. A relevante contribuição conferida pelo modelo objetivado de imputação deve servir para delimitar os critérios externos de valoração da ação finalista, sem que, contudo, lhe retire a perspectiva ontológica da conduta, orientada para a consecução de determinado fim, ainda que se implemente resultado diverso.560

559

Cf. PEDROSO. Nexo causal, imputação objetiva e tipicidade conglobante (2001), p. 480.

560

No Direito Penal, a exclusão do elemento subjetivo do tipo no nexo de imputação (previsibilidade da conduta como característica fundamental para o conceito de culpa) transportará sua análise para o momento de verificação da culpabilidade. Tal trajetória terá como repercussão que a conduta será típica, mas não culpável. Ainda que, fora do campo técnico, não se encontrem nisso efeitos práticos para a punição do réu, haverá para os partícipes. Não há participação em conduta atípica, mas há para aquela típica, mas não culpável, visto que a análise da culpabilidade é pessoal e individualizada.

Se a doença já apresenta o risco de morte ou outra complicação à qualidade de vida do paciente, o que deve ser ponderado, por meio de um juízo prognóstico retrospectivo, sem abandono dos elementos da teoria da causalidade adequada, é se a conduta médica apresentava maior potencial de diminuição do risco do que de incremento, seja tal risco o já existente pela doença ou outro qualquer que pudesse vir a surgir. A intervenção médica, via de regra, apresenta riscos. É possível que a conduta médica abrevie a vida do paciente, prolongue, ou ao menos tenha reflexos positivos ou negativos na qualidade de vida do paciente. Não basta que se realize um juízo a posteriori que possa constatar o acerto da decisão médica. Importa que, por meio de um juízo retrospectivo, se faça a análise, de acordo com os dados conhecidos à época e com o estado da técnica, do potencial de incremento e de diminuição de risco que havia em um juízo prognóstico.

Também se deve apontar que a desvalorização do elemento subjetivo do tipo revela seu desserviço não apenas no que concerne à verificação da previsibilidade do resultado, mas também quanto aos fins visados pelo agente. É certo que a conduta culposa não é intencional, mas os fins almejados assumem especial relevância, pois diferenciam condutas objetivamente idênticas, quando dotadas de intencionalidades distintas e do mesmo modo diferenciadas, quando da avaliação da reprovabilidade da conduta. Considerem-se duas situações: na primeira, o médico A utiliza-se de técnica não ortodoxa, a fim de buscar a cura de seu paciente, quando os meios tradicionais não mais ofereciam boas chances de resultado. O paciente, entretanto, devido à administração do tratamento, vai a óbito. Na segunda situação, o médico B utiliza-se da mesma técnica não ortodoxa e também leva o paciente a óbito, mas agora, resta motivado por experiências meramente acadêmicas, sem o verdadeiro intuito de obter a cura. É claro que ambas as situações, ainda que objetivamente idênticas, não poderão receber o mesmo tratamento, sem que se confira destaque ao elemento volitivo da ação, sob pena de contrariar os próprios fundamentos da concepção do papel social, conexos aos valores consagrados pela sociedade e à verificação da existência ou não de reprovabilidade da conduta, segundo elemento da culpa.

Tem-se objetado também a dificuldade de se averiguar se o comportamento alternativo dado como correto teria ou não evitado ou minorado o resultado. É claro

que a análise, mais uma vez, é probabilística, mas qual seria a probabilidade adequada para justificar uma condenação? A essa indagação, responde García-Ripoll Montijano561:

“A nuestro entender, las dificultades prácticas no eliminan la validez del examen del nivel de probabilidad, cuando existan estudios estadísticos, como son tan frecuentes en los tratamientos médicos. Si faltan estudios estadísticos, la cuestión, efectivamente, se complica, pero tampoco es imposible de solucionar. Por último, no hay que olvidar que el juez realiza continuamente cálculos estadísticos acudiendo al sentido común, cuando determina que una conducta es negligente. El juez valora, dados los datos “A”, “B”, y “C”, y desconociendo “X”, “Y” y “Z”, cuál era la probabilidad de que se produjera el resultado “R” y luego compara esa probabilidad con la importancia del bien jurídico protegido. Es decir, la probabilidad ex

ante de que se produzca un determinado grado de probabilidad, y se

considera ilícita a partir de ahí. Pero el juez no dispone normalmente de estudios estadísticos al respecto, a pesar de lo cual tiñe que decidir. Y tampoco hay una regla exacta que señale a partir de que porcentaje de probabilidades la conducta no es admisible.”

No início deste capítulo adiantou-se que a aplicação da teoria da imputação objetiva revela grande contribuição, quando da verificação do nexo de causalidade na responsabilidade civil médica. Foi dito que a dificuldade em se configurar a culpa “maliciosa”, necessária para uma condenação penal que visa à punição da conduta, não existirá na esfera civil, em que o objetivo da imputação é tão somente para reparação dos prejuízos causados. Nesse sentido, a inobservância do critério normativo (no caso, da lex artis), é suficiente para ensejar imputação de culpa, desde que guarde relação de causalidade com o escopo de proteção da norma e o incremento do risco. É necessário, portanto, que, além da inobservância dos deveres de cuidado, o resultado danoso esteja dentro do liame de causalidade conexo à infração. A norma oferece proteção exclusivamente diante de um círculo delimitado de possíveis cursos causais, de maneira que sua vulneração suporá um risco desaprovado se, e apenas se, comporta um dos cursos causais circunscritos; não se estenderá, de outro lado, em relação com aqueles cursos causais, cujo desenrolar não poderia ser evitado mediante a observância da norma.562

561

GARCÍA-RIPOLL MONTIJANO. Imputación objetiva, causa próxima y alcance de los daños indemnizables (2008), p. 199.

562

Feitas as devidas ressalvas e resguardada a verificação dos elementos estruturantes da culpa (previsibilidade do resultado e reprovabilidade da conduta) e as valiosas contribuições conferidas pela teoria da causalidade adequada, pode-se brindar os aportes inseridos pelas teorias da imputação objetiva. Após os estudos de sua estrutura, em especial no que concerne à ponderação dos riscos, percebe-se que revela sua utilidade não apenas para a imputação do nexo de causalidade na responsabilidade médica, mas também para as peculiaridades inerentes à distribuição do ônus da prova. É inegável que o paciente sucumbe em grande dificuldade probatória, visto não ser o detentor da técnica. Na adoção dos parâmetros propostos pela imputação objetiva, bastará ao paciente realizar a prova da existência do incremento do risco.

Ainda, nos casos em que reste comprovada a infração da lex artis, com seguido agravamento da condição do paciente, sem que, contudo, se possa determinar com precisão se este se deu em razão do tratamento médico, defende NORONHA que o simples fato de ter criado um “risco injustificado”, “um estado de perigo”, é suficiente para que seja atribuída responsabilidade.563 Para fins de atribuição do ônus da prova, considera-se a afirmação acertada. Ao médico caberá provar que o tratamento inadequado não contribuiu para o agravamento e que este deriva de causa independente de seu erro.