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Ato ilícito como consequência necessária da conduta culposa

CONTORNOS E PRESSUPOSTOS DA CONDUTA CULPOSA

2.7 Ato ilícito como consequência necessária da conduta culposa

Como já asseverado, na forma do artigo 186 do Código Civil brasileiro, o conceito de ilicitude é retirado da própria conduta tida por culposa. Para que o ato seja tido como ilícito, deverá ser imputado como culposo. Sem culpa não há ilicitude. A exemplo do sistema francês, que trata tanto do ato ilícito como da culpa dentro do conceito de faute,150 o diploma brasileiro não dá margem para se considerar um fato ilícito, sem ser culposo. Em verdade, para a configuração de um ato ilícito, é necessário que se verifique: 1) um dano; 2) ocasionado pela ação voluntária (ainda que não intencional) de outrem – nexo causal; 3) que seja tido como culposo. A culpa poderá ser dispensada nos casos de responsabilidade objetiva. Esse é o arcabouço básico do ato ilícito no sistema brasileiro.

Não é assim em Portugal, em que o ato ilícito será tomado como a conduta que infringe um dever legal. Toda infração de um padrão de conduta imposto pela lei será tido por ilícito. Mas o agente só se tornará responsável pelo dever de indenizar, se, ao mesmo tempo, se puder verificar que sua conduta foi eivada de culpa (lato sensu).151 Todavia, o conceito de culpa permanece intimamente relacionado ao ato ilícito, defendendo a doutrina lusitana, que a culpa pressupõe o ato ilícito. Há atos que são perigosos e que efetivamente geram danos, mas, por serem lícitos, não suscitam o problema da culpa. Esta somente terá relevância no âmbito dos atos ilícitos.152

Segundo MENEZES CORDEIRO, a culpa do artigo 483 do Código Civil português

consagra o modelo de IHERING, pois a imputação delitual exige que alguém com dolo ou

mera culpa, viole ilicitamente determinadas posições e, mais especificamente, um direito subjetivo ou uma norma de proteção. De outro lado, a responsabilidade contratual, prevista no artigo 798, por não se referir à ilicitude, teria consagrado o modelo da faute francês. É claro que alguém poderá, em razão de diversas outras normas, deixar de cumprir a obrigação de forma lícita. O artigo 799 arremata, permitindo que o devedor comprove a falta de culpa, sem mencionar novamente qualquer excludente de ilicitude. Isso não significa que a licitude ou a falta de nexo

150

Cf. PIROVANO. Faute civile et faute penale (1966), pp. 132-140.

151 Cf. VARELA. Das obrigações em geral (1998), pp. 606-611. 152

causal não possam ser comprovadas. O que de fato indica é que “culpa” deve ser compreendida dentro do conceito amplo do artigo 1382, do Código Civil francês que alberga também o ilícito.153

ANTUNES VARELA compreende a culpa (no sentido de culpabilidade) em um juízo

de reprovabilidade da conduta do agente no caso concreto, enquanto a ilicitude assumiria um juízo de reprovação em abstrato, previsto em lei.154 A culpabilidade é o juízo de valor em concreto. Em seus argumentos procura definir causas de exclusão de ilicitude e outras excludentes da culpabilidade. Dentre as primeiras, identifica a legítima defesa e o estado de necessidade, que se configuram como uma reação de defesa contra um outro ato ilícito. Todo juízo é feito, portanto, no campo abstrato da ilicitude. Como excludentes da culpa, elenca a inimputabilidade, a coação e o erro.155 Todas essas têm em comum um juízo sobre a vontade, sobre o estado psíquico, sobre a capacidade de compreensão dos resultados de seus atos e a exigibilidade de conduta diversa. São situações que se aproximam de um juízo de valor.

Tomando o conceito de ilicitude em seu conteúdo eminentemente objetivo, haverá a hipótese de uma contrariedade ao ordenamento jurídico não culposa, em outras palavras, ações ilícitas desprovidas de culpa. Seria o caso do médico que aplica medicação diversa da desejada, contrariando a regra técnica, em razão de caso fortuito ou ao menos a ele não imputado, que tenha levado à troca do rótulo do recipiente. Ainda que a conduta que deu causa ao óbito do paciente seja ilícita, seria desprovida de culpa, em razão do erro invencível do agente.156

Por outro lado, haverá quem afirme a impossibilidade de se fazer a inversão, constatando a existência de culpa, sem que se constitua um ato ilícito. Da verificação da presença de culpa deverá inferir-se a existência do Ilícito. O que se convencionou chamar de quase delito seria, em verdade, um ato ilícito; afinal, não se há de falar em

153

CORDEIRO. Da responsabilidade dos administradores das sociedades comerciais (1997), pp. 468-469.

154

VARELA. Das obrigações em geral (1998), p. 607

155

Idem, pp. 610-611.

156 A isso, algum finalista, tomando as lições do Direito Penal, poderá objetar que, se a conduta é típica,

necessariamente será provida de culpa ou dolo. Importa, todavia, frisar que, a despeito da tipicidade ser indiciária da ilicitude, com esta não se confunde. Adotado o conceito objetivo de ilicitude, conclui-se que basta a contrariedade ao ordenamento jurídico, que poderá ser afastada pelas excludentes de ilicitude.

culpa, que pressupõe a violação de uma norma de cuidado, sem se falar, com isso, em ilicitude.157

Sem dúvida devemos concordar que a infração de um dever de conduta, caracterizadora do conceito de culpa, acaba por configurar em si uma violação ao comportamento previamente estabelecido, tal qual a ilicitude. Em outras palavras, e sob outro prisma, ainda que o ato seja lesivo do direito de outrem, deixará de ser ilícito, se, na avaliação da conduta, não se encontrar contrariedade ao que se espera, de acordo com a forma como comumente se procede. Haverá ilicitude, quando apreciada a conduta do autor, no caso concreto, se averiguar transviada do proceder comum dos homens em circunstâncias idênticas. A culpa será tida como o “fiat dos demais elementos constitutivos do ato ilícito”.158 Por isso, BENUCCI vislumbra o ato

ilícito como “un comportamente dell’uomo (positivo o anche meramente omissivo) da cui deriva una lesione ad un diritto soggetivo assoluto e che, di regola, si qualifica ulteriomente con l’elemento subiettivo della colpa”.159

Observe-se, todavia, que não só a culpa, mas outro elemento essencial deve estar presente no evento para a configuração do ilícito, qual seja, a lesão a um objeto jurídico tutelado. Assim, para que se possa anunciar o que será um dos fundamentos daquilo que se pretende construir neste trabalho, apresenta-se o seguinte exemplo. Um médico, demasiadamente ocupado e atrasado para uma aula que irá lecionar, delega à sua equipe definir, em cada caso do dia, a cirurgia proposta. Entra então para a mesa de cirurgia um paciente que tem hemorróidas, mas o médico o confunde com outro paciente que tem cálculos na vesícula biliar e remove esta. Após a remoção, esta é enviada para exame anátomo-patológico o qual encontra um câncer muito incipiente, que só pôde ser detectado, porque a lâmina da biópsia deste órgão fora submetida a exame microscópico, sem o qual, nunca teria sido detectado em exames de imagem. O adenocarcinoma de vesícula biliar é um câncer muito fatal, mas curável, se encontrado precocemente, o que é raro ocorrer, tendo em vista que cresce de forma assintomática. Resultado: o paciente, de qualquer forma, teria perdido a

157 Cf. ORGAZ. La ilicitud (1974), p. 32-34. 158

ALVINO LIMA. Culpa e risco (1998), p. 61.

159

La responsabilitá civile (1955), p. 19. Em tradução livre: “Um comportamento do homem (positivo ou também meramente omissivo) do qual deriva uma lesão a um direito subjetivo absoluto e que, de regra, se qualificada ulteriormente como elemento subjetivo da culpa”

vesícula, que é a conduta adequada para o tipo de câncer e, por sorte, ou, pelo próprio “erro médico”, ganhou a vida. Nesse caso, não se pode negar a existência de culpa, visto que a conduta açodada, destituída da devida cautela e consubstanciada em nítida imprudência, levou o médico à realização de procedimento diverso do indicado pela lex artis, conforme o trabalho que lhe fora proposto. Entretanto, o resultado de tal evento não foi lesivo, pelo contrário, benéfico. Em razão de elemento meramente acidental e, por que não dizer, por mera sorte do destino, seu erro materializou-se em benefício ao paciente. Desse modo, se não há dano, ainda que a conduta seja culposa, não há de se falar em ato ilícito.

A ilicitude, no âmbito da responsabilidade civil, só terá relevância se acompanhada da existência de um dano. CARNELUTTI acentua que ato e dano são só

dois elementos que resultam da análise do ato ilícito, “come l’ossigeno e l’idrogeno si combinano nel’acqua; fisiologicamente però l’uno e l’atro coesitono nell’ato illecito, Il quale, quando è smembrato, perde la sua natura”.160 Ao contrário, na esfera penal não é necessário o dano para que haja ilicitude. A mera tentativa ou crimes como o de disparo de arma de fogo em via pública que não geram dano algum, mas apenas o perigo, configuram ato ilícito.161 Disso não pode decorrer a equivocada afirmação de que o caráter de ilicitude irá variar de um campo do Direito a outro. Em razão da unidade do ordenamento jurídico, o que é ilícito de acordo com alguma norma, será, simultânea e necessariamente, em todo Direito positivo. A ilicitude terá a mesma extensão em todos os setores do Direito, seja qual for a natureza da lei que estabeleça a ilicitude. O que varia é a responsabilidade, sem dúvida, mais ampla no Direito Civil.162

O caminho a ser proposto, que melhor confere solução à caracterização do dever de indenizar, é a verificação do incremento ou da diminuição do risco. A mera contrariedade ao ordenamento jurídico ou mesmo a conduta negligente não são suficientes para a imputação. Importa que a conduta seja vislumbrada na ótica da criação ou diminuição do risco de um resultado danoso.

No que concerne à positivação do dever de indenizar, enuncia o artigo 483, I, do Código Civil português que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente

160

CARNELUTTI. Il reato e Il danno (1930), pp. 20-21.

161 Cf. ORGAZ. La ilicitud (1974) p. 40. 162

o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”. Em sentido semelhante dirá o Código Civil brasileiro: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” De ambos enunciados podem-se extrair duas conclusões: 1) só haverá o dever de indenizar, quando houver prejuízo ao patrimônio jurídico de outrem; 2) nem toda violação dará razão a uma responsabilização, visto que também é necessário que essa seja contrária ao ordenamento jurídico e que, também, 3) seja eivada de culpa.