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Aspectos dificultosos da responsabilidade civil médica

O corpo humano é um mistério em si só a ser revelado que, desde os primórdios da humanidade, tem desafiado a ciência. O tema da vida e morte percorreu civilizações em meio a preocupações biológicas, teológicas, sociais, éticas e jurídicas.

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MARTINS-COSTA. Entendendo problemas médico-jurídicos em ginecologia e obstetrícia (2005), p. 119. Neste caso, além dos danos à paciente, poderá também propor ação indenizatória o marido ou companheiro em razão dos “danos à vida de relação”.

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As doenças, os acidentes, os atentados e outros agentes que militam contra a continuidade da vida, desafiam a ciência médica e, com ela, a atividade jurídica que vem a reboque. A etiologia, como o estudo das diversas causas de enfermidade física e psíquica, coexiste em meio aos mistérios da patogenesis: mecanismos mediante os quais se desenvolve o processo doentio, com etiologias exógenas, provenientes do mundo externo, e endógenas, provenientes do interior do mesmo organismo. Juntamente à etiologia se relacionam diversas outras concausas que influenciam o desenvolvimento da doença ou do processo de cura como predisposições genéticas, congênitas, fatores ambientais, emocionais, etc. A atribuição do processo causal não depende apenas da análise da conduta humana, mas deve pesar essas diversas vertentes. Ao médico, ser humano participante dessa saga que percorre gerações, não se pode exigir o conhecimento pleno da etiologia, muito menos do grau de participação de cada processo desencadeador. Do mesmo modo, a mesma exigência não se poderá fazer do magistrado.

Como restou acentuado pelo Exmo Ministro João Otávio de Noronha em julgado do Superior Tribunal de Justiça brasileiro:

"Creio que as ações sustentadas em dano por erro médico encerram uma das hipóteses que mais angustiam o julgador, porquanto, excetuando-se os casos de erros grosseiros, em que facilmente é detectável a culpa do profissional, os outros raramente encerram hipóteses conclusivas sobre atuação desastrosa do profissional. A ciência médica não é exata, constituindo obrigação de meio e não de resultado. O médico trata de pessoas, cada qual um universo distinto, capaz de influir no resultado buscado. Ademais, reações orgânicas não são previsíveis, de forma que nem todo resultado infeliz advindo de uma cirurgia pode ser atribuído a erro médico."81

A exposição de motivos da Resolução 1627/2000 do Conselho Federal de Medicina brasileiro, ao tratar do objeto da atividade médica esclarece:

“A Medicina se pratica no vértice de duas complexidades inter- complementares, que podem ser esquematicamente dispostas nas seguintes categorias:

a) a complexidade de seu objeto;

b) a complexidade de seus recursos e dos métodos diagnósticos e terapêuticos que utiliza.

81 REsp 605.435/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, Rel. p/ Acórdão Ministro LUIS FELIPE

Quanto ao seu objeto, podem-se identificar outros níveis de complexidade, devendo-se destacar:

A1) a complexidade das enfermidades (enfermidades por danos negativos, enfermidades por danos positivos e enfermidades por danos sentidos);

A2) a complexidade dos seres humanos (como expressão mais completa dos fenômenos vivos de natureza biopsicossocial);

A3) a complexidade das interações possíveis entre estes dois estratos complementares da realidade, os enfermos e as enfermidades.” Hoje, novos panoramas se abrem, o que traz novos desafios e o necessário estabelecimento de novos paradiguimas. Ressaltam-se as interações provocadas no estado da técnica pelos estudos no DNA, as pesquisas com células-tronco, a criação de órgãos humanos artificiais, as substituições por próteses, as inseminações artificiais homólogas e heterólogas, a eutanásia, o aborto82 e tantos outros procedimentos que têm levantado as mais diversas discussões no campo da técnica, da ética e em especial do Direito.

Os avanços da medicina transformam também a forma de se viver, tornando parte das preocupações e dos cuidados diários o acompanhamento dos progressos que por essa ciência são oferecidos. A automedicação é uma crescente, desafiando em contrapartida a corrida pela descoberta de novos medicamentos ante os riscos da popularização do uso indiscriminado de antibióticos. Os chamados medicamentos fitoterápicos ou o uso de vitaminas se tornaram em muitas famílias item ordinário da alimentação e das compras de supermercados. A apologia midiática do culto à estética desperta uma corrida, para muitos quase que compulsória, pela realização de cirurgias plásticas, a fim de se adequarem aos padrões aparentemente exigidos.

Ante os novos desafios de uma sociedade em constante mudança, transformada pelos avanços da ciência, pelo consumo, pelas tendências impostas pelo mercado e pelas inversões e regressões de paradigmas que se mesclam nessa

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Nos Estados Unidos, país em que é permitido o aborto, ações judiciais têm sido movidas diante da falta de diagnóstico médico sobre problemas congênitos ou de formação fetal, tolhendo a faculdade dos pais de optarem pelo aborto (wrongful birth). Do mesmo modo, os nascidos com deformidades têm pleiteado indenização por não desejarem ter nascido (wrongful life). Conferir a respeito: Keel v. Banach, 624 so. 2d 1022 (Ala. 1993); Turpin v. Sortini, 31 Cal. 3d 220 (1982); Curlender v. Bio-Science Laboratories, 106 Cal. App. 3d 811 (1980); Sheppard-Mobley v. King, 4 N.Y.3d 627, 797 N.Y.S.2d 403, 830 N.E.2d 301 (2005).

constante dinâmica, importa que sejam as lides dirimidas em sintonia com esse universo. De forma precisa, preleciona TARUFFO83:

“Assim como o juiz não é mais (admitindo-se que em algum tempo ele o haja realmente sido) a boca inanimada da lei teorizada por Montesquieu, nem um passivo aplicador de normas simples mediante deduções formais, ele não é mais (admitindo-se que em algum tempo ele o haja realmente sido) um passivo usuário de noções metajurídicas fornecidas ready made pela experiência coletiva, ou um elementar consumidor de regras e critérios dispostos de modo claro, completo e coerente no depósito constituído pelo senso comum. Em uma palavra: o juiz não tem mais à sua disposição uma imagem simples e ordenada do mundo, à qual possa reportar-se como pano-de-fundo de seus raciocínios.”

A exposição de motivos da Resolução 1627/2000 do Conselho Federal de Medicina brasileiro, que confere os contornos da profissão médica, termina por dizer que:

“Em quase todas as culturas passadas e presentes, os profissionais médicos foram reconhecidos como agentes sociais que exercem uma atividade necessária, difícil e responsável. À medicina foram atribuídas cinco funções sociais:

a) a assistência aos enfermos;

b) a pesquisa sobre as doenças e sobre os doentes; c) o ensino das matérias médicas;

d) o exercício da perícia; e, mais recentemente; e) a supervisão das auditorias técnicas médicas.”

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CAPÍTULO 2