• Nenhum resultado encontrado

CONTORNOS E PRESSUPOSTOS DA CONDUTA CULPOSA

2.9 Contrariedade ao dever de conduta

Culpa em sentido lato engloba todo tipo de vínculo de responsabilidade pelo nexo causal de uma conduta a um resultado, pautado por um juízo de reprovação. Nesse amplo viés, podem-se encontrar: 1) o ato praticado com o desejo de um resultado contrário à lei (dolo); 2) a intenção de praticar o ato prevendo o resultado, sem contudo, adotar cautelas, para que esse não se concretize, ainda que no íntimo não o deseje (dolo eventual); 3) a previsibilidade possível do resultado, em que o agente acreditava que não se realizaria (culpa consciente); ou, 4) a falta do dever de cuidado que lhe era exigível (culpa inconsciente).

184 SCHIATTONE; PLENTEDA. Colpa e diligenza (2008), pp. 175-176. 185 TAVARES. Teoria do crime culposo (2009), p. 289.

186

O médico NOVAH MORAES elenca dez diretrizes básicas de um atendimento médico responsável:“ 1) Estabelecer diagnóstico único que explique todos os sintomas e sinais; 2) Fazer seu próprio diagnóstico, ao assumir um caso; 3) Respeitar a soberania da clínica sobre os exames complementares; 4) Hierarquizar as probabilidades diagnósticas; 5) Fundamentar a conduta no diagnóstico; 6) Preservar a vida, a função, o órgão e a estética (nesta sequência); 7) Satisfazer a vontade do paciente ou justificar a impossibilidade; 8) Esclarecer tudo ao doente, de acordo com seu nível de entendimento e na oportunidade; 9) Aceitar a decisão do paciente; 10) Cuidar do paciente e, se possível, curá-lo.” NOVAH MORAES. Erro médico e a justiça (1003), p. 429. A respeito das competências de cada especialidade e dos conhecimentos que podem ser exigidos de cada profissional a estes pertencentes, conferir exaustiva enumeração feita pelo autor nas páginas 94 -106.

Em sentido estrito, todavia, a noção de culpa restará circunscrita às duas últimas formas de conduta, como ação contrária a um dever de cuidado cujo resultado era possível prever. A lei obriga a reparar danos que, no momento do fato danoso, eram previsíveis e evitáveis; por isso, na verificação da responsabilidade por determinado prejuízo, não basta que se averigue que o agente contribuiu com comportamento que previsivelmente poderia ocasionar dano, mas que esse comportamento produziu o dano pela forma por que era previsível que o causasse.187

Em obra magistral sobre a culpa, FIGUEIREDO DIAS a define em fórmula

simplificada como “censurabilidade do comportamento humano, por o culpado ter querido actuar contra o dever quando podia ter querido actuar de acordo com ele:”188 Mais à frente, reitera o conceito de maneira lapidar definindo culpa como “a própria autoria ou participação do existir (e do ser-livre) em uma contradição com as exigências do dever-se que lhe são dirigidas logo a partir do seu característico modo- de-ser.”189 Para ele, a liberdade do homem consiste na liberdade de decisão, compreendida não como possibilidade de escolha dentre possibilidades, mas como aquilo que haverá de ser feito através dele e, em última instância, decisão de ele sobre ele. Esta decisão receberá a conformação e mediação de toda a sociedade que, em meio a um conglomerado de fatores, fará com que o homem se aceite em “dever”, auxiliando-o e dirigindo-o para a finalidade que, por meio de sua decisão sobre si mesmo, terá de afirmar ou escolher. Nesse viés surge a responsabilidade, como mediadora entre e liberdade e a culpa.190 A culpa jurídica é, desse modo, a infração do dever de conformar seu existir no agir, de forma a não violar ou pôr em risco bens juridicamente protegidos.191

No mesmo rumo ensina LARENZ que ao homem se imputam suas ações e, até

certo ponto, as conseqüências destas, quando, agindo de outra forma, as poderia ter evitado. Salvo a posição determinista192 e os atos de mero reflexo, o homem age dentro de sua capacidade de fazer escolhas, ponderando meios e fins em uma

187

SILVA. O dever de prestar e o dever de indemnizar (1944), p. 149.

188

DIAS. Liberdade e culpa no Direito Penal (1983), p. 22.

189 Idem, p. 152. 190

Idem, pp. 151-152.

191

Idem, pp, 160-161

192 Considera que o homem age sempre de acordo com sua natureza, não agindo propriamente, mas

exigência do dever ser. Se assim ocorre, imputa-se com razão o ato como seu e, nesse sentido, desvalor que se produz como conseqüência da inobservância de uma exigência do dever ser. Esse trará um juízo de reprovação, que será auto-imputável, quando se tratar de “culpa moral” e hetero-imputável, quando se tratar de culpa jurídica.193

Para WELZEL, à culpabilidade (culpa em sentido amplo) resta tão somente o

elemento normativo, é a reprovabilidade da decisão de cometer o fato, na produção não dolosa de resultados, a reprovabilidade por não ter evitado mediante uma atividade regulada de modo finalista.194 O conteúdo de reprovabilidade da culpa consiste na formação da vontade que se relaciona com uma norma dupla: “Tu deverias ter atuado conforme a norma, porque podia ter atuado conforme a norma”. De outro lado, o juízo da ilicitude dirá simplesmente que: “Tu atuaste contrariamente à norma”, sem, contudo, indagar se o agente podia ter atuado conforme a norma.195

KAUFMANN rechaça a opinião de que culpa é o mesmo que reprovabilidade. É, na

realidade, aquilo que há de se reprovar. É a consciente decisão sobre o desvalor daquele que atua, sabendo estar agindo contrariamente a seu dever. Segundo isso, apenas se pode qualificar como culposa a conduta conscientemente negligente, mas não um comportamento inconsciente, falto de diligência.196

O sentido de culpa será verificado na análise de dois elementos essenciais: um objetivo, concernente ao dever violado e outro subjetivo, atinente à imputabilidade. Esta, por sua vez, compreende dois elementos: a) possibilidade do agente conhecer o dever; b) possibilidade de observá-lo.197

A prova da falta de culpa consiste na demonstração de que agiu com a diligência, prudência e perícias que lhe eram esperadas, atendendo às circunstâncias do caso concreto pessoais, cronológicas e temporais. Se assim proceder, restará a conclusão de que o resultado se deu, porque não era possível prever ou, se previsível,

193

LARENZ. Derecho justo fundamentos de etica jurídica (1990), pp. 100-104.

194

WELZEL. La teoría de la acción finalista (1951), p. 33.

195

Idem, pp. 33-34.

196 KAUFMANN, Schuldprinzip, p. 178, apud. LARENZ, Karl. Derecho justo fundamentos de ética jurídica.

(1990), p. 105.

197

ALVIM. Da inexecução das obrigações e suas conseqüências (1980), p. 255. Em páginas 306 irá afirmar que “uma das dificuldades que a teoria da culpa oferece é a caracterização precisa do seu elemento objetivo, infração de um dever, que se não confunde com infração da lei”.

não era possível evitá-lo. Implica dizer que a falta de culpa conduzirá ao fortuito, à força maior ou à força externa invencível.198

O termo negligência tem sido empregado como sinônimo de conduta culposa (a exemplo do que faz o Código Civil português em seus artigos 487,2, 491, 1, e o Código Civil Espanhol em seus artigos 1101, 1103, apesar do uso concomitante com culpa no artigo 1104). Há aqueles também que preferem o termo mera culpa, a fim de distinguir culpa em seu sentido mais amplo de culpabilidade. Outros, todavia, como é a maior parte da doutrina brasileira, preferem situar a negligência como modalidade de culpa, ao lado da imprudência e da imperícia. Optamos por seguir esta linha. Nesse sentido, a negligência será associada tão somente à omissão do dever de cuidado exigido e não aos atos imperitos ou açodados. A exemplo, no campo do erro médico, pode-se citar o abandono de paciente, quando este ainda necessitava de atenção, queimaduras causadas pela radioterapia, consolidação desviada de fratura óssea por alinhamento incorreto do gesso no momento da imobilização e falta de assepsia de instrumentos cirúrgicos.

A imprudência, por sua vez, se dará por atos comissivos em que uma conduta precipitada toma o lugar de outra aconselhada. O médico é imprudente, quando, tendo conhecimento do risco e com conhecimento da técnica, toma a decisão de agir assim mesmo, de forma açodada e com ausência de ponderação.199 É o caso do médico generalista que deixa de encaminhar paciente para um profissional especializado ou de uma intervenção cirúrgica sem a prévia análise dos exames pré- operatórios, quando provido de tempo para tanto.200

Finalmente, a imperícia é a ausência de aptidão para a realização de determinado procedimento. Nesse caso, haverá divergência se deve ser prévia201 ou acidental202. Pela primeira concepção, haverá grande aproximação com a imprudência, pois estará o profissional médico realizando procedimento fora de sua área de

198

BUSTAMANTE ALSINA. Teoría General de la responsabilidad civil (1997) pp. 350-351.

199

CONSTANTINO. Julgamento ético do médico: reflexão sobre culpa, nexo de causalidade e dano (2008), p. 98.

200 O artigo 29o do Código Deontológico médico português prevê que: “1. O médico não deve ultrapassar

os limites das suas qualificações e competências. 2. Quando lhe pareça indicado, deve pedir colaboração de outro médico ou indicar ao doente um colega que julgue mais qualificado”.

201 MOREIRA DO ROSÁRIO. A perda da chance de cura na responsabilidade civil médica (2009), p. 15. 202

formação, ao qual não está habilitado, aconselhando-se o encaminhamento a outro profissional. Ao optar ainda assim pela execução, estará sendo imprudente, ante o conhecimento da própria imperícia. Se, todavia, se tomar a imperícia como acidental, ali se alocarão todos os casos em que, no próprio procedimento, lhe faltou a técnica esperada. De todo modo, importa lembrar a principiologia da confiança, boa fé e cooperação existente nas relações contratuais, que traz como imperativo a segurança de que o devedor possui as qualidades necessárias ao desempenho do ato. Como acentua ANTUNES VARELA, “esta espécie de garantia tácita constitui o principal

fundamento dos laivos de objectividade existentes na noção de culpa geralmente aceite pelos autores”.203 Nesse sentido, é certo que a expectativa inerente à relação de confiança é de que o profissional esteja habilitado para a tarefa que se propõe realizar.

Para fins de aplicação das normas de responsabilidade civil tal distinção é dispicienda, pois, como afirma BONVICINI: “Il critério valutativo tanto della perizia,

quanto della diligenza é unitário, in quanto entrambi i requisiti contribuiscono all’adempimento e, quindi sono valutati negativamente in sede di inademplimento totale o parziale o difforme (inesattezza), dando adito entrambe alla colpa.”204