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CONTORNOS E PRESSUPOSTOS DA CONDUTA CULPOSA

2.2 Desenvolvimento do parâmetro da culpa

Com o advento da Lex Aquilia92 no Direito Romano, em meados do século II a.C, surge a consolidação de um modelo de responsabilidade mais estruturado, baseado na averiguação dos seguintes elementos: 1) dano (damnum); 2) do ilícito (iniuria), baseado em um modelo objetivo em que se pode excluir a antijuridicidade apenas em razão de alguma causa justificativa; 3) causalidade (corpori et corpori); e, 4) aestimatio,

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Cf. LARENZ. Derecho justo fundamentos de etica jurídica (1990), p. 116.

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Trimarchi. Causalità e danno (1967), p. 26

91 Nesse sentido Superior Tribunal de Justiça brasileiro - REsp 513.891/RJ, Rel. Ministro ARI

PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/03/2007, DJ 16/04/2007 p. 181.

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Cf. FRANÇA. Responsabilidade aquiliana e suas Raízes (1988). A lex Aquilia se deu por meio de um plebiscito, que era formado por meio de proposta de tribunos da plebe e por esta deliberado, que, por força da Lex Hortênsia, de 287 a. C, tinha validade para todo o povo, inclusive para os patrícios.

que correspondia à forma de mensuração do valor da indenização.93 Com a evolução da jurisprudência, a iniuria passou a ser constituída de dois elementos: um objetivo, caracterizado pela antijuridicidade, e outro subjetivo, qualificado como voluntariedade censurável (culpa). Apesar da culpa ter surgido dentro da iniuria, são conceitos diferentes, visto ser a primeira subjetiva e a segunda objetiva. Para a maior parte dos expositores94, com a Lex Aquilia, a culpa se firmou definitivamente como elemento essencial da responsabilidade aquiliana, tanto no Direito Romano como nos direitos contemporâneos.95

De início, a Lex Aquilia restou limitada aos danos inferidos corpore corpori, aplicável tão somente in factum. No Direito Justiniano alcançou sua maior amplitude para atingir qualquer espécie de dano extracontratual e mesmo non corpori.96 O conceito de atos ilícitos reprimidos com as penas do danum iniuria datum foi alargado pela jurisprudência, com a concessão da actionis legis Aquiliae utiles ou de actiones in factum a hipóteses em que evento danoso não derivava de atos diretos do agente, bastando a simples omissão vinculada a ato anteriormente realizado pelo ofensor. Era o caso do médico que, após ter iniciado o tratamento do escravo, o abandonava, levando-o a óbito.97 Outrossim, com Ulpiano, restou consignado: sicut medico imputari eventus mortatis non debet: ita quod per imperitiam commitit imputari ei debet. (Digesto, Liv. I, Tít. XVIII, fr. 6, §7º) - "não se pode imputar ao médico o evento da morte, mas a ele é de se imputar o que a cometeu por imperícia".

A responsabilidade por danos não intencionais recebeu diversas designações, como culpa, negligência, imprudência, etc. De início o termo mais comum era diligentia, que frequentemente aparece no corpus iuris. Nas doutrinas posteriores, contudo, culpa passou a ser o termo técnico de uso comum para designar a falta do dever de cuidado com três diferentes níveis de exigência. O primeiro tipo é o de culpa lata (D. 50.16.213.2, D. 50.16.223 pr e D.22.6.9.2) ou magna (nímia) neglegentia (D.

93 JUSTO. Lex aquilia (2006), p. 17-18. Cf. também BUSTAMANTE ALSINA. Teoría General de la

responsabilidad civil (1997), pp. 34 e 35.

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Nesse sentido, aponta ALVINO LIMA: Girard, Gaston May, E. Cuq, Pirson et Villé, Contardo Ferrini, Ihering e Leonardo Colombo. Em sentido contrário, entendendo ter sido a culpa introduzida pouco a pouco de acordo com as necessidades sociais: Emílio Betti, Mario Cozzi e Frederico Pezella, in Culpa e Risco (1998), p. 23.

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Cfr Justo, op cit, pp. 22-23.

96 SILVA. Responsabilidade sem culpa (1974), p 18. 97

50.16.226), que exige que se preveja o que pessoas comuns poderiam prever. Na idade média será tratada de forma muito semelhante ao próprio dolo. O segundo tipo é a culpa levis (D.9.2.31), quando se espera que se preveja o que uma pessoa mais sensível poderia prever. Aceita-se que o homem médio poderia não prever. A terceira forma vem a ser a culpa levíssima, termo usado esporadicamente no Corpus iuris, em especial no escopo da lex Aquilia (D. 9.2.44 pr), cujo padrão de exigência é elevado, tendo como parâmetro o dever de cuidado esperado de um pater famílias.98 Esta tripartição valorativa do conceito de culpa poderá ser encontrada hoje em alguns códigos latino- americanos.99

No contexto da lex aquilia até mesmo a culpa levíssima seria suficiente para caracterizar a responsabilidade. No Direito canônico, todavia, a culpa levíssima passou a perder sua relevância, em especial com Inocêncio IV que permitia a redenção da responsabilidade pela simples confissão em casos de culpa levíssima. Não haveria uma lei natural que justificasse a responsabilidade por culpa levíssima. Dentre os teólogos morais dos séculos XV e XVI a matéria sempre foi controvertida. Baseado na Suma Theológica de Thomas de Aquino100, o papa Adriano VI definiu a necessidade de restituição, mesmo que amparada por mera culpa levíssima. Para o pontífice, o dever de restituir não se baseia no fato de alguém ter pecado, como alegava a doutrina

98 HALLEBEEK. Negligence in medieval roman law (2001), p. 74-78. 99

Artigo 44 do Código Civil Chileno: “La ley distingue tres especies de culpa o descuido. Culpa grave, negligencia, culpa lata, es la que consiste en no manejar los negocios ajenos con aquel cuidado que aun las personas negligentes y de poca prudencia suelen emplear en sus negocios propios. Esta culpa en materias civiles equivale al dolo.

Culpa leve, descuido leve, descuido ligero, es la falta de aquella diligencia y cuidado que los hombres emplean ordinariamente en sus negocios propios. Culpa o descuido, sin otra calificación, significa culpa o descuido leve. Esta especie de culpa se opone a la diligencia o cuidado ordinario o mediano.

El que debe administrar un negocio como un buen padre de familia es responsable de esta especie de culpa.

Culpa o descuido levísimo es la falta de aquella esmerada diligencia que un hombre juicioso emplea en la administración de sus negocios importantes. Esta especie de culpa se opone a la suma diligencia o cuidado.”

Também o Código Civil Peruano de 1936 definia em seu artigo 1267: “La culpa es lata, leve y levísima: lata es la que consiste en la omisión de aquellas precauciones o diligencias que están al alcance de los hombres menos cautos o avisados; leve, la omisión de las que un buen padre de familia toma ordinariamente en sus negocios, y levísima, la omisión de aquellos cuidados que solo pueden poner en sus asuntos los padres de familia más exactos y diligentes”.

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Thomas de Aquino definia a acceptio iniuriosa como uma ação em que alguém é privado de algo contra sua vontade. A julgar pelos exemplos dados de roubo, furto e assalto é provável que ele tivesse em mente apenas os casos de conduta intencional.

dominante, mas no fato de que a restituição de um dano causado a outro deve ser feita por aquele que causou, ainda que com culpa levíssima.101

Contudo, POSNER chama a atenção para o que lhe parece ser a perspectiva

dominante dentre historiadores e acadêmicos, de que antes do século dezenove um homem poderia ser responsabilizado por um dano causado por acidente, sem se conferir grande relevância à verificação da existência de culpa. Foi com o desenvolvimento da filosofia individualista e, possivelmente, com a pressão do desenvolvimento industrial que o conceito de responsabilidade baseada na verificação da culpa ganhou contornos de relação de imperativa necessidade.102

Com o advento do Código de Napoleão a “faute” é expressamente consagrada no artigo 1382, como fórmula generalizadora que serviu de padrão para as legislações modernas103, obrigando a todo que, agindo com culpa, venha causar dano a outrem, a reparar o prejuízo: “tout fait quelconque de l’homme, que cause à autri um dommage oblige colui par la faute duquel il est arrivé, à le réparer.” Em seguida o artigo 1383 fala da responsabilidade pela negligência e pela imprudência, estendendo a responsabilidade tanto para os atos comissivos como para os omissivos. Segundo PLANIOL, a faute do Direito Francês deve ser compreendida como a violação de uma obrigação preexistente, seja ela de agir seja de abstenção do ato.104 A doutrina, todavia, tem estado dividida com relação à existência do elemento do ilícito dentro do conceito de faute. A ausência desse faria o conceito de culpa mais aberto, sem a catalogação de deveres previamente concebidos, o que se afastaria do conceito alemão, como veremos mais adiante.105

Ao final do século XIX surgem as primeiras teorias do risco criado, por meio de SALEILLES,JOSSERAN,ESMEIN,MERKEL,SAVATIER,DEMOGUE e outros, que buscaram adaptar o

direito às novas realidades industriais e ao progresso que se instalou, compreendendo que em certas atividades, o risco criado é suficiente para justificar a responsabilidade pela ocorrência de um dano, sem necessidade de se averiguar a culpa. Não haveria

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DONDORP. Crime and punishment (2001), pp. 119-128.

102 POSNER. A theory of negligence (1972), p. 30. 103

LIMA. Culpa e risco (1998), p. 42.

104

PLANIOL. Traité élémentaire de Droit civil (1947), pp. 323-325.

105 Cf. CORDEIRO. Da responsabilidade dos administradores das sociedades comerciais (1997), pp. 438-

grau de culpa e nem sequer diferença axiológica entre quem comete um ato intencionalmente e outro que se omite no dever de cuidado.106

Doutrinadores e jurisprudência passaram então a um processo de alargamento do conceito de culpa, seja na facilitação de sua prova, seja no reconhecimento de presunções de culpa, seja na extensão de seu conceito.107