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CONTORNOS E PRESSUPOSTOS DA CONDUTA CULPOSA

2.11 Culpa como ação psíquica do agente

Os atos culposos derivam da idéia de que o homem não pode prever e dispor do futuro. Como ensina WELZEL, somente Deus, devido à sua onisciência e onipotência,

pode atuar exclusivamente de forma finalista. O homem só poderá fazer em uma escala bem limitada em sua previsão. Assim, boa parte dos resultados que alcança é causada cegamente e, por que não dizer, causalmente. Desses efeitos não finalistas encontramos pura causalidade, pois o homem não poderá prever, nem sequer evitar, por vezes, o resultado. O que o Direito exige daqueles que querem participar da vida social e, no caso do médico, atuar na prática da medicina, é um mínimo de direção finalista em suas ações, como observância da diligência necessária que dele é

210

Idem, p. 597.

211 DIAS. Culpa médica (1995), p. 30. 212

esperada. O ato culposo consistirá na comissão de um ato que acarreta a lesão a um bem jurídico, pela não observância da diligência devida.213

A reprovabilidade da lei encontra-se em um defeito da vontade que permite ações imprudentes ou impede a necessária diligência das condutas humanas. O ato daquele que será responsabilizado pelo dano deverá ser moralmente imputável à pessoa, o que se dá com o conhecimento e liberdade do agente. A culpa, desse modo, se funda sempre na previsibilidade do fato lesivo que se devia evitar. A ignorância não superável terá o condão de excluir a culpa.214

Mas, como bem adverte EHRENZWEIG, a previsibilidade não é o bastante; é

necessário que se verifique, no caso concreto, a possibilidade de ter evitado o resultado danoso, por meio de conduta que era de fato exigível ao agente. Não poderá ser imputada como culposa a conduta, quando não se podia exigir conduta diversa daquela, ou os riscos de uma conduta de salvaguarda eram inaceitáveis ou ainda quando os riscos da produção do resultado danoso eram aceitáveis e justificados naquele momento.215

Alerta, ainda, GOMES DA SILVA que o dever de conhecimento das normas de conduta é consequência da natureza racional do homem e, quando este age com frouxidão com relação a este dever, contraria sua própria natureza. A culpa se encontra, nesse sentido, no relaxamento das energias espirituais, o que permite a infração de uma norma jurídica, sem a intenção de o fazer ou até sem disso ter conhecimento. A culpa é a noção antitética da diligência em acepção moral. Enquanto a diligência moral é a tensão de vontade para agir conforme o dever de conduta, a culpa é a frouxidão das faculdades que deveriam ser aplicadas para a consecução desse fim. A culpa não é, portanto, mera falta de diligência, mas atitude contrária a esta.216

Nesse diapasão, ANTUNES VARELA questiona se no campo da negligência se

encontra apenas a falta de cuidado, de zelo ou de aplicação (a incúria, o desleixo, a precipitação, a leviandade ou ligeireza), ou se, também, se deve inquirir sobre a falta

213

WELZEL. La teoría de la acción finalista (1951), pp. 39-40.

214

CORSARO. Culpa y responsabilidad civil: La evolución del sistema italiano (2000), pp. 138-139.

215 EHRENZWEIG. Negligence without fault (1966), p. 1445. 216

de senso, de perícia ou de aptidão (incompetência, incapacidade natural, inaptidão). Em outras palavras, o padrão do homem médio deve ser tomado para a verificação do grau de cuidado e diligência ou também para avaliação da capacidade e competência? Deve-se exigir apenas o cuidado ou, também, a correção de suas deficiências e a abstinência de práticas em que se compreenda incapaz?

Conclui VARELA que a exigência deve ser dupla e que, a despeito da injustiça que

possa talvez parecer, pela imposição de responsabilidade àquele que agiu nos limites de suas forças, o direito civil não deve encontrar na culpa a legitimação para uma pena, mas apenas o parâmetro para se decidir sobre quem deverá recair o prejuízo. Nesse sentido, é mais justo que recaia sobre o causador do dano. Além disso, servirá como estímulo para que profissionais busquem o aprimoramento da técnica.217

Apesar de concordarmos com o resultado de suas conclusões, não pensamos da mesma forma com relação aos fundamentos. Parece-nos que a questão está mal colocada. Se tomarmos novamente o parâmetro da previsibilidade, aliado ao da possibilidade de se tomar conduta diversa, a exigência será apenas uma e suficiente para a mesma solução. Ora, o médico que sabe ser incapaz para determinado procedimento, tem a condição de prever os resultados de sua ação. Resta então saber se poderia agir de forma diversa. Haverá situações em que poderá dirigir o paciente a um especialista. Nesse caso, se, ao contrário, assumir tarefa à qual não estava habilitado, estará incorrendo em culpa pela simples decisão imprudente.218 De todo modo, é imperativa a prova do nexo de causalidade. Não basta a comprovação de ter atuado o médico em procedimento que sabe ou deveria saber ser incapacitado, mas é imperativo que comprove também a existência do nexo de causalidade entre sua conduta e o evento danoso.

Importa também que se faça a ressalva que, por vezes, terá o médico de realizar com urgência a medida necessária e, não havendo tempo para encaminhar a outro profissional, terá de proceder dentro da limitação de seus conhecimentos e habilidades. Nesse caso, não lhe poderá ser imputada culpa, pois, ainda que tivesse

217 VARELA. Das obrigações em geral, v. I (1998), pp. 598-602. 218

condições de prever o resultado em razão de suas deficiências técnicas, não lhe era exigida conduta diversa; pelo contrário, agiu conforme seu dever no caso concreto.

De outro lado, LARENZ ressalta que, na falta de habilidade, toda atenção e

cuidado que o médico pudesse empenhar não seriam suficientes para evitar o resultado. Isso se dará, por exemplo, quando desconhece uma nova técnica da medicina, por estar desatualizado. Acrescenta ainda que mais complicada se tornará a questão, quando nem sequer tiver a capacidade de avaliar, de formar um juízo de que não estava em condições de intervir naquele tratamento, em razão de suas limitações. Nesses casos, alerta o autor que a rigorosa aplicação das normas de responsabilidade civil excluiriam qualquer responsabilidade, visto que somente será imputável, quando for capaz em virtude de suas atitudes espirituais ou físicas de conhecer e realizar o que lhe era exigível. Contudo, LARENZ posiciona-se ao lado da jurisprudência alemã,

defendendo um critério objetivado ou tipificado da culpa, segundo o qual à responsabilidade civil interessam somente os conhecimentos e a atitude típicos de uma pessoa pertencente a uma mesma profissão ou a idêntico grupo de pessoas. Deste modo, o que exerce a profissão de médico, deverá responder pelas atitudes e conhecimento médios apresentados por profissionais da mesma área e segundo o grau de especialização com que se identificava. Esta concepção não está de acordo com as regras ordinárias de responsabilidade civil por culpa, mas, em verdade, se aproxima da natureza da responsabilidade objetiva. Isso será necessário para o desenvolvimento das relações sociais, pois, na medida em que alguém procura um médico, confia que encontrará nesse a atitude típica de sua profissão.219 Contudo, quando o médico age fora de uma relação jurídica negocial, em situações de necessidade ou de perigo, buscando prestar auxílio, não lhe poderá exigir-lhe mais do que seja capaz de realizar segundo suas habilidades individuais.220

GOMES DA SILVA, como já assinalado, considera o desconhecimento da técnica

como parte da própria culpa, em expressão da contrariedade do dever de diligência em se fazer habilitado, aceitando, contudo, a ignorância quanto a objetos que o homem médio desconheça, exceto se, de forma temerária, tiver desenvolvido

219 LARENZ. Derecho de obligaciones, v. I (1958), pp. 287-288. 220

atividade que exigia conhecimentos especiais, sem, todavia, o ter adquirido.221 Com essa última ressalva, corrobora nosso entendimento.