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CONTORNOS E PRESSUPOSTOS DA CONDUTA CULPOSA

2.3 Reprovabilidade da conduta

Segundo DE CULPIS, a culpa é um estado de ânimo que, em relação a um

determinado dano, será tido como reprovável, estado contrário ao do indivíduo disposto a evitar os efeitos perniciosos do dano. Normalmente, a culpa é posta em correlação com a antijuridicidade, sendo precisamente considerada como um estado de ânimo que integra psicologicamente o fato antijurídico, assume caráter de contrariedade ao direito.108

A violação voluntária de uma norma jurídica possibilita a execução de dois juízos de valor: um sobre o caráter anti-social do ato ou do seu resultado e outro sobre a dimensão ético-jurídica.109 O grau de reprovação ou censura será maior na proporção da possibilidade da pessoa ter agido de outro modo, e mais intenso o dever de o ter feito.110 Como bem preleciona ASCENSÃO, “pode assim um facto ser ilícito, porque merecedor de objetiva reprovação por parte da ordem jurídica, sem que o seu autor seja culpado, por não se encontrar o desvalor pessoal em que consiste a culpa.”111

Dentre as teorias que procuram explicar os fundamentos de responsabilização dos atos culposos, a reprovabilidade da conduta toma maior expressão na teoria do defeito de apreciação do bem jurídico, que tem em EXNER seu principal adepto, o qual

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TRUJILLO. Nociones de responsabilidad civil (1957), pp. 9-10.

107

Cf. LIMA. Culpa e Risco (1998), p. 70.

108 DE CULPIS. Il danno (1979), p. 140. 109

JORGE. Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil (1995), p. 67

110

VARELA. Das obrigações em geral (1998), p. 594. Cfr também BUSTAMANTE ALSINA. Teoría General de la responsabilidad civil (1997) p. 338.

111

concebe a culpa dentro de uma valoração dos objetos, consistindo em uma falta de interesse na defesa do bem jurídico protegido pela norma.112

Diante disso, tem se argumentado que o conceito de ilicitude restou esvaziado e que é desnecessário, porque os direitos subjetivos, quando violados, são a razão simples e única da existência do direito à indenização. Além disso, condena-se a possível assunção de um papel repressor e sancionatório por parte do Direito civil.

Contudo, importa frisar que, a despeito da resistência de adoção das punitive dammages nos sistemas jurídicos de tradição romanística (civil law) não se pode negar que o direito civil tem assumido uma ponderação da culpabilidade, quando permite a diminuição da indenização nos casos de baixo grau de culpa (art. 494° do Código Civil português e 944 do Código Civil brasileiro) ou quando da participação culposa do lesado (art. 945 do Código Civil brasileiro e 570 do Código Civil português). Isso não quer dizer que o Direito civil tenha perdido seu caráter reparatório, pois, como foi dito, a extrapolação do valor do dano como caráter punitivo da conduta (punitive dammages) não foi recepcionado fora do sistema da commom law (no ordenamento português há algumas exceções como nos arts. 442 e 806, 1). Em verdade a compreensão da ilicitude como separada da culpabilidade e dentro de seu elemento anímico parece, de fato, se traduzir como o caminho para a definição do responsável ou da averiguação das parcelas de responsabilidade daqueles que concorreram para o evento danoso.113

No intrincado problema da responsabilização médica por eventuais insucessos dos procedimentos adotados, encontra-se o dilema sempre presente de que uma excessiva tutela sobre o afastamento das regras tradicionais de conduta poderá apresentar-se como grande repressora do avanço da medicina, do progresso da técnica. Somem-se a isso as particularidades apresentadas por cada organismo que impedem uma perfeita previsão da reação que terá diante do tratamento proposto.

Por tais razões, na consideração da reprovabilidade da conduta, o Código Civil italiano prevê oportuno tratamento diferenciado para a imputação da responsabilidade do profissional liberal que atue em área de especial dificuldade,

112 TAVARES. Teoria do crime culposo (2009), p. 21. 113

como é o caso do médico diante das inúmeras variáveis apresentadas pelo corpo humano, em sua interação com a enfermidade e com o tratamento:

Art. 2236 Responsabilità del prestatore d'opera

Se la prestazione implica la soluzione di problemi tecnici di speciale difficoltà, il prestatore d'opera non risponde dei danni, se non in caso di dolo o di colpa grave (1176).114

BONVICINI esclarece que o conceito de culpa grave tem se postado controverso.

Há quem equipare ao dolo, presumindo uma previsibilidade concreta (dolo eventual) do resultado, ainda que este não seja perseguido.115 Outros porão acento sobre a vontade do sujeito, em que a culpa, para ser grave, deve ser animada pela má fé ou representação do perigo sobre o bem jurídico (falta inescusável), de forma a identificá- la com a culpa consciente.116 Haverá também quem gradue a culpa de acordo com uma especial qualificação de negligência ou de imprudência (gross negligence), que cobrirá tanto o ato consciente deliberado, como o ato sem resguardo das consequências.117 Para BONVICINI, não é relevante o descuido que se desvia daquilo que

poderia ser exigido no critério do “bom pai de família” (homem médio), mas sim quando a consciência social considera haver forte alteração dos deveres particulares de proteção, conferidos ao profissional no exercício de sua função, que limita a responsabilidade, ao escusá-lo de responder a título de mera culpa, impropriamente definida como leve, em contraposição à culpa grave.118

Segundo FORCCHIELLI, a norma reporta-se à jurisprudência italiana e também

francesa, pelas quais o erro do profissional, em especial do médico, era tido como fonte limitada de responsabilidade, para casos de evidente falta grosseira e imperdoável, de onde se denotava uma defesa um tanto corporativista. Por outro

114

Em tradução livre: “Responsabilidade do prestador de serviço. Se a prestação implica solução de problema técnico de especial dificuldade, o prestador do serviço não responde pelo dano, se não em caso de dolo ou de culpa grave”

115 CIAN. Antijudicità e colpevolezza. Padova (1966), p. 180. Apud BONVICINI. La responsabilità civile

(1971), pp. 752-753.

116 Nesse sentido: Lalou. La gamme des fautes, in Dalloz Helb (1940), p. 17 e ss; Savatier> Traité de la

responsabilité civile, p. 221, Altavilla, la colpa, vol. I, p. 66. Apud BONVICINI. La responsabilità civile (1971), p. 753.

117

JOSSERAND. La renaissance de la faute lourde sur le signe de la profession (1939), p. 22; RITTER, Das Recht der Seeversicherung, Hamburg, 1953, I, p. 567; ENNECCERUS-NIPPERDEY, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. In Lehrbuch des bürgerlichem Recht di Enneccerus-Kipp Wolf, Turbingen, 1960, I, 2, p. 143; HALBURY. Law of England, London, 1953, voce carriers, IV, p. 157. Apud BONVICINI. La responsabilità civile (1971), p. 754.

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lado, o que se observa da principiologia do artigo 2236 é que não se deseja desencorajar o profissional, e esse não é um discurso que deva ser desprezado, visto que o profissional médico deve ser estimulado a tomar ações arriscadas na busca da cura.119

Com a decisão da consulta de 22 de novembro de 1973 n. 166, a jurisprudência italiana tem constantemente afirmado que a limitação prevista no artigo 2236 do Código Civil, concernente ao prestador de serviços intelectuais, de responsabilizar apenas pela culpa grave, configurada na falta de aplicação dos conhecimentos gerais e fundamentais atinentes à profissão, é aplicável no que toca à modalidade de imperícia e apenas para os casos de prestações particularmente difíceis. Não é possível, de outro lado, afastar, mesmo nos caso de particular dificuldade, a obrigação de agir com a diligência profissional esperada do médico, que é um devedor qualificado, nos termos do artigo 1176, segunda parte do Código Italiano. Assim, mesmo nos casos de particular dificuldade, deverá responder até mesmo pela culpa leve.120