• Nenhum resultado encontrado

CONDUTA MÉDICA E ESTABELECIMENTO DO NEXO DE CAUSALIDADE

4.4 Conduta omissiva

encadeamento anátomo-patológico cientificamente aceitável. O traumatismo desencadeante, suas conseqüências e a situação anátomo-clínica que consubstancia a dor crônica ou a lesão deixada, têm de estar, forçosamente, unidos por uma sucessão de manifestações patológicas que estabelecem, pelo seu encadeamento, uma continuidade anátomo-clínica suficiente para justificar tal evolução. O laço ininterrupto entre os fenômenos indica que cada um deles surge como efeito do precedente e, ao mesmo tempo, é causa do conseqüente.411

O agir do médico deve atender às expectativas de eficácia lançadas sobre seus ombros. Espera-se que a decisão seja tomada de acordo com o prognóstico realizado quanto às consequências previamente concebidas sobre a reação que provocará o procedimento escolhido. A eficácia é, sem dúvida, aos olhos do leigo, aquilo que caracteriza a medicina contemporânea; o médico não se posta mais simplesmente como aquele que previne ou cura as doenças, mas como aquele que se propõe a atender a certas conveniências do sujeito, seja como paliativo da deficiência de uma função natural, seja em substituir esta função ou em modificar certas características naturais do sujeito. Nesse sentido, basta citar as técnicas de procriação assistida, de contracepção médica ou de cirurgias estéticas. Esta eficácia, neste meio tempo, resta inseparável de três elementos mais do que comuns, desta vez menos percebidos pelo leigo, quais sejam, a agressividade do tratamento, os perigos inerentes, e a complexidade. A eficácia das drogas passa a ser vista de forma separada dos efeitos secundários. A eficácia das técnicas depende de sofisticados mecanismos, de implantação no organismo de materiais diversos que, na maioria dos casos, depende de uma equipe multidisciplinar, onde as decisões são discutidas para os atos esperados. Mas a urgência ou a complicação inesperada introduz, algumas vezes, um controverso parâmetro que descaracteriza todas as previsões.412

4.4 Conduta omissiva

411 Cf. ALBUQUERUE; SEIÇA; BRIOSA. Dor e dano osteoarticular (1995), p. 82. 412

Objeta-se como um vínculo exclusivamente normativo pode ser causa de um evento danoso; afinal, mecanicamente, a omissão não é causa. Outrossim, ainda que não haja causalidade física, é possível perscrutar-se o grau de probabilidade de uma ação, possível ao omitente, ter evitado o resultado. Trata-se de um juízo causal hipotético quanto à ação esperada e não quanto à omissão.413 Nesses casos, tem-se dito que se adquire o valor de causa, quando, preexistindo uma cadeia causal de fatos, surja, em determinado momento, uma ação capaz de interrompê-la. Em conseqüência, a causalidade da omissão resulta de uma dupla análise: 1) de uma parte entre o quantum do perigo e o sucesso resultante; 2) entre a capacidade causal da série de atos e a idoneidade da ação que se tenha omitido, para impedir a produção do sucesso.414

Dentre as teorias naturalísticas que buscaram explicar o processo de imputação da responsabilidade à conduta omissiva, destaca-se a teoria de LUDEN, que veio a

sustentar que a omissão não é propriamente um quid vacui, uma permanência do estado de inércia, mas uma disposição volitiva em realizar conduta diversa daquela que deveria ter realizado. O agente, no momento em que deveria agir, se ocupa agindo em outro sentido, desenvolve outra atividade (rectius inversa). Essa concepção não se fez, todavia, imune a críticas. A ela se objetou que nem toda omissão se traduz em uma conduta diversa (que aliás, é indiferente para o direito). Muitas vezes se consubstancia em um nihil facere (nada fazer). Não obstante, a teoria ofertou importante contribuição, na medida em que esclarece que a omissão não se limita à inércia, mas poderá configurar-se em um agir diverso, no momento em que deveria atender à solicitação que lhe era imposta.415

Em resposta, surgiram concepções normativas que compreendem um “dever ser”, previamente estabelecido, que indica o que se deve fazer, seja por normas jurídicas, seja por regras da profissão (lex artis). A omissão, abstenção ou ato negativo, poderá ser causa de dano, sempre que o ato cuja prática teria impedido o resultado, ou, ao menos, teria grande probabilidade de assim tê-lo feito, foi omitido. Para que se impute responsabilidade, todavia, é necessário que haja o dever de praticar o ato

413

MUNHOZ NETTO. Os crimes omissivos no Brasil (1983), p. 135.

414 CALABUIG. Nexo de causalidad en valoración del daño corporal (1997), p. 12. 415

omitido, que vem a causar um dano ou que simplesmente viola o dever de atividade (nesse caso, a caber sanção na forma da lei). 416

A omissão será tida como condição negativa do resultado, no sentido de que, somada esta à cadeia causal, teria anulado o resultado ou ao menos transformado sua essência ou grau de intensidade do dano. Como esse juízo é hipotético, será feito pelo grau de probabilidade, inferindo-se na fórmula bem exposta por COSTA JR: Condição

(negativa) provável + obrigação normativa + adequação=causa (negativa). Torna-se, portanto, impossível falar-se em condicionalidade omissiva, pois o máximo que se poderá ter é uma presunção que irá conferir o caráter naturalístico à concepção normativa.417

Nos Estados Unidos, o nexo de causalidade por atos omissivos tem sido construído pela doutrina da última chance real (last clear chance), também chamada de negligência superveniente (supervening doctrine) ou, ainda que menos freqüente, doutrina humanitária (humanitarian doctrine), que afirma a responsabilidade daquele que, ainda que não reconhecido como causador do dano, poderia tê-lo evitado, caso houvesse agido com a diligência e cuidado necessários. A doutrina poderá ser invocada, quando se encontrarem presentes os seguintes requisitos: 1) a vítima do dano estivesse em uma posição de risco e, pela sua própria negligência se tornou incapaz de escapar de tal situação, pelo uso de suas próprias forças, seja porque se tornou fisicamente impossível para ele, seja porque se encontrava totalmente desavisado do perigo; 2) que o réu soubesse que a vítima estava em posição de risco ou que, pelo exercício do devido cuidado, deveria saber que a vítima era incapaz de escapar e, 3) que o réu tivesse a última chance de evitar o dano, pelo simples emprego dos cuidados ordinários que dele se poderiam exigir, e se fez faltoso em tais ações, permitindo a ocorrência do dano.418

De fato, a descrição amolda-se com exatidão às situações vividas na prática médica. O paciente se apresenta ao profissional já em situação de risco em face da doença ou acidente, que, sejam quais forem as origens, por certo não pode ser imputada ao médico. A este, cabe agir no intento de diminuir o risco já existente. Se

416

Cf. MIRANDA. Tratado de Direito Privado, v. 22 (1958), p. 193.

417 Cf. COSTA JR. Nexo Causal (2007), pp. 132-139. 418

vier a se quedar inerte ou, se de forma comissiva, agir em desconformidade com o que dele se esperava, poderá ser-lhe imputada responsabilidade ante a possibilidade e obrigação de ter evitado o prejuízo.

Não se trata, nesse caso, de responsabilidade por ter sido o médico o causador do resultado, visto que o risco já se encontrava presente por razões desafetas à conduta médica. A omissão dos deveres de conduta do profissional, todavia, se apresenta como causa frustrante da possibilidade real de ter evitado o resultado, quando, por deveres inerentes à posição que ocupa, era obrigado a agir.

Ainda a falta de diagnóstico de determinada moléstia que poderia ter sido tratada com maior chance de êxito, caso detectada em tempo oportuno, ou a não realização de determinado tratamento, quando devido, são imputações comuns aos trabalhos médicos que desafiam o direito a novas perspectivas, visto a evidente dificuldade de se afirmar o nexo de causalidade. A fim de dar solução à problemática, tem-se construído a teoria da perda de uma chance (perte d’une chance de survie ou guérison, do Direito Francês e loss of a chance do Direito anglo-saxão), em que se averiguará o prejuízo, na medida do decréscimo das probabilidades de cura, sobre a qual debruçará em momento oportuno.

A imputação da responsabilidade pelo fato omissivo, todavia, se torna delicada, no momento de se definir o parâmetro legal. Tome-se o caso de um médico que, ao receber um paciente em estado de emergência, recusa-lhe o atendimento sob a exigência de pagamento antecipado. Sem dúvida, o sacrifício de uma vida por pretensões patrimoniais salta aos olhos como reprovável. Contudo, do ponto de vista da responsabilidade civil, só lhe poderá ser imputada responsabilidade, se presente o dever de agir.419 É possível que seja atribuída omissão de socorro, mas diversas serão as peculiaridades dos casos concretos que demandarão um prévio estabelecimento do

419 Na esfera criminal, o artigo 13, §2º do Código Penal Brasileiro traz a seguinte previsão: “A omissão é

penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.”

dever de agir. O dever existe, sem dúvida, no campo ético,420 mas controverso será seu enquadramento no campo civil.

Para ROSENVALD, o problema se circunscreve aos casos de contratação

obrigatória, por se tratar a atividade médica de “profissão de exercício condicionado”, em que a função social do contrato (art. 421 do Código Civil brasileiro) impõe a contratação a qual se implementa de pronto, sendo inaceitável a exigência do pagamento antecipado para a formação do contrato.421 Já para FORCHIELLI é necessário

que haja uma intervenção legislativa expressa no sentido de estabelecer os casos em que o profissional fica obrigado a agir, a fim de caracterizar o ilícito civil, sendo impossível, na falta de previsão expressa de lei, sua responsabilização.422 Com razão está Rosenvald, pois não é outra a perspectiva da principiologia da função social do contrato, senão sobrepor a proteção de bens de maior relevo social perante aquela conferida a bens de menor valor. Nesse sentido, é evidente o maior valor da vida humana diante de pretensões meramente patrimoniais.