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Meu caminho até aqui

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 130-134)

Capitulo 5. A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA

5.1. Meu caminho até aqui

Apresento no capítulo 1, a proposta soteriológica do ioga clássico mostrando que o obstáculo espiritual estava contido na teoria dos klesas. Os klesas, por sua vez, foram apresentados por Patanjali, no Ioga Sutras, como cinco comportamentos: Ignorância, Apego, Aversão, Medo da morte e Orgulho. Seriam eles, portanto, o cerne do mal do ioga, motivo de todo sofrimento humano (dukha). O klesa-Ignorância, precursor de todos os outros, nasceria de uma mente/consciência entorpecida (citta-

vrttis) no contato da alma (purusa) com o corpo e o mundo (prakrti), enredando os

seres humanos no ciclo de samsara. A visão de mundo é dual e a reencarnação possui caráter negativo (GULMINI, 2002).

Os iogues clássicos acreditavam que existiria uma ordem cósmica e as suas posições sociais, vivendo em uma rígida estrutura de castas, eram determinadas pelos deuses e mantidas pelos sacerdotes brâmanes, a mais alta casta desta estrutura social, religiosa e política. A proposta soteriológica do ioga deste período, sendo erigida e mantida pelo clero, determinava oito passos espirituais (asthanga-ioga) que prometiam o cessar do turbilhão da mente/consciência (citta-vrttis) em direção a comunhão com deus/Isvara e o fim da vida enredada por samsara, portanto, do sofrimento humano (dukha). O samadhi constituiu o último passo espiritual da via salvífica do ioga e é apresentado como uma experiência religiosa – transitória - do cessar voluntário de citta-vrttis. Com o cessar da mente/consciência, adviria a harmonia energética transfisiológica de prana no complexo corpo-mente/consciência, denominada de sattva. Neste espaço transitório de samadhi, fruto da prática corporal do ioga, os devotos experienciam o retorno em sua real natureza divina - purusa - ou estado Imaculado da alma em eterno equilíbrio sattvico. O kaivalya, o estado Último do ioga, é logo, representado como o momento em que o estado transitório do

liberta em vida do klesa-mãe Ignorância e compreende samsara sem as ilusões (maya) que o envolviam na dor (dukha) e no sofrimento humano (klesas) (Ibid.).

Na fase histórica posterior, o ioga adentra ao seu período medieval ou pré- moderno. Estamos agora por volta do séc. X e a configuração social da Índia também se altera. Dentro desse novo panorama social e político, surge uma tradição de iogues- místicos denominados de hatha-iogues ou iogues do corpo. Estes, agora, dispensam o sentido de pertença na alta casta sacerdotal para serem ordenados líderes espirituais no ioga e, indícios históricos apontam, serem os hatha-iogues os responsáveis em popularizar as práticas incrementando as suas técnicas corporais e imbricando-se com a medicina ayurveda, o tantrismo, o budismo, o islamismo e a versão não-dual do Vedanta Advaita (LIBERMAN, 2008, p.100-116).

Os hatha-iogues questionam a infalibilidade dos Vedas e a legitimidade bramânica na manutenção social em castas. A tradição hatha-ioguica diminui os valores das escrituras e supervalorizam as suas práticas corporais. A exemplo dos místicos judeus e cristãos, os hatha-iogues elevam as técnicas corporais dos iogues clássicos (ásanas, pranayamas, mudras, mantras, kriyas) ao nível de rituais de comunhão com deus sem a intermediação de sacerdotes instituídos pela estrutura religiosa hinduísta vigente. Um exemplo são as descrições do samadhi, agora, carregadas de símbolos de uma fisiologia transfisiológica espiritualizada, aonde sensações corporais e poderes mágicos (siddhis) obtém posição importante em sua cosmovisão. Desse modo, enquanto os klesas para os iogues clássicos eram conquistados exclusivamente por uma rígida ética religiosa pautada na doutrina, os iogues pré-modernos dispensam as escrituras erigidas e mantidas pela elite sacerdotal indiana, e encontram meios singulares de afastar os klesas-Mal de suas vidas por meio de práticas rituais (PANCHAM SINH, 1914, p.63; SOUTO, 2009, p.238).

O período pré-moderno do ioga marca, assim, uma época de contestação da

ordem cósmica bramânica e estratificação da sociedade indiana, transformado os klesas em bloqueios energéticos transfisiológicos e responsáveis pela manifestação de

doenças. A reencarnação ainda era um problema, pois as castas permaneciam instituídas pelo clero hinduísta e incorporadas pela cultura vigente, mas a medicalização e a corporificação do ioga carregavam consigo o objetivo implícito espiritual de prolongar a vida do hatha-iogue na busca por kaivalya e afrontar o status

quo social, político e religioso da sociedade indiana medieval (ELIADE, 2001, p.205-

209; SOUTO, 2009, 46-50).

No capítulo 2, descrevo como a partir de 1858, com a chegada da colonização inglesa na Índia, o ioga se defronta com a perspectiva do mundo ocidental moderno, sobretudo a realidade empírica da ciência e a moral cristã protestante. Os klesas, como ética religiosa, definitivamente deixam de fazer qualquer sentido frente ao pensamento “lógico” de seus colonizadores, que rejeitam as práticas físicas e crenças em energias metafísicas, como métodos aniquilatórios do Mal/klesas. Dessa forma, a partir de 1920, uma nova geração de hatha-iogues surge, influenciando e influenciados por um movimento contracultural conhecido como Renascença Indiana, que visava a independência do seu país do colonialismo inglês (FARQUHAR, 1915, p.387-429). Estes iogues modernos aventuram-se a demonstrar, pela “lógica” científica, o poder terapêutico de seus rituais corporais na promoção da saúde, principalmente pela resposta psicofísica ao relaxamento, diminuição do estresse, elevação do sistema autoimune e condicionamento físico, agora corroborados também pela ciência fisiológica da biomedicina ocidental. As escrituras ioguicas de outrora, de Patanjali a Matsyendra, vão sendo ressignificadas por novos conceitos e sendo incluídos a fisiologia religiosa do ioga (SIMÕES, 2011).

Modernamente, considerações antes transfisiológicas e místico-mágicas como

prana, nadis, kundalini e chackras ganham correspondentes da empiria fisiológica

como sistema nervoso simpático, glândulas endócrinas, áreas encefálicas, neurotransmissores e hormônios. As práticas ioguicas são agora, investigadas nos maiores e bem conceituados laboratórios de fisiologia do mundo, e as suas repercussões clínicas dissecadas por tomógrafos e ressonantes magnéticos. Os klesas modernamente, assim como ocorreu em suas escrituras, foram sendo ressignificados por conceitos psicofisiológicos empíricos da ciência ocidental: o klesa-Ignorância ganha contornos de estresse; o Apego se converte no sentimento de desejo; a Aversão em ódio; o Medo da morte em temor de envelhecer e adoentar; e o Orgulho em egoísmo (BALSEV, 1991; BHAVANANI, 2007; RAO, 2012).

No capítulo 3, no intento de restringir meu objeto, fui investigar os klesas no contexto brasileiro. A escolha por esse afunilamento se deve, como argumento com mais propriedade no texto, pelo isolamento por quase setenta anos desde a chegada do

ioga no continente latino-americano até a vinda do primeiro mestre iogue verdadeiramente indiano no Brasil. Esse fato pode revelar a estrutura que rege as adaptações do ioga moderno quando transplantado para as sociedades urbanas ocidentais, mas sem a influência da cultura indiana, como nos países em que ele foi implantado pelas mãos dos próprios iogues indianos (SINGLETON & GOLDBERG, 2014). No Brasil especificamente, por barreira idiomática ou desinteresse proselitista, este período de insulamento possibilitou ao ioga verde-amarelo construir o seu sentido de existência espiritual entre dois personagens principais – Hermógenes e DeRose - (GNERRE, 2010) e mesclando religiões populares), como o catolicismo, o espiritismo, a umbanda, o santo daime e a medicina ocidental.

O caminho de estabelecimento do ioga brasileiro passou por fases distintas e é marcado por disputas internas entre iogues mais permissivos a sincretismos, os

iogues-híbridos: com o objetivo de popularizar a filosofia e prática religiosa do ioga;

e outros mais ortodoxos e “puristas”, os iogues-tradicionalistas: que buscaram o sectarismo da prática e de sua filosofia numa posição de preservação da “essência” do ioga. Essa disputa originou uma estrutura religiosa regulatória “invisível” e não- institucionalizada, mas responsável em manter, produzir e aniquilar elementos soteriológicos e bens de salvação ao ioga brasileiro. Os klesas e suas novas configurações, com certeza, passaram (e passam ainda) pelas mãos dessa estrutura religiosa regulatória. Por isso, saí a campo para entrevistar líderes híbridos e tradicionalistas do ioga brasileiro e conhecer o que eles compreendem hoje como as causas do Mal, e/ou se a teoria ética dos klesas clássicos ainda trazem conforto espiritual frente o sofrimento de uma parcela de brasileiros que frequentam aulas de ioga regularmente com fins espirituais.

No capítulo 4, escolhi dez iogues (entre híbridos e tradicionalistas) e mais três cientistas brasileiros que investigam as práticas ioguicas exclusivamente com fins terapêuticos. Dos resultados apresentados, vimos que: 1) a junção do ioga com a ciência biomédica convidou profissionais da área da saúde adentrarem ao microuniverso religioso do ioga como “facilitadores” na aplicação dos princípios éticos, terapêuticos e de condicionamento psicofísico ao público leigo, competindo com iogues híbridos e tradicionalistas. Como resultado, 2) um novo tipo de líder de ioga surge, os cientistas-monges, que intensificam ainda mais a corporificação e medicalização do ioga, mas sobretudo, ajudam a legitimar o discurso da fisiologia

religiosa de híbridos e tradicionalistas em uma simbiose ambivalente. Os líderes de ioga no Brasil estabeleceram, assim, 3) uma latente dialética entre saúde-salvação. Contudo, para manter o ioga como um movimento religioso e não se desintegrar como prática laica e diferenciar-se das espiritualidades terapêuticas Nova Era, produziram uma distinção entre 4) “prática ou método” e “experiência ou estado” de ioga. Essas distinções auxiliam à sua estrutura religiosa do ioga em andamento deslegitimar ou aceitar métodos/práticas de ioga atuarem no seu microuniverso em formação ou serem excluídas como heréticas. Duas crenças, no entanto, permanecem vivas dos períodos históricos indianos anteriores: 5) a crença em energias transfisiológicas (como prana, kundalini, chackras e nadis), e 6) em uma ordem

cósmica que rege o mundo.

Se buscarmos localizar aonde se encaixam a teoria do klesa-estresse/Mal, a resposta certamente deve surgir na dialética estabelecida entre saúde-salvação, da crítica social em que os iogues vivem, mas traduzida por uma linguagem simbólica religiosa condizente com a sua nova fisiologia.

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 130-134)