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Ioga moderno como nova religião em processo

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 152-156)

Capitulo 5. A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA

5.6. Ioga moderno como nova religião em processo

Podemos afirmar que desde a chegada do swami Vivekananda no ocidente, o ioga começou a ser percebido como um novo movimento religioso em andamento (DeMICHELIS, 2004, p.248-260; NEWCOMBE, 2005; JAIN, 2014, p.95-129). Mas classificá-lo, assim como qualquer outra religião não é tarefa simples. DeMichelis, como vimos, define o ioga como uma religião secular de cura; Newcombe como uma religião mística; e Jain uma prática religiosa corporal. Além disso, inúmeros trabalhos têm se esforçado em legitimar o ioga moderno como uma nova espiritualidade e não apenas atividade física e/ou terapia biomédica (LIBERMAN, 2008, p.100-116; SMITH, 2008, p.140-160; SINGLETON, 2010; GNERRE, 2010; GUERRIERO, 2014).

A história do ioga como religião singular, desvinculado assim tanto do hinduísmo quanto da Nova Era, tem início a partir dos novos movimentos religiosos indianos durante ainda o século XIX, no período que comentamos no primeiro capítulo, de Renascença Indiana (FARQUAR, 1915). DeMichelis afirma que o movimento religioso Brahma Samaj, nascido neste período, teria sido o estopim para

uma releitura moderna das escrituras vedantinas dando início ao Neo-Hinduísmo e/ou Neo-Vedanta (DeMICHELIS, 2004, p.51-66). Desse movimento surge Vivekananda, porta-voz de um ioga já ressignificado pela fisiologia biomédica científica com práticas rituais de cura e mensagem de “religião universal” (VIVEKANANDA, 2007). O ioga agora entra no seu período moderno da história e as implicações sobre a sua soteriologia e religiosidade serão profundas.

A proposta soteriológica do ioga, continua viva, mas estudos indicam que precisou ser muito bem ajustada no seu transplante da Índia para o mundo moderno ocidental. Se na Índia pré-colonial britânica, ao longo de milhares de anos, o ioga sempre foi descrito como um darsana hindu, em menos de 50 anos de contato com as sociedades urbanas do ocidente, no entanto, suas diretrizes salvífica/libertadoras foram, consideravelmente, transformadas: klesas, samadhi e kaivalya vem adquirindo novos contornos e objetivos que, mesmo o mais perspicaz guru retirado por anos nas mais longínquas florestas e cavernas indianas, sequer um dia vislumbrou em suas práticas meditativas.

Observações a partir das descrições de Victor Turner, sugerem o espaço

liminar um espaço transicional aonde o indivíduo no processo ritual é um não-algo ou algo entre. O ritual do ioga, portanto, como representante ioguico deste espaço, se

torna o entre-lugar de “refúgio” aonde se possa vivenciar, a cada aula de ioga, adquirindo discernimento (gnosis), mas sobretudo, uma sensação de “estar em casa” ou “retornar ao seu equilíbrio”, no sentido de igualdade social, espiritual, psíquica e física. Turner ressalta isso quando diz que na liminaridade o participante do processo ritual:

Não tem status, propriedade, insígnia, vestimenta secular, graduação, posição de parentesco, nada que possa distingui-los, estruturalmente, de seus companheiros (TURNER, 2005, p.143).

Turner esclarece ainda que é um lugar aonde “As pessoas podem ser elas mesmas, quando não desempenham papéis institucionalizados”. Quando perguntei aos iogues brasileiros sobre a causa do mal, quase em uníssono eles responderam como “o falso papel que ocupam na sociedade” ou “as máscaras que vivemos”. O

kaivalya, poderia representar a libertação final destes papéis, pois para Turner a liminaridade representa a mudança no Ser (Ibid., p.137-158). Assim, cada aula de

ioga, o praticante vivencia essa mudança no Ser, que representaria, hipoteticamente, o remover das máscaras e o falso papel que ocupam na sociedade. Mas, sobretudo, produziria uma geografia suprassensível que motivaria cada iogue ansiar um mundo melhor a se viver, longe dos klesas, portanto, longe da alienação, do apego, do ódio, do medo e do egoísmo e, quiçá, mais perto da alteridade, do desapego, do amor, da esperança e do altruísmo.

Turner, no entanto, se preocupa em explicar que o espaço liminar não se trata de uma irracionalidade, mas “um modo de provocar os pensamentos”, aonde uma ou duas coisas podem ser interpretadas de formas diferentes na liminaridade.

A liminaridade é o reino da hipótese primitiva, onde há uma certa liberdade para prestidigitar com os fatores da existência. Como nas obras de Rabelais, há uma promíscua mistura e justaposição das categorias de evento, experiência e conhecimento, com uma intenção pedagógica.

Essa liberdade tem, no entanto, limites bastante estreitos. Os neófitos voltam à sociedade secular com as faculdades mais alertas, talvez, e conhecimento incrementado sobre como são as coisas, mas são, uma vez mais, obrigadas à lei e ao costume. Como à menina Bemba (...) mostram-lhes que as maneiras de agir e pensar diferentes daquelas estabelecidas pelos deuses e ancestrais, em última análise, não funcionam e podem ter consequências desastrosas (Ibid., p.152).

Defendo que essa experiência liminar de Turner advinda de processos rituais, seja o estado de ioga relatado pelos iogues brasileiros. Respeitando a tendência do ioga moderno, toda a linguagem foi ressignificada pela da fisiologia biomédica, e no ioga brasileiro isso não foi diferente. Portanto, como DeMichelis (2004) mesmo descreve, esse espaço liminar pode ter sido simbolicamente ressignificado como o “relaxamento” produzido por suas práticas corporais, mas agora com o status de espiritualizada.

Ganesh: Ioga é um relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica-espiritual para isso. Relaxar, focar, expandir, reavaliar seus paradigmas, isso é a meditação propriamente dita. Emocionalmente falando, o ioga nos ensina a colocar-se. Isto se traduz numa postura mais serena e numa melhor disposição no cotidiano. O relaxamento e os exercícios de concentração tomam conta desta esfera. O ioga possui como efeitos mais evidentes deixar o praticante em estado de equilíbrio.

Ravi: Ioga é um processo de relaxamento dos pensamentos. O mundo está estressado e precisa de relaxamento. O ioga então é uma proposta filosófica espiritual para este fim. Portanto, o grande perturbador do

ioga moderno. Ficar quieto é um problema para a sociedade moderna.

Centurion: O ioga nos deixa com um mental mais calmo, equilibrado. DeRose: O estresse impede ao samadhi.

Bento: O estresse impede ao estado.

Shanti: O estresse nos afasta, nos desconecta. O ioga abaixa o estresse, acalma a mente... aterra, e assim, nos ajuda a conectar novamente.

Se, como vimos, o estresse adquiriu características de klesa, e o relaxamento de espiritual em dialética com o samadhi/liminiaridade, é lícito supor pensar em

kaivalya, um estado onde não há mais a influência dos klesas, agora estresse e

conquistado na gnosis do relaxamento espiritual advindo das práticas rituais de cura do ioga moderno, deve estar relacionado a algum termo da fisiologia que represente esse equilíbrio e harmonia sem a influência do estresse e local de manifestação propícia ao relaxamento. Defendo a ideia da homeostase espiritual como denominação de kaivalya modernamente. Como já apresentei o conceito de homeostase no primeiro capítulo, permito-me apenas a relembrar que a homeostase é um estado ideal e nunca estabelecido definitivamente, apenas na morte encontraremos um estado “eterno” de homeostase. Homeostase é sempre um estado de eterna luta contra forças contrárias na busca constante de reequilíbrio. Portanto, se kaivalya representaria a salvação/libertação espiritual do ioga moderno. No Brasil, kaivalya- homeostase divina, pode significar que os iogues brasileiros acreditam no fim do sofrimento, da dor e do mal-estar que os atormentam, no equilíbrio diário de forças contrárias que agem constantemente. Em outras palavras, o iogue brasileiro pode compreender que o fim da sua dor, só com a morte, pois em vida, a batalha contra o mal é cotidiana.

Essa religiosidade ioguica brasileira pode ser encontrada nas narrativas dos nossos entrevistados quando revelam que ioga é “viver o presente”, “reagir é algo negativo, pois nos tira do agora” ou “a prática no tapete funciona como um ritual para reequilibrar as energias do corpo que se desarmonizam no dia-a-dia”. Nenhum dos iogues entrevistados, por exemplo, demonstrou qualquer receio da reencarnação, algo bastante preocupante ao iogue indiano que acredita que as suas ações neste mundo podem faze-lo vir numa próxima vida como um inseto, por exemplo. O brasileiro não

parece se preocupar com isso. O seu grande foco parece estar na resolução dos seus problemas neste exato momento. Outra característica que pode ajudar na compreensão do novo panorama social-religioso do ioga brasileiro está na redução do aspecto “errante” dos praticantes e professores. Nunes (2008), mostrou que os indivíduos que atuam no microuniverso ioguico brasileiro têm se fixado mais em torno do seu professor ou líder de ioga. Isso evidencia o princípio que ele denominou de “retorno à tradição”, mas que poderíamos conceber como criação de maior vínculo com um mestre de ioga em desenvolvimento. Seria lícito supor, que este poderá se configurar o caminho natural para a institucionalização das diversas tradições, escolas e métodos em estruturas religiosas mais “estáveis”, similares ao de igreja.

Se as religiões, sem exceção, surgem do seio de sociedades e são elas reflexos da maneira de viver de núcleos sociais específicos e concretos (GUERRIERO, 2006, p.21; Id., 2014); talvez o ioga brasileiro possa vir a ajudar a responder o sofrimento de uma parcela de indivíduos devotados às suas crenças de algum forma.

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 152-156)