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O mal-estar, o sofrimento e o sintoma: uma nova perspectiva sobre a soteriologia

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 148-152)

Capitulo 5. A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA

5.5. O mal-estar, o sofrimento e o sintoma: uma nova perspectiva sobre a soteriologia

O psicanalista Christian Dunker diferencia mal-estar, sofrimento e sintoma. Para ele, mal-estar não é a própria angústia ou dor, mas uma deficiência perceptiva da origem do sofrimento propriamente dito (DUNKER, 2015, p.205).

O tormento, a angústia que se repete, que se remói, a angústia cuja causa, razão ou motivo não se discerne muito bem, pode ser então predicado como mal-estar (Ibid.).

Dunker, a partir de uma interpretação do clássico conceito de Freud, conceitua mal-estar como a impossibilidade de estar, a negação do estar, e não apenas a negação pura e simples do bem-estar (Ibid., p.192). Assim, o autor sugere que o mal-estar é essa ausência de lugar ou sensação de impedimento de ascender espiritualmente (“escansão do ser”) ou, parafraseando a metáfora do próprio psicanalista: “a impossibilidade de ‘uma clareira’ no caminhar da floresta da vida” (Ibid.). O autor comenta que a tradução para o mal-estar freudiano é difícil, pois remete a algo que não pode ser designado objetivamente, por isso a utilização das metáforas – sobretudo nesse caso – são imprescindíveis para defini-lo.

A noção de sofrimento, definida como o “reconhecimento da dimensão do mal-estar”, deve responder essencialmente a três condições: uma teoria que identifique e nomeie o sofrimento; estruturar o sofrimento dentro de uma narrativa; e deve envolver meios de determinar o sentido de sofrer e inverter o seu significado para não mais senti-lo (Ibid., p.219-220).

Os atos de reconhecimento determinam a ontologia da experiência de sofrimento, estabelecendo, por exemplo, a linha de corte entre o sofrimento que dever ser suportado como necessário e o sofrimento que é contingente e

pode ser modificado. (...) Nesse sentido, todo sofrimento contém uma demanda de reconhecimento e responde a uma política de identificação. A segunda condição (...) exprime um processo transformativo que é reconhecido num âmbito da linguagem intermediário entre o discurso e a fala (...) teorias sexuais infantis, o romance familiar do neurótico, assim como o mito individual do neurótico, são expressões psicanalíticas do que chamamos de narrativa.

A terceira condição da experiência de sofrimento é que ela envolve processos de indeterminação de sentido e de inversão de significação. É a experiência psicológica que a criança experimenta quando suspende e confunde a relação entre aquele que pratica a ação e aquele que sofre a ação (Ibid., p.219).

O sintoma para o mal-estar, explica Dunker, como não poderia ser de outra forma, organiza-se sempre por meio de metáforas: a “metáfora do sintoma”, diz o autor (Ibid., p.212). O sintoma, ou modos de sofrer, é um fragmento de liberdade perdido, imposto a si e aos outros (Ibid., p.32). Assim, a normalidade é apenas uma

normalopatia, ou seja, um “excesso de adaptação ao mundo tal como ele se

apresenta”, mas que revela sempre um sintoma de extrema tolerância às agruras da vida (Ibid., p.185-272). Assim, kaivalya, por sua própria definição (liberdade, libertação ou liberação), pode representar “um fragmento da liberdade perdida”, metaforizada na ideia da alma (purusa) contaminada em contato com o mundo (samsara). As aulas de ioga modernas, processos rituais de retorno/passagem transitória na purificação de uma alma que sofre, poderiam representar uma alternativa para o fim do sofrer. Há uma promessa implícita de um dia, pelo conhecimento espiritual advindo do samadhi/liminaridade, libertar enfim, do mal- estar que acomete seus alunos/praticantes.

Há um insistente reconhecimento dessa dimensão do mal-estar como inerente às relações entre existência e verdade (Ibid., p.193).

Dunker explica que o cerne das narrativas de sofrimento são sempre transversais, ou seja, possuem causalidade específicas. Assim, a incapacidade do sujeito em reconhecer-se em sua própria história particular ou com dificuldade de estabelecer formas sociais universalmente compartilháveis, causam, em última instância, essa perda da experiência da causa de seu mal-estar (Ibid., p.273).

O diagnóstico, seja ele formal ou informal, clínico ou crítico, disciplinar ou discursivo, reconhece, nomeia e sanciona formas de vidas entendidas como perspectiva provisória e montagem híbrida entre exigências de linguagem, de desejo e de trabalho. (...) Assim, o ressentimento social é um diagnóstico, a biopolítica é um diagnóstico, a personalidade autoritária é um

diagnóstico, o declínio do homem público é um diagnóstico, a cultura do

narcisismo é um diagnóstico. (...) Fica claro, assim, que o que estamos

chamando de diagnóstico não deve ser entendido como classificação ou inclusão do caso em sua regra correspondente, como absorção da variável à cláusula genérica, como um juizado de pequenas causas, mas como reconstrução de uma forma de vida (Ibid., p.274).

Dito de forma mais simples, o mal-estar reside na eminência da morte, representada pela finitude do nosso corpo, mas sobretudo, na violência generalizada dos grandes centros urbanos e na insegurança e medo das relações humanas. Esse mal-estar sem possibilidade de nomeação determinante nos dispõe à repetição angustiante da dor de existir. Precisamos criar, assim, uma forma de vida condizente à nossa narrativa de vida, pois não há manual de classificação que abarque todas as mazelas existenciais. Uma nova forma de vida significa, segundo o autor, “nada mais do que uma perspectiva” (Ibid., p.280). Daí, talvez, a justificativa da resistência das religiões instituídas existirem e novos fenômenos religiosos surgirem, pois, de fato, religiões são criativos depositórios de novas formas de se viver, novas narrativas para justificar a angústia, portanto, que se repete devido ao mal-estar. As práticas e doutrinas religiosas funcionariam como “diagnósticos” nomeando sofrimentos, acalentado sintomas e produzindo legitimação espiritual ao sofrimento humano.

Se queremos pensar o diagnóstico como reconstrução de uma forma de vida – no duplo sentido, prático e teórico -, devemos partir da evidência discursiva de que as diferentes formas de vida pressupõem suas próprias práticas produtivas ou improdutivas de nomeação do mal-estar (autodiagnostico) (Ibid., p.276).

Diagnosticar é reconstruir uma forma de vida, definida pelo modo como esta lida com a perda da experiência e com a experiência da perda (Ibid., p.282).

A questão da perda da experiência ou experiência da perda, como ressalta o autor acima, reside no conceito de alteridade e alienação, causadores do mal-estar e os mecanismos desenvolvidos – novas formas de se viver - para superar o sofrimento. A alienação centra-se em não saber, ser ignorante portanto, da origem do mal-estar; e a necessidade de desenvolvimento de certa alteridade ou qualidade pessoal que o distinga dos outros, assim, tenha condições em erigir um jeito próprio de produzir as suas próprias “clareiras no caminhar pela floresta”, metáfora utilizada pelo próprio Dunker.

O autor comenta que no século XIX era comum que a aceleração da vida moderna, com o seu nervosismo, sua irritabilidade e seu cansaço, fossem o quadro de referência para o diagnóstico psicanalítico da neurastenia, uma fadiga extrema que atingia tanto física quanto intelectualmente parte da população europeia. Era o mesmo momento histórico e geográfico que o ioga estava sendo apresentado ao mundo moderno. Assim, é bem provável que a origem da metaforização moderna dos klesas em estresse e emoções associadas como nefastas, assim como sintomas correspondentes como agitação da mente, irritação, neuroses e nervosismo, tenham aqui a sua origem.

Neste ponto da discussão já nos é possível apresentar os klesas, causas espirituais da ignorância de conhecer a si-mesmo, ao conceito de alienação. Sendo o

samadhi condição da aquisição de certa alteridade espiritual, como vimos em

Sarbacker (2008), e kaivalya, a superação (lit. liberdade ou liberação) do klesa- Ignorância, nos parece lícito pensar nos klesas mais do que simples fomentadores da “agitação mental” ou repercussões ao eixo psicofisiológico do estresse. Com vistas a aquisição de discernimento espiritual ou gnosis da experiência liminar do samadhi, e pensando no klesa-Ignorância como o principal obstáculo espiritual a kaivalya, é permitido compreende-lo como causa, portanto, da alienação espiritual dentro da narrativa discursiva do ioga moderno, mas ressignificado – metáfora com o corpo, como Victor Turner adiantou na subseção anterior.

Dunker esclarece ainda, que ao longo dos tempos históricos modernos, criou- se vários jeitos de sofrer o mal-estar inominável: neurastenia e psiscatenia no fim do séc. XIX; neuroses do caráter nos de 1940; narcisismo pós-guerra; borderlines na década de 1980 e depressão, pânico e anorexia em 2000 (Ibid., p.32). Podemos pensar em outras maneiras erigidas para suportar o mal-estar a partir das narrativas modernas do ioga também.

A permanência na crença de energias transfisiológicas e a questão da ordem cósmica, dialogam dando coerência a forma de se viver ioguica moderna também. A causa do mal no ioga é pautada hoje no estresse e emoções como ódio, desejo, egoísmo e medo, de certa forma, como já demonstramos em outros autores, giram em torno de causadores de nervosismo, irritabilidade, fadiga e agitação mental. Na verdade, a definição de ioga que nos chegou, é justamente a “diminuição voluntária

das modificações mentais”. Uma das fases do processo ritual do ioga é descrito literalmente como uma “postura de relaxamento final”; e o seu objetivo, na criação de um “espaço transitório simbólico/liminar” – samadhi ou estado de ioga - entre o mundo estressante das grandes cidades. Isso tudo atrelado a inversão no qual os iogues medievais, na passagem para a sua fase história moderna, precisaram se adaptar, não mais sendo possível retirar-se do convívio social, metáfora de samsara. A sua busca para um “mundo prometido” – kaivalya -, aonde os klesas não mais atuem e a alma liberte-se do seu mal-estar inominável, precisou ser modificado.

Estamos tratando aqui, provavelmente, de nova uma narrativa metafórica moderna em aliviar o sofrimento de muitos brasileiros. Dessa forma, os rituais corporificados do ioga moderno podem estar sendo encarregados de capacitar seus devotos de certa alteridade que os aliviem da alienação, compreendidos aqui, como a ausência do sentir, da falta experiência, a causa intrínseca do mal-estar que os afligem.

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 148-152)