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O ioga moderno como produtor de rituais de cura/healing

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 134-139)

Capitulo 5. A REFORMULAÇÃO DA PROPOSTA SOTERIOLÓGICA DO IOGA NA

5.2. O ioga moderno como produtor de rituais de cura/healing

Mostrei até aqui a ciência se apoderando de muitas das práticas ioguicas, ao mesmo tempo, fornecendo respostas neurofisiológicas para narrativas fisiológicas espirituais do ioga moderno. As técnicas do ioga moderno se transformaram em soluções biomédicas anti-estresse, auxiliando a medicina ocidental criar uma dezena de novas formas de tratamento de baixo custo para as mais diversas enfermidades. O próprio Ministério da Saúde Brasileiro instituiu práticas de ioga e meditação em suas unidades básicas de saúde e criou um novo setor que estuda implantações de terapias antes alternativas, agora integrativas e complementares. Em suma, há um crescente interesse no ioga como terapia. Dessa forma, seria lícito supor que o ioga se encaminhe para secularização (CARRETE & KING, 2005). Mas não é só isso que constatam as pesquisas no âmbito das ciências da religião.

Para Andrea Jain, o ioga moderno não seria uma terapia secular ou um mero produto espiritual do mercado religioso de consumo Nova Era, mas descendente de uma religiosidade indiana mais antiga, inserido aos problemas contemporâneos do seu

encontro com o mundo moderno ocidental (JAIN, 2010, p.95-125). A autora analisa em seu livro Selling Yoga, que o ioga moderno derivaria a sua definição de duas forças históricas: a cultura de consumo advinda do capitalismo globalizado, e de um desdobramento do pensamento do ioga pré-moderno ou medieval indiano. Ela credita a capacidade do ioga de se moldar em novos formatos sem perder certa homogeneidade espiritual. Ela confirma ser o ioga atual fruto da cultura de consumo (CARRETE & KING, 2005), mas que não possui apenas significados e funções utilitaristas ou hedonistas, pois todas as religiões atuantes hoje em dia passam e passaram pelas mesmas adaptações, essa crítica, logo, não seria exclusividade do ioga. O ioga moderno vem se estabelecendo, conclui, como uma verdadeira prática religiosa corporal como respostas às adversidades contemporâneas (JAIN, 2010, p.172-174).

Com relação aos valores e ética modernos do ioga, Jain corrobora conosco dizendo que o problema do sofrimento no ioga moderno – contidos no complexo

klesas, samadhi e kaivalya - está intrinsecamente ligado a questão da saúde (JAIN,

2010, p.95-129). Apresentamos em outros momentos que na antropologia da doença é bastante investigada a dialética estabelecida entre saúde-salvação e doença-sofrimento espiritual (HANEGRAAFF, 1998; LAPLANTINE, 2011, p.213-252). O ioga moderno, ao invés de secularizar as suas práticas no encontro com a ciência biomédica, sacralizou o corpo e desenvolveu, a partir dos iogues medievais (JAIN, 2010), práticas corporais de purificação para a cura de doenças e do estresse cotidiano (DeMICHELIS, 2004; SMITH, 2008, p.140-159) no intuito de alcançar kaivalya ou libertação do sofrimento. A via salvífica que abrange esse intento, sem dúvidas, pode estar centrado de alguma forma na experiência transcendente e “integrativa” do

samadhi, pois como vimos no capítulo anterior, o “estado” ou “experiência” do ioga

está frequentemente associado esse conceito. Sarbacker encontrou similaridades dessa experiência com o conceito de espaço liminar na obra de Victor Turner (SARBACKER, 2008, p.166-179).

Victor Turner em Floresta de Símbolos, descreve como Liminaridade, a fase de transição (ou liminar) aonde os indivíduos que participam de processos rituais perdem, momentaneamente, o seu status social e alcançam uma posição de “entre- lugar” (betwixt and between). Seria um afastamento que lhe fornece um conhecimento específico com o poder de relevar a arbitrariedade das convenções sociais em que

vivem e se submetem (TURNER, 2005, p.138). Segundo o autor ainda, ao mesmo tempo que é impossível viver na liminaridade eternamente, ela conserva em si a potencialidade desagregadora e revolucionária de produzir narrativas possíveis de solucionar problemas existenciais da vida humana, pois o inconsciente é posto em questão neste momento. Para o indivíduo compreender a si mesmo e a sua posição na estrutura biopsicossocial é primeiro necessário distanciar-se dessa estrutura, como se morresse. Ele passa então, por um processo liminar, como uma experiência transcendente temporária, em que ele é colocado em igualdade e humildade, desprovido de qualquer posição social privilegiada que, porventura, ocupe fora da

liminaridade. Após isso, ele volta a integrar-se à sua estrutura biopsicossocial, mas

agora provido de um novo discernimento espiritual sobre si-mesmo e os outros como se tivesse renascido (Ibid., p.116-159). É possível correlacionar essa descrição com o

samadhi e o conhecimento espiritual advindo de viveka.

DeMichelis em sua obra A history of modern yoga, descreve as aulas de ioga moderno como um ritual de cura a partir de três fases: 1) A fase de separação, onde se introduz os praticantes a um tempo de aquietação e recolhimento; 2) A Fase da prática de posturas propriamente ditas; e 3) A fase de incorporação ou relaxamento final. A primeira fase duraria em média uns dez minutos e corresponderia a chegada dos alunos a sala de prática e um momento de aquietamento. Recriando o modelo de Van Gennep (1960) considerado por Turner: Fase inicial de separação simbólica do seu meio; Fase Liminar propriamente dita; e Fase de Passagem ou Retorno (TURNER, 2005, p.138).

A primeira fase funcionaria como que abrindo um espaço do cotidiano/profano para a concentração de um momento mais introspectivo e de foco em si-mesmo. A segunda fase está baseada nas práticas de posturas e respiratórios. O objetivo está no desbloqueio das energias transfisiológicas e seria o momento da “purificação” e/ou “desintoxicação”, como alguns iogues denominam, constituindo aí a liminaridade. Na última fase é o momento em que autora se refere como “transição”, aonde o samadhi ou espaço liminar vai ser desfeito e o aluno inicia o seu retorno a realidade ordinária. Mas a volta traz consigo um novo conhecimento sobre si-mesmo e o mundo que o rodeia ou samsara propriamente dito. Nesta fase final, por meio do relaxamento profundo conduzidos com o aluno deitado em decúbito dorsal sobre seu mat, postura (ásana) esta denominada de savasana, que significa

literalmente postura do cadáver ou do morto. De acordo com DeMichelis, é durante esse momento que, como transportados à morte, os iogues vivenciam um processo de limpeza ou de revigoração (cleansing/revivifying process) espiritual consumado (DeMICHELIS, 2004, p.248-260).

O relato de uma prática de ioga descrito por DeMichelis sugere esse espaço

liminar e todo o processo ritual de forma mais explícita:

Quando eu entro na sala de prática aonde eu tenho minhas aulas de Hatha, eu sempre sinto como seu eu estivesse me separando de mim mesmo e do mundo agitado lá fora. Eu deixo meus sapatos fora da sala, meu despertador e meu celular, com meu estresse e meus prazos. Todos meus problemas deixo lá fora, eu entro no santuário da minha sala de ioga.

A sala tem uma parede de janelas e uma claraboia iluminando o chão de madeira, paredes cor creme com luz natural. Os sons de natureza calmos tocando, e algumas plantas ajudam criar a ilusão que eu entrei em um jardim secreto.

Eu encontro um lugar para meu tapete de ioga entre vinte ou mais outros alunos, maioria mulheres, que veem também deixar seus estresse na porta. Nossa instrutora, Beth, esta sentada em posição de lótus na frente da sala, cumprimentando-nos com um sorriso de boas vindas para sentarmos em nossas versões da posição de lótus.

Ela inicia a aula com uma oração. Sua voz emana calma, ajudando-me a deixar meus olhos descansar e meu corpo relaxar para que a minha mente possa focar. A partir daí, nós vamos realizar uma série de alongamentos. Com cada postura, eu encontro um novo músculo e perco-me com a ajuda da minha respiração. Apesar dos lentos movimentos, meu corpo é fortemente exigido na permanência de cada postura e eu posso sentir o suor em minhas costas a partir do aquecimento do meu corpo.

Eu sou convidada para a postura de relaxamento final e meditação. Como se eu não estivesse ali, Beth me acalma, a sua voz relaxante me guia através de uma oração, a qual me relembra que meu esforço deve permanecer na devoção apenas no meu próprio ser (DeMICHELIS, 2004, p.259-260 apud Dalton, 2001, p.37).

Depois da morte simbólica advinda do relaxamento profundo, como explicou DeMichelis, os alunos retornam ao mundo “normal” do dia-a-dia, mas restaurados pelo contato com a experiência do samadhi-liminaridade. O ioga postural moderno, conclui DeMichelis, construiu um espaço mágico-religioso em suas aulas – o espaço liminar - como uma passagem e defendendo o ioga atual como uma religião secular de cura ritual. O ioga moderno e as suas práticas rituais de cura, conclui a autora, são uma forma religiosa privatizada em resposta a uma demanda das sociedades contemporâneas na busca por Deus ou “realização pessoal”, que encontrou certamente, um lugar singular em nossa sociedade (Ibid.).

Hanegraaff, entretanto, nos ajuda a ampliar a compreensão do papel da espiritualidade e ritual de cura ioguico moderno comentado por DeMichelis e Jain, quando sugere que movimentos religiosos advindos da Nova Era, uma das influências do ioga moderno (SINGLETON, 2010), não possuem apenas objetivos utilitaristas nas curas físicas, mas podem implicar soluções religiosas para os problemas mais íntimos do mundo moderno que não puderam ser resolvidos pela tecnologia científica (HANEGRAAFF, 1998, p.44-47). E complementa, propondo que quando se fala em “crescimento pessoal”, pode-se entender como um modelo de “salvação religiosa” também (Ibid., p.23-35). Os livros do Prof. Hermógenes, conhecido como o “pai da medicina holística brasileira”, podem denotar essa característica, sobretudo nas obras:

Autoperfeição com Hatha Yoga, Yoga para Nervosos, Dê uma chance a Deus, Deus investe em você, Yoga : Caminho para Deus e outros.

Dessa forma, a manutenção do ioga como proposta soteriológica e não apenas terapêutica orgânica parece se perfazer. A “cura” sobre o qual o ioga moderno se debruça pode não estar meramente no corpo orgânico ou na “mente”. Quando os iogues se referem a kaivalya, talvez estejam em busca da libertação de um mal-estar representado metaforicamente em sofrimento advindo do “estresse” e suas derivações emocionais.

Para Hanegraaff há uma diferença entre disease/doença e illness/“mal-estar”.

Disease/doença refere-se a uma anormalidade na estrutura e/ou funcionalidade dos

órgãos e sistemas, é um estado patológico culturalmente organizado por um modelo biomédico. Illness/mal-estar, por sua vez, refere-se as percepções e experiências pessoais de estados socialmente desvalorizados, que podem ou não incluir doenças e possuem seus próprios sentidos para a cura. Essa distinção, continua o autor, é de crucial importância para diferenciar a medicina tradicional - como o ayurveda de onde o ioga medieval iniciou a sua medicalização e corporificação - da medicina ocidental – aonde o ioga ressignifica a sua doutrina e prática ritual modernamente.

Curing/remediar, assim, se remete ao tratamento da disease/doença, enquanto healing/”restaurar” ao illness/mal-estar. Curing/remediar pode encontrar lugar,

quando se ocupa apenas do órgão afetado; e healing/restaurar, quando se preocupa com todos os aspectos que englobam o illness/mal-estar (Ibid., p.23-25), ou seja, aos aspectos físicos, psicológicos, sociais e espirituais.

Os críticos à medicina ocidental dizem que seus médicos se especializaram em curar doenças, mas se esqueceram da “arte de healing/restaurar”. Hanegraaff credita a isso ao enorme crescimento de aproximações de healing/tratamentos “restaurativos” alternativos, mais do que apenas o curing/”remediações” de disease/doenças. Assim, o ioga e seus rituais de cura pelo relaxamento está implícito, como expõe Hanegraaff, uma crítica à medicina ocidental oficial. Illness/mal-estar portanto, como base dos rituais de cura ioguicos modernos, pode ser interpretado não apenas como um simples fato biofísico, mas parte total da experiência fenomênica de transformação pessoal para eliminar todo e qualquer tipo de sofrimento ou angústia humana. A salvação/libertação religiosa pode se configurar como uma forma radical de “healing/restaurativa”, conclui o autor (Ibid. p.42-47).

Parece lícito incluir o conceito de kaivalya nessa proposta, aonde os seus rituais adquiririam um caráter, a partir da discussão até aqui, de “restaurar do mal- estar” (illness healing) os iogues modernos, com a intenção de atuar na construção de novas narrativas para uma boa vida a partir da interpretação do samadhi como espaço

liminar.

5.3. O ioga como promotor de rituais corporais de cura na restruturação de sua

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 134-139)