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A ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica e

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 47-52)

Capitulo 2. OS KLESAS NO MUNDO MODERNO

2.1. Os primeiros iogues da geração moderna: a ressignificação das escrituras do ioga

2.1.1. A ressignificação das escrituras do ioga moderno a luz da ciência biomédica e

e fisiologia

O discurso do conhecimento fisiológico da ciência legitima o iogue moderno a abrir mão da sua antiga teoria ética para aniquilação do Mal/klesa, para o controle deste por meio de rituais corporais de purificação ou exorcizo do klesa que vai sendo materializado por assim dizer. Os hatha-iogues já o faziam isso na Índia medieval; o novo, no entanto, é a ressignificação pela linguagem científica. Outro dado a recordar são os motivos que conduziram os iogues medievais a corporificarem seus discursos. Esse processo deveu-se na crítica que faziam ao sistema estratificado da sociedade indiana que impedia acesso a salvação (kaivalya) de quem não pertencia a mais alta casta social. Em outras palavras, aos indianos de castas inferiores, só lhes restavam obedecer aos ditames bramânicos para total extinção do Mal/klesa. A motivação de muitos líderes religiosos que participaram do movimento renascentista na Índia no final do séc. XIX, estava, entre outros, na eliminação das diferenças das castas da sociedade (FARQUHAR, 1915, p.387-429). Assim, parece lícito supor que o pano- de-fundo que encobre o discurso corporificado dos iogues modernos pode estar ainda fundado, não apenas em um simples ajuste ou adaptação simbólica, mas numa crítica social moderna por uma parcela insatisfeita com a vida dos grandes centros urbanos.

Quando Yogananda associa o “treinamento ioguico” na diminuição dos “batimentos cardíacos” e aniquilação de um dos klesas, pode estar ponderando sobre o ritmo agitado da vida ocidental urbana que agora estes iogues indianos tomam contato e, percebendo o mal à dialética saúde-salvação que esse ritmo implica aos seus indivíduos, desenvolve novos métodos de ioga para serem aplicados a um novo coletivo. Segundo Iyengar, “ao controlar a respiração, você está controlando a consciência, e, ao controlar a consciência, você dá ritmo à respiração”. Como veremos, essa moderna dialética ioguica se estabelecendo pode, como alguns pesquisadores apontarão, transformar os klesas, o samadhi e kaivalya em conceitos advindo da fisiologia biomédica, reformulando o Mal, a vivência espiritual e a salvação/libertação religiosa do ioga moderno.

O iogue Yogananda faz uma releitura moderna do HIP (sutras I-41 e II-2), dizendo que “quando não há movimento nas células, na mente ou em qualquer um dos

vasos da alma, prevalece o que se chama de kumbhaka” (p.29, 185)21. Assim como Kuvalayananda tentou aliar o valor religioso com o científico do ioga, Iyengar (2001) também se dedicou às correlações entre a anatomia e a fisiologia biomédica com a religiosidade do ioga.

aplicando-se fundamentalmente a vontade, deverá fixar-se a atenção entre sobrancelhas [shambavi mudra]; quando se utilizam afirmações do tipo intelectual, o centro da concentração será o bulbo raquídeo (centro da força vital inteligente); e as afirmações devocionais, a concentração se focará no coração. Por meio da prática dessas afirmações, adquire-se o poder de dirigir conscientemente a atenção para as fontes vitais da vontade, do pensamento e do sentimento (YOGANANDA, 2008, p.76).

Concentrar-se, com os olhos fechados, na região do bulbo raquídeo, e sentir que o poder da visão, presente nos olhos, fluem através do nervo óptico para a retina. Fixar o olhar entre as sobrancelhas, imaginando que o fluxo da energia vital se dirige desde o bulbo raquídeo para os olhos, transformando estes últimos em dois focos de luz. Este exercício produz benefícios tanto físicos como mentais (Ibid., p.114).

Yogananda, desta forma, faz uma releitura de um clássico e importante mudra da doutrina medieval do HI, o shambavi mudra, pelo prisma da fisiologia científica. Em outra obra, Kriyananda (2007), comentando o seu guru Yogananda, volta a se referir ao bulbo (ou medula oblonga) e ao nadi sushumna como a espinha, e prana como energia.

(...) o caminho do despertar divino é, conforme dissemos, a espinha. A energia penetra no corpo através da medula oblonga, na base do cérebro. (...) A energia (...) transita pelos nervos [nadis] (...) até o cérebro, desce pela espinha (...). Quando, por ocasião da morte, a consciência se retira do corpo, a energia primeiro recua das extremidades para a espinha, sobe por ela e sai pela medula oblonga, deixando o corpo (p.51).

O bulbo ou medula oblonga (porção anatômica inferior do tronco encefálico e responsável pelas funções vitais do corpo) para Yogananda possui também, um pólo negativo e outro positivo. O primeiro, que corresponde ao ajna chackra, situa-se no próprio bulbo; e o segundo, que o reflete, localiza-se na confluência dos três principais nadis (ida, pingala e sushumna), que ele reinterpreta como sendo os nervos (Ibid., p.51), da região conhecida como shambavi mudra, dentro da anatomia e da fisiologia espiritual do ioga (WOODROFFE, 2004, p.56).

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Dentro desta lógica ioga-ciência que vem se edificando no microuniverso ioguico moderno, a região cerebral do bulbo - como responsável por inúmeros nervos motores e sensitivos cranianos - influirá também na dialética prana-citta ou energia cósmica absorvida a cada ato respiratório e a consciência. Na próxima subseção, perceberemos que essa corporificação da fisiologia sutil do ioga se estenderá também a noção de klesa e a sua conversão, de conceito metafísico, ao das emoções possíveis de serem sentidas e percebidas no corpo. Consequentemente, “materializada” e possível de mensuração empírica - mesmo que a ciência ocidental, admitem muitos dos iogues que entrevistei, ainda não possui mecanismos tecnológicos para isso. Se as noções de prana, citta, nadis e demais símbolos transfisiológicos do ioga se corporificam modernamente, é bem provável que encontremos correspondentes fisiológicos empíricos para os klesas, samadhi e kaivalya, mesmo que sejam conceitos ideais erigidos pela ciência.

No HIP, segundo Iyengar (2001), o ioga é prana-vrtti-nirodha (acalmar as flutuações da respiração); já o IS afirma que ioga é citta-vrtti-nirodha (acalmar as flutuações da mente) (p.29); assim, é lícito pensar, dentro da nova racionalidade fisiológica religiosa do ioga moderno, que o bulbo tenha participação direta nesse processo, como afirmam os iogues acima, pois ele (o bulbo) também é o centro respiratório pela fisiologia biomédica. Se relembrarmos que os klesas são os responsáveis pela produção dos vrttis, e estes, pela corporificação que o ioga vem sofrendo, podem estar assumindo um caráter de induzir as “flutuações da mente” (IS 1:2). Dessa forma, supor a participação real dos klesas em estados mentais/emocionais modernamente, pode ser possível.

A citação abaixo reforça a transformação da transfisiologia medieval aos padrões ocidentais de racionalidade. Kriyananda (J. Donald Waters), um ocidental discípulo direto de Paramahansa Yogananda, insiste no caráter empírico de ajna

chackra, quando busca demonstrar que a meditação ioguica nessa região metafísica

pode desbloquear energias espirituais no corpo. No fundo, o objetivo dos iogues modernos está em permitir o livre fluir das energias (prana) através das suas novas técnicas rituais. Serão, logo, elas as técnicas ioguicas - e não mais a autoridade do alto clero – as responsáveis por eliminar as manifestações maléficas dos klesas.

[O iogue] pode-se perguntar: o olho espiritual [ajna chackra] é puramente simbólico? Não, é real e constitui, de fato, um reflexo da medula, a partir da qual a energia desce a espinha por três nadis ou canais sutis de força vital [prana]. (...) A espinha é o canal principal por onde a energia flui. O fluxo ascendente da energia [que conduz kundalini] pode ser bloqueado por alguns plexos [chackras] na espinha, de onde ela passa para o sistema nervoso e daí para o corpo, sustentando e ativando os diferentes órgãos e membros. Quando em meditação profunda, o yogue transfere energia do corpo exterior [koshas] para a espinha e a faz subir para o cérebro [último

chackra], ele encontra essa passagem bloqueada pelo fluxo externo de

energia proveniente daqueles plexos (ou centros, mas que nos tratados yoguicos recebem o nome de chackras). A energia de cada chackra deve ser conduzida para a espinha a fim de prosseguir sua jornada ascendente (KRIYANANDA, 2007, p.52-53).

Kriyananda acima nos exemplifica a “realidade” das energias “bloqueadas” com correspondentes nos plexos, coluna vertebral e glândulas, locais anatômicos pertencentes ao conhecimento científico. Mas, o que as bloqueia agora, acreditam os iogues modernos, são as contrações musculares, a alimentação inadequada e as doenças. Dessa forma, os músculos relaxados pela ação de posturas ioguicas específicas, combinados aos respiratórios (pranayamas), alimentação vegetariana devem agir no desbloqueio de prana nos chackras e, consequentemente, no reestabelecimento da saúde. No fundo, não devemos nos esquecer que o responsável real por essa configuração nefasta (de energias bloqueadas) são a ação dos klesas, que produzem o “turbilhão da mente” e permitem que doenças se instalem em nossos corpos e mentes em desequilíbrio por uma má circulação prânica. No entanto, para se compreender a lógica aqui se desenhando é preciso também, estimar os klesas - o mal a ser aniquilado – como responsáveis velados desse processo. Com isso, novos bens de salvação se configuram como uma possível reforma no modo como os iogues modernos percebem a causa do mal que os atormenta e os afastam de kaivalya, que representa, desde os tempos antigos, um estado perene de equilíbrio divino em sattva ou o estado da alma/purusa imaculada.

Como exemplo da busca incessante por corporificar todas as manifestações suprassensíveis das escrituras antigas, tomemos como exemplo os chackras. Os

chackras, vórtices de energia que canalizam e potencializam prana, sempre foram de

natureza mística, mas eles também sofreram reformulações significativas na sua interação com o sistema de crenças da ciência. Eles (os chackras) continuam a ser representados nos corpos transfisiológicos do ioga, mas ganharam correspondências das mais variadas dentro da fisicalidade orgânica da fisiologia ocidental, como plexos,

glândulas e junções celulares (gap junctions), como se observa nas pesquisas fisiológicas modernas da religião, mas também na voz da doutrina ioguica atual.

Chakras são centros da energia espiritual. Eles estão localizados no corpo

astral, mas eles possuem correspondência com centros no corpo físico também. (...) há certos plexos no corpo físico (SIVANANDA, 2000, p.7). Mais de dois milênios atrás, Patanjali deu-se conta da importância do cérebro. Ele descreveu a parte frontal como o cérebro analítico, a posterior como o cérebro do raciocínio, a inferior com a sede do estado de graça (o que, a propósito, corresponde às descobertas da ciência médica moderna, segundo a qual o hipotálamo, situado na base do encéfalo, é o centro do prazer e da dor), e a parte superior como o cérebro criativo ou sede da consciência, a nascente do ser, do ego ou do orgulho, o berço da individualidade (IYENGAR, 2001, p.174).

Por meio (...) das posturas do Yoga, podemos ajudar a suprimir e aliviar a congestão dos nervos ou das vértebras (nadis), facilitando assim o livre fluxo da energia vital (prana) (YOGANANDA, 2008, p.43).

O iogue, segundo Yogananda (2009):

(...) faz circular mentalmente sua energia vital [prana] (por meio das técnicas físicas, kriyas, ásanas, mudras e pranayamas), em direção ascendente e descendente, ao redor dos seis centros da coluna vertebral [chackras] (plexos medular, cervical, dorsal, lombar, sacral e coccígeo)” (p.248).

Percebe-se as aproximações que as escrituras ioguicas modernas se esforçam em estabelecer com a fisiologia biomédica ocidental. De certa forma, estes adquirem aspectos milenaristas e têm ultrapassado as simples analogias anatômicas. Há, portanto, uma esperança (e fé) de que a ciência “comprove” os benefícios do ioga como caminho espiritual. Mais do que isso, que a ciência alie-se ao ioga – demonstrando a eficácia de suas práticas espirituais – no combate ao Mal/klesa. Com isso em mente, o Mal/klesa não pode continuar centrado em condutas éticas pautadas por brâmanes indianos do séc.II a.C.; o Mal/klesa precisa também ser ressignificado. Se, como já sabemos, os klesas impedem o acesso a kaivalya pois produzem “agitação mental”, é necessário que o sistema nervoso autônomo, responsável por induzir involuntariamente – desse modo, por forças que não cabe a nenhum indivíduo controlar – o indesejável movimento mental, estar associado a forças e localizações de uma anatomia transcendente. O respirar e o prana agora serão associados como mediadores dos mundos material e espiritual. Assim, as posturas e os respiratórios do

ioga adquirem agora os responsáveis por conduzir, durante as práticas corporais, seus praticantes, igualmente, a um espaço transitório de acesso ao espiritual.

No documento DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO (páginas 47-52)