• Nenhum resultado encontrado

Artesanato, fazer manual e gestualidade no trabalho dos irmãos Campana

3 A TRAJETÓRIA DOS IRMÃOS CAMPANA

5.1. A NOMENCLATURA ASSOCIADA AO PROCESSO DE FABRICAÇÃO

5.1.2. Artesanato, fazer manual e gestualidade no trabalho dos irmãos Campana

A linguagem adotada pelos irmãos Campana baseia-se em um fazer manual, como atividade que envolve habilidade e experiência. Esse fazer com as mãos parte de uma escolha dos materiais e da descoberta de suas possibilidades, desenvolvendo novas formas de trabalhar a matéria-prima a partir do gesto. As atividades de trançar, enrolar, sobrepor, cortar, estão impregnadas de um olhar atento que tem suas origens no artesanato. Essas atividades constituem uma herança do trabalho artesanal, que agora são executados individualmente e nascem de uma observação planejada. Planejada, embora o olhar superficial sobre o design dos Campana possa acreditar que a escolha da matéria-prima e a fabricação das peças ocorre ao acaso, por meio de um gênio criativo que se desenvolve e dá forma aos objetos. Nesta crença equivocada, a técnica surge do acaso, quando na realidade é fruto de uma observação e do conhecimento adquirido por essa observação; também pela experiência da manipulação de materiais e das possibilidades de trabalhá-lo. Este processo não depende de equipamentos tecnológicos elaborados, nem do maquinário empregado na indústria moveleira.

Partindo da observação da matéria-prima, tem início o envolvimento corporal, que se mostra mais como uma identidade no trabalho dos designers do que simples postura ou atitude adotada casualmente. Esta identidade na obra dos Campana configura-se como um elemento exclusivo ou próprio; aquele aspecto que destaca e torna reconhecível o trabalho como sendo dos irmãos Campana.

O gesto está presente na maioria das peças de mobiliário dos irmãos, mas em alguns exemplos o envolvimento corporal é o destaque: como a série Sushi, na qual são utilizados vários materiais, que são enrolados, colados e costurados uns aos outros. Cada etapa ou ato requer uma gestualidade que lhe dê forma e materialidade. Revela-se como uma linguagem própria, que nasce do conhecimento em manipular a matéria-prima.

A cadeira Vermelha (1993), a poltrona Anêmona (2001), a linha ZigZag (2001) e a cadeira Corallo (2003) são exemplos de como a gestualidade no design dos irmãos Campana pode determinar a configuração de um produto: do conceito à forma. Nestes móveis e linhas de produtos, o envolvimento corporal cria um jogo visual dinâmico, revelando o movimento feito com as mãos. O movimento e o envolvimento referem-se à atividade do artesanato; presente no modo como são adaptadas e executadas as técnicas de manuseio, montagem, criação e materialização de idéias.

Um dos elementos de aceitação e procura pelo produto artesanal na atualidade é o caráter de gesto individualizado que este possui, como se o objeto estivesse impregnado pelo gesto de quem o fabricou. Mesmo sendo parte de uma concepção romântica, esta idéia do traço de alguém em um artefato, pode ser considerada uma aspiração de humanização nos objetos. O gesto da mão humana, que se acredita presente num determinado artefato, é compreendido como um índice da atividade humana. Um fato significativo, nesta visão, é a percepção do valor do objeto: exclusividade e singularidade são diferenciais do produto artesanal, mas que não podem ser oferecidas pelo produto industrial fabricado em larga escala. A seriação é o que difere a produção artesanal da industrial, e o caráter individual é percebido como um valor simbólico, mais importante, em alguns casos, do que o valor de uso.

A crença de que o objeto feito manualmente pode carregar um valor de humanização por meio de quem o produz, ou de que no fazer manual persiste um ideal de humanização, é uma visão que busca no artesanato certo consolo em relação aos produtos industrializados, mesmo que a seriação constitua o fazer artesanal. É uma valorização do que é considerado oposto ao processo industrial e uma valorização do simbólico, em detrimento do que é utilitário ou funcional; ainda que estes últimos sejam, também, percebidos como valores simbólicos. Esta percepção de humanização provocada pelo simbólico está presente nos produtos criados pelos irmãos Campana. Humberto Campana revela que eles não têm como objetivo a produção em massa, pois a intenção é criar objetos únicos e que possam “humanizar” a produção. (MONACHESI, 2007).

O fazer manual também está presente no modo de perceber o objeto e de planejar a sua construção. Este é o caso da série Blow Up (2006), desenvolvida em alumínio, e produzida pelo processo industrial. Segundo Humberto Campana, embora o processo seja industrial e não exija intervenção manual, o “olhar partiu de uma manufatura” (MONACHESI, 2007). As peças da série Blow up foram fabricadas pelos próprios designers com as ferramentas disponíveis, e posteriormente algumas peças, como a fruteira da série, foram fabricadas pela Edra, que adaptou o processo com ferramental de estanho e solda. (MONACHESI, 2007).

O envolvimento corporal no trabalho desenvolvido pelos designers não é exigido apenas quando os projetos são materializados, no momento da sua fabricação. É a base da criação; é o olhar atento que antecede a produção, por isto caracteriza-se como uma linguagem própria: está presente em todo o processo de design19. A Mesa Fitas (1993) é um exemplo da construção baseada no gesto: expressa a idéia de tiras ou fitas metálicas, mas que remetem a um desenho semelhante ao papel, como se fossem cortadas ou montadas manualmente, mas que na realidade são fabricadas por processos industriais automatizados.

O artesanato, se compreendido somente pelo aspecto da produção, não contempla os inúmeros outros elementos que o constituem, como a forma de exercer esta atividade no sistema de trabalho e sua herança tradicional. Ainda deve-se avaliar que a atividade artesanal envolve aspectos culturais, sociais e simbólicos em sua prática; pressupõe gestos e saberes tradicionais, entremeando o produto materializado e acabado.

O “artesanato” que está presente na produção dos Campana não constitui uma cooperativa ou associação com outros artesãos, mas é possível observar em suas práticas uma relação com outros produtos do artesanato brasileiro. O saber exercido pelos irmãos refere-se a um conhecimento sobre a cultura

19 A expressão processo de design é empregada para designar as etapas de criação e confecção

nacional20, pois o artesanato é uma atividade freqüentemente associada à identidade cultural de uma nação. A idéia de nação está relacionada não somente ao país, como unidade política, mas com “algo que produz sentidos – um sistema de representação cultural.” (HALL, 2006, p.49) Desta maneira, a atividade artesanal constitui um imaginário da nação, neste conjunto de sistemas de representação e produção de sentidos. O artesanato é, para muitas comunidades no Brasil, uma possibilidade de renda, trabalho e desenvolvimento. Na cadeira Multidão (2001), por exemplo, a relação com o artesanato é complexa. O móvel é feito com várias bonecas de pano, produzidas por uma comunidade de mulheres, localizada na Paraíba. Estas mulheres sobrevivem da renda das bonecas. A atividade artesanal não é apenas uma expressão livre e geralmente idealizada da cultura nacional; consiste em um meio de utilizar referências que fazem parte da cultura nacional ou local, como uma possibilidade de inserção na sociedade.

As comunidades que desenvolvem bonecas e outros artefatos artesanais, em muitos casos, redescobriram uma atividade tradicional; ou criaram esta tradição, como um meio de obter renda, trabalho e melhorar as condições de vida em localidades pobres.21

O trançar e enrolar que dá forma aos objetos, tornando-os produtos com características singulares, também encontra semelhanças na arte indígena. Esta associação inclusive já foi feita pela mídia, quando os designers começaram a apresentar suas criações internacionalmente.

20 O termo cultura nacional, é utilizado neste trabalho, como um conjunto de símbolos associados

a uma determinada cultura, como acredita HALL (2006, p. 49): “uma nação é uma comunidade simbólica”. Assim, a cultura nacional é adotada como um conjunto de símbolos associados ao Brasil e aos temas brasileiros; como sistema de representação cultural.

21

Um exemplo desta iniciativa é a comunidade Dom Aquino, que confecciona bonecas de pano, semelhantes à Esperança, que nasceu do diálogo do Sebrae com algumas artesãs. A comunidade, localizada em Dom Aquino, no Mato Grosso, estabeleceu uma parceria com o Sebrae, que percebeu o costume de algumas costureiras e então sugeriu a confecção de bonecas de pano. Nem todas as mulheres da comunidade sabiam costurar, mas com o apoio do Sebrae elas aprenderam a atividade. Na formação da comunidade de Dom Aquino, o artesanato resgatou práticas tradicionais que foram somadas às informações passadas pelo Sebrae. O resultado é uma nova e antiga atividade artesanal. (SEBRAE, 2004). Pode-se perceber como o artesanato não se desenvolve sem interferências, sem transformações; não é uma atividade atemporal e recebe influência das modificações que ocorrem na cultura local e também nacional.

O conhecimento sobre o ato de trançar apresenta-se na arte baniwa muito mais rico e complexo do que é possível imaginar se um cesto for pensado somente pela produção como um ato isolado. Sua produção envolve um repertório de técnicas, que determina qual é o tipo de trançado mais indicado de acordo com o uso ao qual se destina o cesto (produto). E os usos são tão variados quantos as possibilidades de conferir forma ao produto. A arte baniwa mostra que trabalhar com as mãos se revela um saber condicionado por algumas práticas culturais e sociais. O conhecimento é transmitido, observado, aprendido em uma determinada comunidade.

Figura 47. O urutu (cesto) e o trançado envolvendo o movimento das mãos. Fonte: http://www.artebaniwa.org

Para Fernando e Humberto, trançar e enrolar desenvolve-se através da experimentação. É um processo de planejamento, embora sem a metodologia ou procedimento pautado em etapas pré-definidas; parte da disciplina do olhar, que busca o movimento do gesto. Pode surgir da memória existente sobre o que constitui o artesanato no âmbito da cultura brasileira. As tribos indígenas fazem parte do imaginário do artesanato com a sua associação com a identidade cultural. O “artesanato” dos irmãos Campana tenta apreender o conhecimento do artesanato brasileiro a partir de pesquisas e experiências. Eles se interessam pelos trançados, pelo enrolar e desenrolar de fios e cordas, mas fazem isto com base no aprendizado prático de manusear materiais e encontrar soluções com eles.

A linha de móveis com o conceito sushi utiliza uma idéia semelhante às artesãs que confeccionam bonecas de pano, feitas com retalhos de tecidos. A série faz parte de uma experiência dos designers em usar materiais provenientes

da indústria, como os retalhos de tecidos, pedaços de carpetes e tapetes, pedaços de borracha, etc. Os designers combinam pedaços, fragmentos de materiais que constituem algum processo de fabricação, que pode ser industrial ou manual. Há um acúmulo visual no resultado destas formas provenientes dos materiais, que permite uma associação com o artesanato popular que trabalha com tecidos. Este produto resulta de uma técnica popular, conhecida como fuxico, feita com sobras de tecidos. Esta técnica geralmente é passada de uma geração a outra, como uma prática feminina, assim como se caracteriza o bordado, por exemplo.

O fuxico é uma técnica de decoração, desenvolvida com as sobras de tecidos. É utilizada pelas costureiras que trabalham com grandes quantidades de tecidos, como um meio de aproveitar o tecido que sobrou: são confeccionados tapetes de retalhos, toalhas, revestimentos para cadeiras ou bancos de automóveis desta forma.

Figura 48. Dois móveis da linha Sushi (2002) e as poltronas Bouquet (2008), do designer Tokujin Yoshioka, com forte inspiração na arte popular brasileira. Estas poltronas foram apresentadas no Salão de Milão de 2008. A idéia da poltrona é a mesma dos tapetes artesanais, feitos com retalhos e sobras. Fonte: ARC DESIGN, 2003; http://www.designmuseum.org; ARC DESIGN, 2008.

5.1.3 Artesanato e objeto “único”

Há uma revalorização do artesanato, visto como o fazer manual, responsável pela diferenciação e singularidade das peças. Essa revalorização

vem acontecendo nos últimos anos, de forma curiosa, por vezes associada a um tipo de resgate da diferença e da individualidade do gesto no artefato artesanal. Este acontecimento constitui uma visão idealizada e, de certa forma, ingênua, sobre artesanato e os artefatos. Esta visão não é propriamente nova22, mas parece ter alcançado uma proporção maior na sociedade atual, devido ao estágio de industrialização e padronização de muitos produtos, onde “sentimos necessidade de ter por perto algo que nos remeta ao lugar dos sentidos e das individualidades”. (CARDOSO APUD DUMS, 2003, p.29).

O artesanato e a crença nos gestos impressos nos objetos podem ser entendidos como uma idealização, na qual os indivíduos acreditam resgatar a sensação de objeto único e exclusivo, que parece se perder na padronização dos produtos comercializados hoje em dia. Sobre esta idéia de resgate, considerada muitas vezes reação contra a industrialização e padronização, como identifica Peter Dormer (1995, p. 27): “O êxito das culturas industriais produziu algumas reações contra elas. Temos necessidade de acreditar que ainda é possível ganhar a vida fazendo as coisas à mão, de acordo com o nosso próprio ritmo e tendo perfeito domínio do processo total.”

Humberto Campana reforça essa crença quando afirma que os irmãos são “responsáveis por levar o artesanato para o design italiano” (MONACHESI, 2007), referindo-se à empresa Edra, que produz vários móveis da dupla. A empresa italiana, segundo Humberto, teria apostado no design diferenciado da dupla, em uma oposição ao que é feito atualmente no design e no design italiano, apostando no “design feito pela mão do homem em vez de simplesmente cuspir milhões de cadeiras de plástico”.(MONACHESI, 2007). A Edra possivelmente tem condições de produzir móveis por um processo artesanal, semi-industrial e industrial. A afirmação de Humberto Campana não se sustenta, pois a aceitação da empresa em produzir artesanalmente ou parte do processo deste modo, pode se configurar como uma opção da empresa; um investimento na inovação e

22

A preocupação com o artesanato e com artefatos considerados como expressões culturais tem suas raízes no século XIX e século XX, já com uma preocupação ligada à idéia de patrimônio cultural e preservação de bens culturais. (LEMOS, 1987).

valorização criativa dos designers, e menos uma reordenação de seus processos de fabricação.

Enquanto o design é visto como um processo de criação de produtos voltados à produção industrial, os produtos dos irmãos Campana são vistos como objetos “descolados” desse processo, objetos únicos, mas produzidos em série, que se aproximam também do universo da arte. Se o design, a produção industrial e a seriação caminham juntas, a obra dos irmãos pode ser situada nas fronteiras da arte e do design. A produção dos Campana pode ser considerada um processo híbrido (GARCIA CANCLINI, 2003) que emprega procedimentos que combinam tecnologia de ponta e processos artesanais.

As questões do artesanato e do objeto único estão ligadas a uma revalorização da atividade artesanal e da intervenção humana nos produtos como forma de imprimir além dos significados, aspectos comunicativos e subjetivos, a qualidade. Um ideal de qualidade que já era proposto por William Morris e pelo

Arts and Crafts (Artes e Ofícios) na Inglaterra do século XIX. Morris acreditava no

potencial de transformação do design, mais precisamente pela união da arte e do artesanato, com igual valorização dos campos. A técnica e o trabalho manual não deveriam ser compreendidos como atividades menores em relação ao trabalho artístico e intelectual.

Para Morris, um artesão não deveria ser visto como inferior a um advogado, por exemplo. A fabricação dos produtos não deveria ser algo dissociado do design; a atividade de design era entendida como abrangente, na qual as formas de realização do trabalho eram importantes no resultado de um produto. O design deveria contemplar a preocupação com as pessoas envolvidas no processo produtivo, criando uma linguagem harmônica, onde beleza, funcionalidade, arte e artesanato estariam em equilíbrio.