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3 A TRAJETÓRIA DOS IRMÃOS CAMPANA

6.3. FAVELA

A inspiração para criar a cadeira Favela (1991) aconteceu quando os designers passavam pela favela da Rocinha e observaram que ela parecia um “vale encravado na cidade”. (MONACHESI, 2007). A imagem ficou gravada na memória como uma fotografia, segundo disseram, e foi então que surgiu a idéia de fazer a cadeira. Feita com sarrafos de madeira, que mais parecem sobras, são madeiras provenientes de caixas de frutas e verduras, como revelaram os designers: “A gente pegou muita caixa no Ceasa naquela época, onde eles pegam as caixas e fazem casas de cachorro, e fez a cadeira com o processo

como o cara constrói a favela”. (MONACHESI, 2007). A escolha do material, um tipo de madeira de segunda linha, usada nas embalagens, revela-se uma prática de reuso, tão característica no trabalho dos irmãos Campana. As caixas de frutas e verduras são utilizadas pelos sem-teto e podem servir de abrigo, moradia e na construção de móveis, como bancos e berços. (KASPER, 2006).

Em uma análise dos signos plásticos e dos aspectos formais da cadeira, pode-se perceber que as linhas retas verticais e inclinadas predominam, formando um intrincado jogo visual de pequenos sarrafos sobrepostos. Linhas diagonais e inclinadas insinuam o movimento, em contraposição ao caráter estático das linhas retas horizontais e verticais. Formas geométricas e retilíneas são associadas à seriedade, racionalidade, contenção e certa artificialidade. A precisão desta geometria é quebrada pelo ritmo das linhas diagonais, inclinadas, que insinuam uma desordem, dinamismo, agitação.

A composição das linhas, distribuídas de maneira desorganizada, instigam uma “confusão” visual intencional, provocada pela disposição dos sarrafos em várias direções. Os elementos formais e arquitetônicos dos barracos estão representados na composição caracterizada pela sobreposição. Linhas retas, diagonais, horizontais e verticais, sobrepostas umas outras: funcionam como signos plásticos dos elementos arquitetônicos utilizados na construção dos barracos. Nesta construção, permanecem espaços vazios, que podem ser vistos por entre os sarrafos. Este aspecto pode ser compreendido como um recurso para a falta de opções (escassez/pobreza) ou uma forma de “tapar os buracos”, numa referência a uma expressão que possui duplo sentido: o literal e os problemas mal resolvidos.

A composição é dinâmica; sugere o movimento dos sarrafos, sendo pregados uns sobre os outros. Os elementos plásticos estabelecem uma relação icônica entre a favela em seu aspecto arquitetônico no cenário urbano. Estes elementos estabelecem a relação de índice: a composição e as formas de representação dos sarrafos indicam o movimento necessário na construção dos barracos.

A forma predominante é reta e dura; há uma rigidez nos traços e nas formas da cadeira. A racionalidade no uso de recursos disponíveis (da situação dos moradores da favela) está representada pelas formas geométricas e retas que predominam na cadeira. A coloração da madeira natural, sem pintura, contribui para o caráter simples e barato do material utilizado. A sensação de tocar a madeira que não apresenta acabamentos é de encontrar algumas texturas, farpas; a sensação não é de superfície lisa. A cadeira sugere uma certa distância, pela sensação de texturas que oferece, como se apresentasse partes incompletas que pudessem ser percebidas pelo toque ou pelo uso. A ausência de acabamentos e cores pode ser compreendida como um índice da racionalidade no uso de recursos, fazendo alusão à situação econômica dos moradores da favela.

Figura 58. A cadeira Favela em foto que apresenta um cenário árido, que lembra escassez ou ainda a seca da região Nordeste. Ao lado, o contraste com um cenário que insinua uma elegância no interior. As duas fotos fazem parte da divulgação da cadeira no endereço eletrônico da Edra. Fonte: http://www.edra.com

O arquiteto Gianfranco Vannucchi comprou um dos primeiros protótipos da cadeira Favela e descreve o móvel, a partir dos aspectos arquitetônicos que remetem às formas arquitetônicas das favelas. Para Vannucchi,

O gesto de pregar ripas sobre a estrutura rígida de um protótipo que não se resolveu é realmente semelhante a construir casas de madeira, barracos, favelas. Mas muito mais que a semelhança do processo construtivo, o resultado final da cadeira Favela, dos irmãos Campana,

nos fala muito de arquitetura. Vista como um todo, lêem-se quatro grandes planos, um horizontal e três verticais, apoiando-se sobre (e sendo ao mesmo tempo) quatro sólidas pernas/pilares.

Dando um “zoom”, aproximamo-nos de seus detalhes: pequenas paisagens construídas; escadas, rampas, frontões, patamares; enfim, quase todo o vocabulário arquitetônico primário vai surgindo dentro e ao redor da cadeira.

Uma vez, por acaso, tive de colocá-la de cabeça para baixo para bater- lhe um prego solto. Eis que quatro grandes torres surgem apontando para o alto sobre a base piramidal, convergindo em remoto ponto de fuga.Mas realmente sinto “sua arquitetura” quando a luz vai batendo cada vez em um novo ângulo. Sombras, arestas, “chiaro-scuro”, frente/fundo, o tal do “... sábio jogo da luz...” de Le Corbusier. A mudança da incidência da luz a cada instante transforma o espaço e seus volumes, fazendo da arquitetura sempre uma grande surpresa até para o próprio criador. (ARC DESIGN, 2003, no. 29 p. 21).

Há um contraste interessante das linhas que parecem fazer parte de um quebra-cabeça que pode se desmontar e espalhar; pelos espaços vazios criados pela disposição das formas, onde a luz passa e cria sombras num jogo visual dinâmico. Os contrastes da luz criam focos de maior tensão: é quando se observam as direções das linhas e como estão fixadas e também criam áreas de atenção; a cadeira se torna mais leve pela incidência da luz.

Figura 59. As linhas e formas da cadeira a partir de um traçado feito sobre a imagem do móvel: formatos e composição tornam-se mais claros. Fonte: arquivo da autora. À direita, as dimensões da cadeira: o desenho da cadeira confirma a fixação “desordenada” dos sarrafos de madeira sobre a estrutura. Fonte: http: //www.edra.com/product.php?id=14&name=Favela

O material usado – simples, barato e comum – pode sugerir que o móvel é resultado de um processo construtivo um tanto precário, com técnicas rudimentares. A cadeira Favela emprega materiais e técnicas simples, mas a

aparente precariedade esconde o gesto disciplinado e ordenado que constrói o móvel deste modo.

A cadeira teve dois protótipos que foram fabricados pelos designers em seu estúdio em São Paulo, em 1990. Em 2003, a Edra assumiu a produção da cadeira e sugeriu que ela fosse fabricada no Brasil. A cadeira é confeccionada por uma comunidade chamada Santo Cristo, da região das Missões, no Rio Grande do Sul, depois exportada para a Itália e Europa. Esta comunidade de origem alemã possui cerca de 3.000 habitantes que, segundo relato dos designers, não falam português. (MONACHESI, 2007). O resultado deste processo de fabricação é que a cadeira Favela, fabricada no Brasil, comercializada na Europa e vendida novamente no Brasil a 3.000 euros27. Desta forma, a favela “ganha um status que é irônico” como reconhece Fernando Campana. (MONACHESI, 2007). O status irônico é que o móvel, quando era feito no estúdio pelos designers, custava R$ 500,00 e só duas cadeiras foram vendidas (MONACHESI, 2007). Produzida pela Edra, fabricada no Brasil, converteu-se num móvel de luxo, comercializado nos circuitos americanos e europeus a preços pouco acessíveis. Fernando Campana acredita que

A favela é uma homenagem à riqueza dos pobres, que é saber fazer sem ter aprendido, pela sobrevivência. A riqueza do pobre é essa aí, da espontaneidade, da generosidade, é abrir a casa, abrir a alma, deixar ser dissecado. A antropofagia é isso. A gente sabe fazer isso. O legal do Brasil é isso. (...) esse tipo de pensamento, de não esconder o Brasil, mesmo que tenha erro, que seja imperfeito, não ver o Brasil com olhos de turista, com olhos que queiram que a gente veja. Fazer coisa desafinada. Tem tanta coisa que é ruim e que dá o tom do Brasil, que é quando o errado se torna sonoro, bonito, quando o errado está certo. (MONACHESI, 2007)

A antropofagia, no comentário de Fernando Campana, remete aos modernistas envolvidos com os eventos da Semana de 1922 e a Antropofagia, na década de 192028. A Antropofagia propunha a deglutição da arte, do primitivo e

27 Cerca de R$ 7.700,00, de acordo com a entrevista em 2007.

28 Acontecimento cultural fundamental na arte brasileira, a Semana de Arte Moderna de 1922 foi

idealizada a partir da reunião dos artistas da época, em defesa de Anita Malfatti, criticada por Monteiro Lobato em um artigo intitulado “Paranóia ou Mistificação”, por sua exposição em 1917. A Semana de Arte Moderna idealizou eventos ligados às artes visuais, literatura e música, durante a

do moderno, adsorvendo referências e adaptando-as com uma identidade brasileira. Como definiu Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago: “só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago" (ITAÚCULTURAL,

2005). No discurso anterior dos Campana, a antropofagia parece estar associada

à idéia de que o brasileiro adota referências de modo descompromissado e desvinculado de um contexto mais amplo, como era a proposta de Oswald de Andrade, quando emprestou de Shakespeare a célebre frase: “Tupy or not tupy,

that is the question” (ENCICLOPÉDIA ITAÚCULTURAL, 2007) A “riqueza dos

pobres”, associada à noção de antropofagia, sugere que os valores criativos atribuídos aos moradores da favela originam-se no saber espontâneo, marcado pela abertura às influências e à possibilidade de ser “dissecado”. Neste sentido, ser dissecado é justamente ser objeto da antropofagia. Assim, na visão dos irmãos, perpetua-se esse “saber fazer sem ter aprendido”, que acontece pela “digestão” daquilo que é tomado como seu nas práticas cotidianas e nas experiências urbanas.

Seu mobiliário expressa também este discurso antropofágico: dialogando com o popular, a favela como ícone da pobreza, convertida em status: não apenas do ponto de vista econômico, mas também do status da favela que passa a ser cult, dentro das classes mais abastadas, que não fazem parte desta origem. Passa a ser referência em projetos como A Casa Ideal (2003), de Colônia, Alemanha, onde a configuração construtiva da cadeira foi estendida para a casa: paredes, escadas, estruturas, mobiliário. A favela ganha mais um status: da moradia precária dos grandes centros urbanos do Brasil, converte-se em moradia ideal, apresentada em feiras e exposições na Europa. Seu status irônico é tentar romper com aqueles estereótipos da favela como feio e errado, com sua arquitetura desordenada e sua precariedade, tanto visual e quanto financeira.

Semana de Arte Moderna. O Grupo dos Cinco, formado por Mario de Andrade, Oswald de Andrade, Anitta Malfatti, Tarsila do Amaral e Menotti Del Picchia exerceu grande influência na arte moderna brasileira; em especial Tarsila do Amaral. Recém chegada da Europa, passa a fazer parte das discussões modernistas e inspira, em 1928, a criação do Movimento Antropofágico, de Oswald de Andrade. (OLIVEIRA, 1999). As iniciativas da arte moderna brasileira tinham como propósito romper com a tradição da arte, com as regras acadêmicas da pintura, com os modelos que dominavam a percepção da arte por parte das elites.

Este rompimento propõe o olhar a favela com o estereótipo do alternativo, do criativo por opção ideológica e não pela exclusão ou escassez de recursos.

Nas fotos de divulgação (figura 58) feitas pela Edra, a cadeira Favela está cercada de contradições e dialoga com elementos diversos. A cadeira aparece em uma paisagem árida, com cercas de madeira ao fundo, sugerindo o sertão. O móvel fala do interior e dos grandes centros urbanos e, simultaneamente, fala do objeto de luxo. Por estes deslocamentos entre lugares e idéias, a cadeira Favela oferece visibilidade à discussão sobre a representação do Brasil e de seus estereótipos.

Os designers problematizam a visão da escassez e da precariedade, pois reordenam os valores tradicionais. Ao valorizar a criatividade da construção dos barracos, o que eles chamam de “riqueza dos pobres” (MONACHESI, 2007), eles estão reordenando valores e concepções da sociedade. Os irmãos elegem a favela como símbolo de reaproveitamento, reciclagem e reinvenção de significados.