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Se atendermos ao facto do ensino da Física e Química ter uma grande parte dos conceitos formais com designações que se confundem com termos usados no dia-a-dia, torna-se fundamental evidenciar ruturas concetuais, por vezes profundas, com as noções do senso comum associadas a esses termos. Por outro lado, as aprendizagens que os alunos fazem no domínio da Física e Química não são só fruto do ensino que é feito dentro da sala de aula. As vivências que recolhem no dia-a-dia, através do contato com outros alunos, adultos ou instrumentos, faz com que já tragam conhecimentos acerca dos assuntos tratados nas aulas. Os conhecimentos que assimilaram e desenvolveram através de experiências vividas no seu quotidiano ou por transmissão socio-cultural do meio em que estão inseridos, permite-lhes criar modelos explicativos para os fenómenos que observam e que nem sempre correspondem aos científicamente corretos. Estes modelos podem constituir um bloqueio a aprendizagens futuras.

Assim, se a aprendizagem se processa através da reconstrução das ideias de que os alunos são portadores, “então é necessário que se tornem explícitas, que sejam tomadas em conta e se projetem formas de as alterar” (Veiga, 1991, p. 42). Por esta razão, numerosas investigações, por todo o Mundo, têm-se dedicado ao estudo daquilo a que se tem chamado as ‘ideias intuitivas’ (ou conceções alternativas ou iniciais’) dos alunos, pondo em evidência a sua importância para o ensino. Como sublinham Marques

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e Praia (1991, p. 16) “ignorar essas ‘ideias intuitivas’ equivale a perder o sentido de uma maior eficiência na ação educativa”.

Gil Perez (1994) fazendo uma análise de estudos realizados sobre as concenções alternativas ou conceitos espontâneos, mostra que “em primeiro lugar estas investigações têm questionado fortemente a eficácia do ensino por transmissão de conhecimentos elaborados (...) e têm contribuído, mais que qualquer outro estudo, para problematizar o ensino/aprendizagem das ciências e romper com a inércia de uma tradição assumida acriticamente” (idem, p. 24). Estes aspetos influenciaram e impulsionaram a procura de inovações no ensino da Física e Química. Torna-se importante, tanto ao nível metodológico como ao nível curricular, selecionar estratégias que tenham em conta a valorização dos conhecimentos adquiridos, que os permitam confrontar e, se for o caso, reformular.

É de fazer notar que a valorização das ideias dos alunos reforça a noção do “aluno já como um cientista”. Essa aproximação entre ideias científicas e ideias prévias dos alunos reforça a crença de que as mesmas se poderão transformar em ideias científicas, desde que expostas a situações de conflito, normalmente propiciadas por “experiências cruciais” (Salomon, 1995). Desde modo, o ensino deverá consistir fundamentalmente na organização de atividades centradas sobre a descoberta de princípios a partir de dados certos e objetivos obtidos por utilização generalizada do ‘método científico’.

De entre as conclusões da investigação no campo das ideias intuitivas dos alunos, Harlen (2006) põe em relevo os seguintes aspetos:

- os alunos não esperam, de fato, pela escola para terem explicações sobre as coisas e os fenómenos que as rodeiam. Eles têm ideias acerca daquilo que se passa à sua volta;

- as ideias dos alunos são geralmente diferentes das ideias e da visão científica sobre os fenómenos;

- as ideias dos alunos não são apenas produto da sua fantasia ou imaginação, mas resultam de um processo de raciocínio sobre a sua experiência;

- não sendo meras fantasias, erros ou desvios, e possuindo, pelo contrário, uma certa lógica, tais ideias revelam-se extremamente resistentes à mudança;

- verifica-se que os alunos são mais recetivos a adaptar as suas ideias anteriores de modo a acomodar as novas, do que a mudá-las;

- há uma coincidência considerável nas constatações feitas através da investigação em diferentes partes do mundo, relativamente à natureza e caraterísticas dessas ‘ideias espontâneas’ dos alunos.

Estas constatações acerca das ideias intuitivas dos alunos estão em perfeita consonância com as correntes atuais da epistemologia, segundo as quais é enganoso pensar-se que o conhecimento científico possa resultar da observação espontânea dos fenómenos, ou seja, das impressões sensoriais. Toda a perceção já é condicionada pelos dados do conhecimento anterior. Não há observação que não dependa do conhecimento prévio; não há observação que não esteja dependente da teoria. Como Marques e Praia (1991) realçam, na linha de K. Popper, as observações têm que ser dirigidas por hipóteses, e a descoberta científica consiste num processo lógico e informado teoricamente e não na procura de algo, sem se definir primeiro aquilo que se espera vir a encontrar. Nesta perspetiva hipotético-dedutiva, as “teorias não são elaboradas por indução, mas por construção do espirito humano, cuja ligação com o mundo da experimentação nos chega através dos processos pelos quais são testadas e avaliadas” (Marques & Praia, 1991, p. 1).

Do ponto de vista do ensino-aprendizagem das ciências, a metáfora do aluno como ‘pequeno cientista’, bem como a ‘aprendizagem por descoberta’ falham filosoficamente por ignorarem a influência das concepções alternativas das crianças (Marques & Praia, 1991). A aprendizagem não é, pois, um processo de incorporação pelo aluno de ideias do exterior, mas antes um processo de reestruturação de ideias anteriores para aceder a outras novas, com maior poder de explicação do mundo.

Um dos papéis mais importantes da educação em ciências é, justamente, o de alterar, de não deixar permanecer por muito tempo essas concepções intuitivas que se instalam no pensamento do aluno. Para isso, não basta alargar o âmbito da experiência dos alunos, em quaisquer circunstâncias, é necessário conhecer as suas ideias prévias para confrontar com fatos e experiências que contrariam a sua visão e, simultaneamente, prepará-los para prestarem atenção à evidência, mesmo que, e, sobretudo ela não se ajuste à sua perspetiva das coisas (Harlen, 2006).

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