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Capítulo 6 – Cabo Verde, um País marcado pela Migração e pela Diversidade

6.3 As Marcas da emigração na literatura caboverdiana

A situação literária dos países africanos de expressão portuguesa não evoluiu da mesma forma em todas as ex-colónias pois cada literatura tem origem num contexto sociocultural próprio e com características bem específicas. Além do mais, as colónias encontravam-se distantes umas das outras, em contextos geográficos em nada parecidos. Daí o facto da luta pela sobrevivência não se assentar em bases exatamente iguais. Havia uma certa especificidade no modo de viver, de pensar, de agir e de lutar das populações, em alguns casos entregues a sua própria sorte e com parcos recursos económicos. Por outro lado, houve ainda o fenómeno da luta armada no terreno, mesmo depois das independências, fenómeno que não aconteceu em todos os territórios.

No caso de Cabo Verde, quase toda a produção literária deve-se aos caboverdianos, com uma literatura colonial menos difundida do que nos outros países de expressão portuguesa. Esta literatura traz quase sempre como pano de fundo o mar e a natureza agreste, responsáveis em grande medida pelo sofrimento do povo (dos que vão e dos que ficam), pelo seu isolamento, pelas partidas, pelas saudades, pela tristeza nas ilhas, mas também é garantia do sustento do quotidiano. O mar é prisão e liberdade. Ao mesmo tempo que prende o povo nas ilhas, ajuda-o a libertar-se para longe. Conforme escreveu Eugénio Tavares, um dos renomados Pré-Claridosos caboverdianos,16

16 Os três vultos das letras e da cultura tradicional cabo-verdianas considerados pioneiros na senda literária

O mar, aqui, nesta pequena ilha [Brava], é o nosso pai e a nossa mãe. E o campo largo onde vamos colher o sustento das nossas casas, o futuro dos nossos filhos, e a tranquila felicidade das nossas mulheres. Sem o mar a nossa miséria não teria equiparência, dá-nos o pão, dá-nos a alegria. É verdade que às vezes apunhala-nos o coração: quantos bravos marinheiros nos não tem levado o mar, que é a força do nosso coração? (...) O mar parece que se sente com o direito de nos matar às vezes, porque, afinal, é ele quem dá vida sempre àqueles entes que adoramos.

(in Monteiro, 1999: 100)

Entrando no período dos Claridosos,17 encontramos outros poetas/escritores também

preocupados com os problemas do seu povo que acabavam sempre por conduzir à emigração. Jorge Barbosa (1941), no seu poema intitulado Poema do Mar, refere a “Este

convite de toda a hora / que o Mar nos faz para a evasão! / este desejo de querer partir / e ter que ficar!” Nesse período aparece também Baltasar Lopes (1947) , com o destacado

romance Chiquinho, a dar-nos a conhecer não apenas o drama da emigração, nem sempre bem-sucedida, mas também o reverso da medalha, ou seja, o regresso. De igual forma o romance Chuva Braba de Manuel Lopes (1962) vai na linha da perspetiva defendida por Baltasar Lopes, mas acrescenta que “em Cabo Verde há dois problemas importantes que comandam e engendram todos os outr os: a chuva e o Porto Grande” (1959: 18). Na novelística de Manuel Lopes aparece bem vincada a dicotomia vivida pelo povo das ilhas perante o dilema do “querer partir, mas ter que ficar” (ou o inverso, querer ficar, mas ter

que partir), a que a corrente literária dessa época convencionou apelidar de evasionismo.

No período Pós-Claridoso (a partir de 1960), muitos dos escritores/poetas e músicos caboverdianos fazem alusão ao tema da emigração nas suas obras. Gabriel Mariano (n.d.) é exemplo disso com o seu conto Vida e Morte de João Cabafume em que o protagonista (João Cabafume) preferiu morrer pobre, mas livre , na sua terra a ir contratado para as roças de S. Tomé. Nessa geração aparecem ainda nomes como Nuno Miranda, Aguinaldo Fonseca, Ovídio Martins, Arnaldo França, Guilherme Rocheteau, Tomaz Martins, Onésimo Silveira, Corsino Fortes, Terêncio Anahory, Oswaldo Osório, Mário Fonseca, Arménio Vieira, Jorge Miranda Alfama, só para citar alguns, que versaram sobre os mais

17 Claridade é uma revista literária e cultural surgida em 1936 na cidade do Mindelo, Cabo Verde, e que está

no centro de um movimento de emancipação cultural, social e política da sociedade cabo-verdiana. Os seus responsáveis foram Manuel Lopes, Baltasar Lopes da Silva (que usou o pseudónimo poético de Osvaldo Alcântara) e Jorge Barbosa, respetivamente oriundos da ilha de São Vicente, da ilha de São Nicolau e da ilha de Santiago.

diversos temas do quotidiano caboverdiano: o sofrimento, a emigração, a partida, a saudade, a chuva, a seca, a fome, o milho, a esperança, de entre outros.

Na literatura contemporânea encontramos, por exemplo, Corsino Fortes, Manuel Veiga, Carlota de Barros a versar sobre um tema que faz parte indissociável da história da vida dos caboverdianos – o milho. Este cereal reveste-se de uma importância incomensurável na vida do caboverdiano enquanto meio de sobrevivência, base principal do seu sustento, fonte da sua esperança ou do seu desespero. Citando Manuel Veiga (2007: 10), “[…] esse cereal representa o alimento e o sofrimento”. “[…] o milho inaugura a faina agrícola com o seu típico ciclo de “Azagua”, mas também o início de uma caminhada que só de raro em raro transforma a partida em chegada, o sonho em realidade”. Todos os anos, na época das águas, com chuva ou sem chuva, o caboverdiano lá vai, de enxada na mão, colocar a semente do milho debaixo da terra. Se chover, poderá haver colheita, se não chover, restará sempre a esperança de dias melhores.

E por último citaríamos Jorge Figueiredo Ramos que em 2013 tornou público o seu romance intitulado “Portal de Memórias” em que o autor consegue, de uma forma engenhosa, fazer uma simbiose bem conciliada entre aspetos históricos, sociológicos, antropológicos, económicos e linguísticos da sociedade caboverdiana dentro e fora das ilhas, criando para o leitor um enredo tão rico e diversificado, alicerçado numa vasta experiência e vivência adquiridas através das estradas da emigração. A obra revela uma abordagem multidisciplinar e transversal da sociedade caboverdiana numa perspetiva diacrónica e multiespacial, onde são contemplados aspetos sociais, económicos, educativos, culturais, demográficos e políticos, operando tanto a nível local como nacional e internacional. Constata-se que este autor recorre-se com sucesso à técnica de história de

vida para construir a sua narrativa. E segundo a professora e investigadora Luísa Aires

(2011: 41), “do ponto de vista educativo, a utilização desta técnica de recurso à história de

vida é muito importante porque permite obter e divulgar informações muito ricas e

diversificadas acerca dos ciclos vitais das pessoas ou das sociedades em estudo”.

Resumindo diríamos que, muito embora o objetivo comum a todos os autores caboverdianos parece ter sido representar, problematizar, denunciar a dramática existência das populações e o seu sonho por uma vida melhor, cada obra revela aspetos da personalidade, do temperamento e da vivência pessoal do respetivo autor. Mas é bom ter

sempre presente que qualquer relato histórico ou pesquisa científica sobre a formação e evolução da sociedade caboverdiana que não tenha em conta a importância do mar, da

emigração, das chuvas, das secas, do milho, do pilão (para se fazer a cachupa, a papa, o cuscus, a camoca) na vida do povo das ilhas se transforma num simples relato ao qual

CAPÍTULO 7 – Cabo Verde e as políticas educativas adotadas em