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Capítulo 3 – O Professor Intercultural como Mediador de Aprendizagem em Contextos

3.1 Introdução

Educação é um tema que nunca se esgota. Seja pela sua importância, pela sua abrangência, pela diversidade de atores envolvidos no processo educativo, pela quantidade de discursos produzidos sobre e/ou à volta do tema, seja ainda pelo tempo a ele dedicado na busca e formulação de teorias, abordagens, reflexões e práticas didático-pedagógicas mais consentâneas com o sucesso do processo ensino aprendizagem, muito se tem dito, escrito e procurado fazer nesse domínio ao longo dos tempos. Mas, como já foi referido, a problemática da educação, tanto a nível local como nacional, transnacional ou global, não pode ser devidamente analisada sem estar inserida nos diferentes contextos históricos da humanidade. São esses contextos que nos proporcionam os ingredientes necessários à análise e compreensão dos fenómenos, das transformações económicas, sociais, culturais e políticas que vão acontecendo nas sociedades e que vão definindo novos desafios , e exigindo novas teorizações e conceptualizações sobre a educação e a prática da docência nas diversas conjunturas e nos diferentes momentos históricos. Segundo Candau (2008 : 50), “vivemos em sociedades multiculturais. Podemos afirmar que as configurações multiculturais dependem de cada contexto histórico, político e sociocultural”, que por sua vez vão determinando as linhas de atuação e de reflexão nos diferentes contextos da vida real em que os indivíduos se situam.

Na verdade, desde os tempos antigos que a educação revelou ser a trave mestra de sustentação de uma sociedade e o professor, o pilar de sustentação dessa trave. Grandes filósofos e pensadores da antiguidade, como os gregos Sócrates, Platão, Aristóteles, nos quiseram demonstrar essa dimensão da educação através das suas escolas, ao evidenciarem a mestria e a habilidade com que os professores/pensadores de então discutiam as questões mais elementares da natureza humana. Procuravam, dessa forma, entender e explicar os fenómenos que se passavam à sua volta através de uma perspetiva racional, numa tentativa de encontrar explicações lógicas e coerentes sobre “o universo e as indagações do espírito humano” (UNOESC, 2006: 15). Inquestionável será sempre o incomensurável contributo prestado por esses homens de letras ao mundo e o lugar que a história lhes reservou não apenas pelo seu destaque nas diversas áreas do conhecimento e do saber, mas ainda pela forma como conseguiam mobilizar pessoas à sua volta para

“beber” da sua sabedoria e extasiar com a forma crítica, reflexiva e indagadora como encaravam o universo e a vida.

O problema, porém, talvez tenha residido no facto de esses grandes mestres da antiguidade terem sido sempre vistos como seres inquestionáveis cujas “ideias” e “teorizações” eram tidas como verdades insofismáveis que não careciam de ser comprovadas. Ainda nos dias de hoje, quando se refere a qualquer desses nomes sonantes da antiguidade clássica, mesmo se interrogando sobre alguma das suas teorias ou posições, é sempre com o singular respeito e admiração que o nome impõe. Querendo com isso dizer que, durante muito tempo, os modelos conceptuais, tanto teóricos como práticos, utilizados na área da pedagogia e da didática do ensino, se baseavam nos fundamentos do ensino clássico, tendo o professor como o centro de todo o processo. O professor era o mestre, aquele cujas verdades eram tidas como leis irrefutáveis, o detentor do conhecimento por excelência, de quem o aluno não podia duvidar em circunstância alguma. E esta foi uma situação que perdurou ainda anos adentro em pleno século XX.

Todavia, os acontecimentos que estiveram na origem das grandes transformações sociais ocorridas nas últimas décadas à escala mundial vieram apontar para a necessidade de novos conceitos e novos paradigmas na relação entre o homem e a sociedade a todos os níveis: educativo, político, económico, social, cultural, ambiental, entre outros. Começou- se a despertar para o facto de que a humanidade não é composta por seres homogéneos ou idênticos na sua forma de ser ou de pensar. Começou-se a ganhar a consciência da heterogeneidade do ser humano, de que o mundo é formado por pessoas diferentes, com necessidades, perspetivas, desejos, crenças, hábitos e costumes, filosofias e idiossincrasias diferentes, que precisam ser vistas e tratadas de forma diferente, não para as excluir, mas numa perspetiva de aproximação e de integração. Por outras palavras, não vivemos num mundo monocultural nem monoétnico. Esse mundo nunca passou de uma visão utópica e distorcida da realidade. O mundo real é formado por um mosaico muito diversificado de pessoas de etnias, línguas, culturas, religiões muito diferentes, que circunstâncias diversas levaram a habitar espaços diferentes ou a coabitar os mesmos espaços, mas que precisam aprender a se conhecer, a conviver, a interagir e a partilhar o sentimento de pertença da sua nova comunidade sociocultural, independentemente das diferenças que possam existir na sua origem ou forma de pensar. Consequentemente, os contextos de aprendizagem passaram a ser o reflexo da nova realidade sociocultural existente fora dos muros da

escola, onde os aprendentes já não se limitam a ser seres passivos, conformistas, obedientes e acríticos. Querem ter vez e voz, querem ser reconhecidos e respeitados, querem questionar, opinar e participar. Esses novos contextos vieram determinar que a educação passasse a ser vista e encarada numa perspetiva intercultural para a promoção do reconhecimento do outro, do diálogo entre os diferentes grupos socioculturais, uma educação “orientada à construção de uma sociedade democrática, plural, humana, que articule políticas de igualdade com políticas de identidade” (Candau, 2008: 54). Igualmente importante é que esse tipo de educação, a educação intercultural, tenha ainda como objetivo “a formação para uma cidadania aberta e interativa, capaz de reconhecer as assimetrias de poder entre os diferentes grupos culturais e de trabalhar os conflitos e promover relações solidárias” (ibid.) entre os seus membros. Surgiam assim novos desafios e novas demandas a que os decisores políticos e educativos tinham de atender e responder com políticas e ações de formação docente que visem “a transformação da escola em um espaço de cidadania para [todos os] alunos”, independentemente da sua etnia, género, classe social ou padrões culturais (Canen, 2001: 224).

Tinha chegado a hora em que os fenómenos soc iais exigiam ser vistos, investigados, observados, analisados e equacionados sob perspetivas e dimensões multi/interculturais , visando a coesão e estabilidade dos novos espaços sociológicos. Aires (2011 : 7) afirma que no campo da investigação científica, “o processo de mudança antes mencionado observa-se nas concepções que filósofos, antropólogos e sociólogos têm do mundo. Revêm-se teorias, concepções, discursos, metodologias, na procura de um paradigma que dê resposta às [novas] questões ontológicas [...]”. No campo da educação impunha-se igualmente uma mudança urgente de paradigmas que tivesse em conta as mudanç as ocorridas e as novas configurações sociais presentes nas comunidades educativas, ou seja, uma outra visão do conceito de educação.

A educação moderna não podia continuar a ser encarada sob um prisma redutor, como um processo em que os principais objetivos de base continuassem a ser ensinar a ler, a escrever e a fazer contas, destinado a um público abstrato e descaraterizado, sem nenhuma preocupação com a identidade ou referência dos seus membros (Canen, 1997: 91). As composições da sociedade contemporânea passaram a exigir que a educação seja pensada, programada e efetivada tendo em atenção a pessoa humana a que se destina e que seja ela o foco de todas as preocupações. Esta nova visão da educação exige que seja repensado o

processo educativo tendo no centro o aprendente real, não o idealizado, inserido num contexto concreto (Alves e Backes, n.d., p. 9) e portador de caraterísticas pessoais e individuais bem definidas: idade, origem, situação socioeconómica, história, modo de vida, crenças, hábitos e costumes, língua, religião, reconhecendo na diferença cultural e identitária dos indivíduos uma grande riqueza de diversidade que deve ser potenciada e não ostracizada. O aprendente precisa ser visto não como um ser isolado, mas como um indivíduo portador de referências históricas, culturais e identitárias que o coloca dentro de um determinado espaço ou grupo étnico-social e que estarão na base de atitudes e comportamentos que irão nortear a sua conduta em sociedade. Esta realidade remete, portanto, à necessidade de uma educação com rosto humano e destinada a seres humanos identificáveis e concretos e inseridos num espaço e num tempo partilhados. É a educação para a diversidade.

A respeito da importância da diversidade cultural existente nas sociedades contemporâneas, UNESCO World Report Investing in Cultural Diversity and Intercultural Dialogue (2009) faz lembrar que,

[…] Trata-se de um novo tipo de literacia, a par com a importância das habilidades de leitura, escrita ou matemática: a literacia cultural tornou-se a tábua de salvação para o mundo de hoje, um recurso fundamental para a capitalização dos vários locais de proveniência da educação (desde a família, passando pelas tradições culturais e chegando aos meios de comunicação social, antigos e novos, para atividades de grupo e informais), uma ferramenta indispensável para se contornar os choques da ignorância que se fazem sentir.1

(in UNESCO, 2013: 5)

Estamos, assim, perante uma nova conceptualização da educação que transcende as fronteiras de uma educação puramente formal e redutora para entrar no domínio de uma educação abrangente e integradora. Uma educação que seja capaz de satisfazer os anseios do cidadão local e de alcançar o cidadão global, fazendo-o aproximar-se dos seus pares de tal forma que a afirmação, “globalização reduz o tamanho do mundo, promovendo o contacto entre uma vasta gama de culturas de forma jamais vista” (UNESCO, 2013: 7), possa transformar-se em realidade comprovada em vez de premissa questionada. Faz-se assim mister uma educação virada não apenas para a aprendizagem daqueles que se encontram numa sala de aula, mas também para a promoção de uma cultura de diálogo

intercultural e interespacial, facilitando a aproximação de milhões de “cibercidadãos, especialmente homens e mulheres jovens com oportunidades inimagináveis para conversas globa is” (ibid., p. 5). Mas para que tal aconteça, é necessário desenvolver nos aprendentes, além da capacidade de saber ler, escrever e fazer contas, competências interculturais que favoreçam o estabelecimento e a fluidez do diálogo e da compreensão humana independentemente das caraterísticas culturais, do contexto geo-espacial ou da situação sociopolítica em que os envolvidos se encontrem. São igualmente necessárias ferramentas tecnológicas de acesso a essas competências. É a chama da literacia cultural defendida pela UNESCO (2013: 5).

Se no passado o nível de analfabetismo era avaliado em termos do grau de (in)capacidade de um indivíduo em saber ler ou escrever, nos tempos que correm essa avaliação passou a ter em conta outras variáveis, chegando mesmo a adicionar o conceito de analfabetismo

cultural e de analfabetismo tecnológico na literacia estimada de um indivíduo. Assim, ao

professor da educação contemporânea passou-se também a exigir outras competências e outras valências que possam ajudá-lo a responder satisfatoriamente às expetativas que a sociedade nele deposita e a gerir com competência os problemas de uma sociedade globalmente multicultural e diversa, que necessita de uma educação intercultural adequada, para que os seus cidadãos possam nela funcionar de forma integral, coesa e responsável.