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Capítulo 7 – Cabo Verde e as políticas educativas adotadas em dois períodos distintos da

7.1 Breve caracterização da educação no período colonial

O objetivo aqui não é descrever o percurso histórico do surgimento e evolução do ensino nas ilhas de Cabo Verde, pois isso já constitui matéria de pesquisa de um outro trabalho de investigação no âmbito de um mestrado. Neste ponto pretendemos tão-somente descobrir pistas que nos conduzam à identificação do modelo ou modelos de ensino utilizados em Cabo Verde no período colonial de forma a podermos estabelecer alguma interligação com o modelo ou modelos utilizados no pós-independência.

Na verdade, nessa altura não se pode falar de sistema de ensino caboverdiano uma vez que Cabo Verde, tal como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, S. Tomé e Príncipe ou Timor faziam parte do território português (do além-mar), o que significa que não existiam sistemas de ensino diferenciados em função da parcela geográfica em questão. Na perspetiva colonial tratava-se de uma nação uno e indivisível e todas as normas, leis, medidas eram aplicáveis de igual forma, independentemente do contexto geográfico ou da sua distância em relação à metrópole. E no tocante à educação não era diferente. Resultava, no entanto, que, seguindo esse princípio de unicidade nacional, as decisões político-administrativas revelavam-se desfasadas da realidade e das necessidades das províncias ultramarinas uma vez que não eram concebidas a pensar nas especificidades de cada contexto territorial, mas num todo que de homogéneo nada trazia.

No caso de Cabo Verde, vários autores e investigadores referem o grande desfasamento existente entre os planos curriculares concebidos para Portugal, mas utilizados de igual forma nas províncias ultramarinas, sendo os conteúdos completamente alheios à realidade dos alunos africanos. Os textos de Língua Portuguesa, por exemplo, baseados em factos históricos, culturais e vivenciais portugueses, pareciam mais histórias de ficção, tal era o grau de distanciamento em relação ao quotidiano dos aprendentes, acrescido do facto de as crianças caboverdianas só terem o primeiro contacto com a língua portuguesa a partir dos sete anos, quando ingressavam na escola primária. Portanto, já partiam em posição de muita desvantagem (social, económica, linguística, escolar) em relação aos alunos portugueses ou naturais de outras regiões do ultramar.

Na opinião expressa ao tempo por Nuno Miranda (1959: 91), “não interessam ao nosso caso as edificações de educação e ensino estèrilmente construídas, divorciadas de nós

próprios, e em que nos ensinem, por exemplo, a descrever o pinheiro e o sobreiro, o trigo e a rã, se o que enforma a nossa realidade é o milho maís, cuja presença é comida de povo e se assinala importantemente desde as horas recuadas de povoamento luso-negro”. E acrescenta que, “se na banana, no café e nas pozolanas é que se traduz o nosso escasso património de bens materiais de exportação; se o tubarão, o atum e a “moreia”, marcando presença nos mares ilhéus, é que podem incrementar as pescarias de repercussão na balança da nossa economia”, é nessa realidade que devem assentar-se os fundamentos da nossa aprendizagem. De outra forma, a educação proporcionada aos caboverdianos “não cola à epiderme de jambé dourado que rodeia o mundo em que vivemos nas ilhas” (ibid.).

Na mesma época, Jorge Dias (1959), prefaciador do Colóquios Caboverdianos, Nº 22,18

considera que “o cabo-verdiano constitui o caso mais perfeito de cultura luso-tropical e, dada a sua mobilidade, é um excelente veículo da cultura portuguesa na Guiné, em Angola e em S. Tomé ou Moçambique” (p. XII). No entanto, o mesmo autor, corroborando a tese de Nuno Miranda (1959: 90), é de opinião que essa qualidade de difusor de cultura está altamente prejudicada com o aumento da taxa de analfabetismo a que urge dar combate. Isso porque, “a par da insuficiência do ensino reconhece-se que este não satisfaz as necessidades locais, pois o sistema de livro único não fornece às crianças aquele mínimo de textos que se relacionem com o mundo de experiências vividas; desta maneira o ensino é abstracto e falho de interesse” (Dias, 1959: XII). Este facto acentua o reconhecimento da necessidade de se “intensificar e melhorar o ensino da criança cabo-verdiana, no sentido de terminar com o analfabetismo e valorizar as gerações futuras” (p. XIII). João Lopes Filho (1996: 207) também aponta o facto de os livros escolares utilizados na época transmitirem exclusivamente valores da cultura europeia, tendo o português como única língua de ensino, “o que produzia um verdadeiro choque nas crianças cabo-verdianas que logo nos primeiros contactos com a escola eram obrigadas a aprender apenas o português em detrimento do crioulo, sua língua materna e aquela que a grande maioria utiliza no quotidiano”. Pelo que Miranda (1959: 91) complementa dizendo que “o ensino em Cabo Verde, com seus sistemas, seus conteúdos e seus propósitos, deve ser antes de tudo um

18 Colóquios, revista científica da época contendo artigos/ensaios sobre os mais diversos temas de interesse,

alusivos às províncias ultramarinas , em que autores da África lusófona e portugueses aproveitavam o espaço para debate, troca e partilha de ideias, e a que Nuno Miranda (1959, p. 90) apelidou de “corporação de convívio e amizade”. Sabe-se que até o ano de 1959 foram publicados 22 Colóquios, sob a iniciativa da Junta de Investigações do Ultramar e coordenação do Centro de Estudos Políticos e Sociais , mas

instrumento vitalizante que se não abstraia das peculiaridades circunjacentes ao meio em que a refina da criança da nossa terra encontra estruturação”.

Mesmo a nível do ensino secundário, a partir da criação do Liceu Nacional de Cabo Verde em 1917, em substituição do Seminário-Liceu de S. Nicolau, os planos curriculares eram os mesmos que em Portugal. A instrução nas províncias ultramarinas seguia todas as políticas educativas emanadas da administração central e todas as reformas levadas a cabo no reino eram igualmente aplicadas nas províncias, embora com algum desfasamento temporal. Conforme atesta Brito-Semedo (2006: 103), nos séculos XVIII e XIX o regime da Monarquia Portuguesa foi marcado por períodos de mudanças estruturais profundas, abarcando igualmente o sistema de ensino que sofreu reformas sucessivas consideráveis. Entre essas reformas, aparecem apontadas como as mais marcantes as reformas de Marquês de Pombal (1759), de Passos Manuel (1836), de Costa Cabral (1844) e de Fontes Pereira de Melo (1860). Mas foram, no entanto, “as reformas levadas a cabo nos anos oitocentos, mais propriamente no período do Novo Regime Liberal implantado em 1820, que atestam um marcado esforço para difundir os benefícios da instrução, em especial no sector das primeiras letras, e que maiores repercussões tiveram em Cabo Verde” (ibid.).

Seja como for, alguns autores concluem que o modelo de ensino utilizado tanto no Reino como nas Províncias Ultramar inas, independentemente da sua diversidade cultural, necessidades socioeducativas ou contextos de aprendizagem, era o modelo monocultural,

monolingue, baseado em planos curriculares desgarrados da realidade dos alunos

(ultramarinos), concebidos para alunos homogéneos e idealizados. O modelo era alicerçado nas macropolíticas de matriz colonial que não se centravam em aprendentes específicos em função do seu espaço ou cultura, mas destinadas a uma multiplicidade de contextos de aprendizagem tanto em termos geográficos como socioculturais (Dias, 1959; Miranda, 1959; Lopes Filho, 1996). No entanto, importa aqui realçar alguns aspetos, a nosso ver, de particular importância: 1) A preocupação demonstrada pelas autoridades coloniais em relação à formação de professores, mesmo sendo em número insuficiente. Nesse sentido, Miranda (1959: 92) afirma que, “quanto à formação de professores primários do nosso ensino, ao par dos poucos que se deslocam da Metrópole, juntam-se os jovens cabo-verdianos que, tomando o rumo da Europa, concluem sua formação nos centros escolares de Braga ou de Castelo Branco, em Lisboa ou em Coimbra”. 2) O facto de a carência de professores no ensino secundário não traduzir ação deliberada ou

discriminatória por parte da administração central em relação às ilhas de Cabo Verde: “quanto à falta de professores nos liceus e escola técnica, pensamos que seja um mal extensivo a todos os estabelecimentos de ensino africano [...]”, (ibid.). 3) A evolução do parque escolar, apesar de todos os condicionalismos que pairavam sobre o arquipélago : “no momento actual [1959] Cabo Verde dispõe de uma aparelhagem educacional repartida por dois liceus [na Praia funcionava uma Secção do Liceu Gil Eanes em S. Vicente, apesar de ainda não ser autónoma], subsidiando estudantes nas universidades da Metrópole, uma escola técnica, uma escola agrícola funcionando no posto experimental de S. Jorge dos Órgãos, uma escola de enfermagem [na Praia], uma rede de postos de ensino primário espalhados pelas ilhas do arquipélago” (Miranda, 1959, p. 90). 4) O facto de, apesar de toda a adversidade, o caboverdiano ter conseguido aprender e evoluir intelectualmente a ponto de desenvolver uma cultura literária própria que lhe permitiu alcançar a sua emancipação cultural muito antes da emancipação política, conforme advogam muitos investiga dores, e de ter conseguido transportar a sua cultura para outros espaços territoriais de influência portuguesa (na época), o que lhe valeu o título de “portador de cultura” (cf. Miranda, 1959). Isso atesta, de alguma forma, evidenciado interesse nessa matéria por parte das autoridades colonizadoras mesmo não dando caba l satisfação às necessidades específicas das ilhas.