• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2 – Educação Intercultural, um Imperativo da Globalização

2.2 Formação de professores para contextos de diversidade

2.2.2 Modelos de formação de professores

É evidente que formação por si só não garante qualidade no desempenho do docente. Para um desempenho eficaz, o professor de hoje e do futuro precisa mudar de atitudes e de comportamento para que a sociedade possa ver e acreditar nas suas ações e não nas suas intenções. Professores, formadores e educadores têm de consciencializar-se de que é imperioso que a escola de hoje supere o modelo clássico voltado apenas para a instrução. Na conceção de Paulo Freire (1996), “isso significa fazer nascer da escola tradicional um novo conceito de escola à altura do seu tempo e do desenvolvimento tecnológico que se opera à sua volta”. Os tempos mudaram e a escola deve ser uma representante do seu tempo, deixando de ser uma escola simplesmente instrutiva para passar a ser uma escola formadora e mais preocupada com a formação holística do indivíduo, visando a construção de um presente e de um futuro melhores para a Humanidade.

Não existe, no entanto, uniformidade de paradigmas quanto ao modelo defendido pelos vários pesquisadores ao longo dos tempos em matéria de formação de professores visando a sua capacitação profissional, seja ela em exercício, contínua ou especializada, razão porque têm sido propostos os mais diversos modelos de formação nesse domínio: o modelo baseado na ação reflexiva do professor (professor reflexivo), tendo em Alarcão (1996) e Perrenoud (1999) alguns dos mais conhecidos defensores; o modelo baseado na

ação investigativa (professor investigador), tendo igualmente em Alarcão (2001) um dos

acérrimos defensores; o modelo baseado no desenvolvimento profissional contínuo dos

professores, defendido por Day (2001); o modelo assente no desenvolvimento integrado

das habilidades – habilidade cognitiva, habilidade social, habilidade emocional, elaborado por Chalita (2001); o modelo de formação que encara o conhecimento como um

processo de construção e reconstrução permanente em oposição à teoria de transmissão

do conhecimento, conforme defendido por Leite (2005), entre tantas outras propostas.

Muitos desses investigadores se inspiraram no pensamento e teorizações de Dewey (1910) e Schön (1983, 1987, 1988), amantes do modelo reflexivo, e as suas conceptualizações refletem essa tendência. Por exemplo, Alarcão (1996: 11) refere a influência exercida por Donald Schön através da literatura por ele produzida nos anos de 1980 sobre a problemática da formação de professores, tendo o autor defendido desde então que “a formação do futuro profissional inclua uma forte componente de reflexão a partir de

situações práticas reais”. Esta corrente de pensamento critica o modelo de formação assente na transferência pura e simples dos conhecimentos científicos adquiridos na sala de aula para situações-problema do quotidiano escolar, esperando neles encontrar receitas mágicas para todos os problemas práticos com que depara o profissional no exercício da sua profissão. A isso Schön apelida de “racionalismo técnico” que, na sua opinião, “se traduz num modelo de aplicação da ciência aos problemas concretos da prática através da ciência aplicada” (ibid.). Para inverter esta tendência , o autor aconselha um modelo de formação assente na “reflexão a partir da ação”, onde se destaca a componente prática da aplicação dos conhecimentos, aliada à sensibilidade e criatividade do profissional, o que lhe vai possibilitar a aquisição de “um saber-fazer sólido, teórico e prático, inteligente e criativo que permite [...] agir em contextos instáveis, indeterminados e complexos [...]” (Alarcão, 1996: 13), como deve ser o caso de contextos de aprendizagem multiculturais e diversos.

Alarcão (1996) corrobora a opinião de Schön quando diz que os profissionais recém- formados não estão a corresponder às expetativas neles depositadas pela sociedade por culpa da formação insipiente que lhes é proporcionada pela própria universidade ou instituições de formação onde “os formandos são normalmente ensinados a tomar decisões que visam a aplicação dos conhecimentos científicos numa perspetiva de valorização da ciência aplicada, como se esta constituísse a resposta para todos os problemas da vida real” (p. 13). O que acontece é que mais tarde, na prática, esses profissionais vão-se deparar com situações perante as quais se revelam completamente impotentes e inaptos porque as estratégias que trazem na bagagem teórica, por mais sofisticadas que sejam, não os prepararam para a vida prática. Torna-se assim imperiosa a necessidade de uma forte componente prática na formação de professores e educadores de forma a prepará -los para servirem de mediadores ativos, participativos, atuantes e dialogantes no processo de construção do conhecimento dos seus alunos.

Por conseguinte, não causará certamente estranheza o facto de Alarcão ser aqui apontada como defensora de um modelo de formação contínua para professores baseado na “reflexão e na ação”, à semelhança daquilo que defendem Schön e Dewey. Esta autora comunga do pensamento epistemológico de Schön (1983, 1987, 1988) e Dewey (1910) em matéria de um modelo de formação docente eficaz e com eles revela uma profunda convergência de ideias e estratégias (Alarcão, 1996: 25-29; 179), sem, no entanto, abdicar

da sua própria capacidade de reflexão crítica sobre esta problemática. Para Alarcão (1996), o professor deve ser um profissional reflexivo. Acredita que “os professores desempenham um importante papel na produção e estruturação do conhecimento pedagógico porque refletem, de uma forma situada, na e sobre a interação que se gera entre o conhecimento científico [...] e a sua aquisição pelo aluno [...]”, bem como entre a pessoa do professor e a do aluno, entre a escola e a sociedade em geral (p. 176).

Para isso, o professor precisa refletir, refletir muito e refletir sempre, sobre si mesmo, as suas ações, as suas opções, as suas práticas, a sua responsabilidade social. A responsabilidade social face a atividade que exerce não se compadece nem com o comodismo nem com a displicência. Tem de saber ensinar, educar, gerir, organizar, criar, inovar, incentivar, prevenir, agir. Tem de possuir conhecimentos e saberes. Alarcão (1996 : 179) considera “importante que o professor reflita sobre a sua experiência profissional, a sua atuação educativa, os seus mecanismos de ação, a sua praxis, [...] reflita sobre os fundamentos que o levam a agir, e a agir de uma determinada forma”. Portanto, a sua formação deve caminhar de mãos dadas com essas premissas, capacitando-o a agir corretamente sempre que a situação ou o problema exija uma intervenção rápida e eficaz por parte do docente.

Reforçando a tese de Alarcão, Lalanda e Abrantes (in Alarcão, 1996 : 58) consideram que compete assim ao formador, por um lado, “orientar na conceção de situações experimentais significativas, capazes de fornecerem material para a reflexão”, e por outro lado, “criar nos formandos a disposição para refletirem, criticamente, sobre a forma como ensinam, numa perspetiva de desenvolvimento profissional permanente”. Segundo estas autoras, “é necessário que ser reflexivo constitua uma forma de estar em educação”, e afirmam que, “a ação reflexiva, desencadeada pela problematização da prática, ao pesquisar as soluções lógicas para os problemas que importa resolver, exige aos professores intuição. Mas exige ainda emoção e paixão que animem na adversidade, mas não ceguem perante a realidade, nem gerem impaciência” (p. 58).

Perrenoud (1999) defende igualmente um modelo de formação docente baseado na prática reflexiva para que se possa ajudar a desenvolver nos docentes a sua capacidade de participação crítica, de inovação e de cooperação porque, na opinião do autor, “se os professores não chegam a ser os intelectuais, no sentido estrito do termo, são ao menos os

mediadores e intérpretes ativos das culturas, dos valores e do saber em transformação” (p. 1). Nessa perspetiva, é necessário que um professor seja reflexivo porque “um professor reflexivo aceita fazer parte do problema [...], reflete sobre sua própria relação com o saber, com as pessoas, o poder, as instituições, as tecnologias, o tempo que passa, a cooperação, tanto quanto sobre o modo de superar as limitações [...]” (p. 9). No entanto, Perrenoud (1999) revela um certo ceticismo em relação à vontade de se querer mudar a situação em que se encontra a educação a nível global devido a razões alimentadas por fatores de vária índole. Em primeiro lugar, “a vontade de mudar a escola para adaptá-la a contextos sociais em transformação, ou melhor, democratizar o acesso ao saber, não é bem partilhado e essa vontade frequentemente é frágil e se limita a discursos que não passam à ação” (p. 3). Em segundo lugar, os países com disponibilidade de recursos para operar essas mudanças não se encontram disponíveis para o fazer em termos de políticas educativas concebidas para o setor. Em terceiro lugar, investir na formação e capacitação de professores implica maiores custos para o plano orçamental do país uma vez que professores com maiore s habilitações exigirão certamente um melhor salário, compatível com o seu nível e as suas responsabilidades, bem como melhores condições de trabalho. Contas feitas, muitos países não estarão dispostos a correr esse risco. Muitas outras razões existirão certamente, mas o objetivo não é fazer aqui uma elencagem exaustiva, mas tão-somente introduzir alguns dados para reflexão.

Carlinda Leite (2005: 373) partilha da tese de que as competências profissionais se constroem pela experiência, quando essa experiência tem por base “dinâmicas que ajudem os professores a identificar os problemas com que defrontam, a contextualizá-los e a sobre eles agir”. Partindo desse pressuposto, Leite (2005) propõe um modelo de formação docente que reconheça que o conhecimento deve ser “trabalhado como algo que se constrói e reconstrói permanentemente, fruto da acção individual e colectiva dos sujeitos” (ibid.), rejeitando liminarmente o modelo de formação baseado na transmissão de conhecimentos teóricos cabendo aos futuros professores a responsabilidade de os aplicar na prática. Defende igualmente um modelo baseado na reflexão e na ação.

Para Canen (1997: 95) as sociedades atuais necessitam efetivamente de um modelo de educação diferente que contemple a diversidade cultural e a pluralidade dos seus membros. Na sua ótica, faz-se necessário o desenvolvimento de um “profissional reflexivo” culturalmente comprometido, com capacidade de “problematizar visões de um

mundo limitantes e preconceituosas e que busque, a partir mesmo dos currículos do sistema educacional no qual se insere, promover o desafio a preconceitos e discriminações e valorize a pluralidade cultural em suas atividades [...] de planejamento, execução e avaliação”. Um profissional com capacidade de ação e de intervenção no momento certo.

No entanto, a respeito do modelo baseado na “ação reflexiva” do professor (reflexão na e sobre a ação), conforme defendido por Schön (1983, 1987) e outros investigadores que se lhe seguiram, Christopher Day (2001: 57) aponta como uma das fragilidades o facto de esse modelo não levar em conta “questões de natureza moral, ética, política e instrumental, implícitas no pensamento e na prática quotidiana dos professores”, ficando o ato educativo confinado à esfera da mente, ou seja, da cognição ou da racionalidade. Faz lembrar que “a qualidade do tacto pedagógico [...] dos professores não depende apenas da sua experiência e saber-fazer profissional ou das condições em que trabalham, mas também da sua inteligência emocional” que os ajuda a conhecer, gerir, reconhecer e lidar com emoções próprias e as dos outros ao longo do processo educativo (p. 63). Acrescenta ainda que , “quando a formação não tem em conta as fases do desenvolvimento dos professores, os seus propósitos morais centrais e as suas necessidades de desenvolvimento intelectual e emocional, é pouco provável que contribua para melhorar a sua capacidade [...]” de forma a garantir um ensino de qualidade (p. 213).

Daí o facto de Day (2001: 15) defender um modelo de formação docente assente no

“desenvolvimento profissional contínuo dos professores”, que tenha em devida conta as

componentes pessoais, profissionais, políticas e os contextos de aprendizagem onde exercem a sua atividade docente. O autor advoga que o desenvolvimento da competência profissional de um docente deve passar por uma série de estádios ou níveis na carreira (principiante – principiante avançado – competente – proficiente – e perito) até atingir o patamar em que seja capaz de exercer as suas funções com mestria e qualidade (p. 88). Para este autor, “os professores constituem o maior trunfo da escola” (p. 16) pelo que merecem uma formação adequada e o devido apoio na promoção do seu bem-estar pessoal e desenvolvimento profissional se o objetivo for realmente melhorar a qualidade do ensino e os padrões de aprendizagem.

Chalita (2001: 163) é de opinião que o professor constitui “o grande agente do processo

ser vista como um fator fundamental, não apenas na forma inicial, mas contínua, permanente, ampla, com atualizações e aperfeiçoamentos. Mas defende que essa formação tem de ter em conta as componentes cognitiva, social e emocional, sendo que a

componente emocional é vista como “o grande pilar da educação”, pelo que as outras duas

componentes (cognitiva e social) não podem ser desenvolvidas sem que a emoção seja trabalhada, pois não se pode separar “o ser humano profissional do ser humano pessoal” (ibid.). E considera que, para o sucesso da educação, “a solução está no afeto” (título/p. 264). É o que defende também Christopher Day (2001: 63) quando realça a importância da “inteligência emocional” do professor como chave para o seu sucesso, ou a sua “paixão pelo ensino” (Day, 2004). Essa vertente humana está a ser cada vez mais enfatizada como fator de crucial importância para o sucesso da relação professor-aluno-aprendizagem e outros autores como Lalanda e Abrantes (in Alarcão, 1996: 58), Ramsey (1997: 141), Trigueiros (2010: 188), Cardoso (2013: 79), entre outros, são apologistas desta tese.

Pessoalmente, somos de opinião que os vários modelos defendidos não são antagónicos, mas sim complementares, não descurando nenhum deles o valor da capacidade reflexiva como uma das características fundamentais do bom professor. Nesse sentido, pensamos que uma estratégia possível seria fazer a combinação dos vários modelos apresentados, numa perspetiva eclética, de forma a potenciar o que existe de melhor em cada um e deles tirar o melhor proveito, em benefício da mudança de paradigmas educativos que se pretende alcançar.

A nossa posição se baseia na nossa experiência profissional enquanto professora de formação, de profissão e de carreira e no facto de já termos calcorreado muitos anos (mais de trinta) na estrada da docência. A nossa filosofia é aprender e aprender a aprender sempre, para melhor ensinar. A experiência adquire-se, mas não é estática. É um processo dinâmico, em constante crescimento e aperfeiçoamento. Já defendemos num outro sítio que o bom professor não nasce dos bancos da escola (Trigueiros, 2010). Constrói-se. No convívio com os seus alunos, na busca permanente de soluções para os problemas que enfrenta no dia-a-dia, com as situações que o ensinam a crescer, a desenvolver-se, a amadurecer e a gerir as emoções (a sua inteligência emocional) com a reflexão e a aprendizagem. Idade não pode ser sinónima de caducidade.

Assim, a escola de que aqui falamos necessita de uma profunda refundação que vai desde a mudança de mentalidades, comportamentos e atitudes dos docentes (e não docentes), passando pela sua capacitação didática, pedagógica e tecnológica, a existência e o acesso a recursos educativos condizentes com a era digital, a criação e o fortalecimento de redes digitais de aprendizagem que permitam a interação virtual e a troca e partilha de informações e experiência entre docentes, discentes e cidadãos à escala global para que os professores possam efetivamente merecer o título de construtores do futuro.

E a respeito de construtores do futuro, Mia Couto dizia, na sua oração de sapiência proferida em 2005, aquando da abertura solene do ano letivo no ISCTEM em Moçambique, que,

A pergunta crucial é esta: o que é que nos separa desse futuro que todos queremos? Alguns acreditam que o que falta são mais quadros, mais escolas, mais hospitais. Outros acreditam que precisamos de mais investidores, mais projectos económicos. Tudo isso é necessário, tudo isso é imprescindível. Mas para mim, há uma outra coisa que é ainda mais importante. Essa coisa tem um nome: é uma nova atitude. Se não mudarmos de atitude não conquistaremos uma condição melhor. Poderemos ter mais técnicos, mais hospitais, mais escolas, mas não seremos construtores do futuro.

(Mia Couto, 2005: 3)

Aqui uma nova atitude constitui a palavra-chave. Engloba desde a mudança de mentalidades e comportamentos, passando pelo desenvolvimento de uma série de características atitudinais que Alarcão (2001: 9) considera ser: “espírito aberto, compromisso e perseverança, respeito pela ideia do outro, autoconfiança, capacidade de se sentir questionado, sentido da realidade, espírito de aprendizagem ao longo da vida” aos quais acrescentaríamos , espírito de solidariedade, de fraternidade, de generosidade, de humanismo. É preciso ser-se humano e cultivar o humanismo para sermos melhores como pessoas, como profissionais e como construtores do futuro. A educação de que aqui falamos não se resume a uma determinada faixa etária ou a um determinado nível de escolaridade. É a educação no seu todo, do pré-escolar ao ensino superior, formal e não- formal, em todas as suas vertentes. Portanto, estamos a falar de professores enquanto profissionais da docência que assumiram um compromisso social com os cidadãos e o mundo, independentemente do nível de ensino em que trabalham.

O professor tem de ser visto como um ser ensinante e aprendente, que vai também crescendo e aprendendo com os seus alunos, as suas dúvidas, incertezas, angústias, diferenças pessoais e culturais, questionamentos e saberes que trazem consigo quando aportam um ambiente de aprendizagem. É o “Aprender a Viver Juntos”, um dos quatro pilares da educação consagrados na obra, “Educação: Um Tesouro a Descobrir” (Delors

et al, 1996). Assim sendo, como ser ensinante e aprendente que é, portador de

caraterísticas sociais, culturais e identitárias próprias, o professor necessita de uma atenção especial à sua formação inicial e cont ínua, bem como de acesso a materiais educativos e recursos tecnológicos modernos que lhe permitam ser criativo, inovador, eficiente e eficaz em contextos socioculturais diversos e diferentes do seu. Da atenção dada à uma permanente formação, condições de trabalho adequadas e à atualização do profissional da educação, resulta, em grande medida, a qualidade do ensino que ministra.