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Capítulo 6 – Cabo Verde, um País marcado pela Migração e pela Diversidade

6.1 Caracterização de Cabo Verde

6.1.2 Situação linguística de Cabo Verde

O Crioulo, língua caboverdiana, é considerado, por alguns linguistas, o mais antigo dos crioulos que se formaram no contexto dos Descobrimentos Europeus e associados à escravatura. Isto porque Cabo Verde foi o espaço onde se deu o primeiro encontro de línguas africanas com uma língua europeia, neste caso, o português. Cabo Verde foi povoado basicamente por escravos trazidos de toda a Costa da Guiné, do rio Senegal à

11 Segundo dados disponíveis em http://countrymeters.info/pt/Cape_Verde, consultado em 29-11-2014. 12 Dados publicados pelo INE, Censo 2010, disponível em http://www.ine.cv/dadostats/dados.aspx?d=1,

consultado em 29-11-2014.

13 A importância da emigração na história cabo-verdiana, disponível em

http://www.oplop.uff.br/boletim/154/importancia-da-emigracao-na-historia-cabo-verdiana, consultado em 27-06-2016.

Serra Leoa, onde uma miscelânea de etnias contribuiu para a crioulização da sociedade, conjuntamente com portugueses e povoadores brancos provenientes de outras latitudes.

Segundo alguns autores, uma língua crioula nasce no contexto de uma comunidade que se tornou tão culturalmente diversificada que não é possível adotar para o conjunto dessa comunidade nenhuma das várias línguas naturais faladas por cada falante. Maria Antónia Mota (1996: 524) é um dos autores que afirmam que contextos desse género existiram, por exemplo, durante os descobrimentos portugueses, quando escravos das mais variadas origens eram separados das suas famílias e reunidos aleatoriamente em fazendas e roças coloniais. Essas comunidades não tinham a oportunidade de aprender corretamente a língua do colonizador e desenvolviam um pidgin ou uma língua de contacto, ou seja, um sistema linguístico rudimentar, com palavras baseadas na língua do colonizador, misturadas com as línguas naturais dos colonizados. Esse sistema permitia estabelecer uma comunicação inteligível quer entre os membros da comunidade em questão, quer entre esses e os colonos. Nesse sentido, define-se uma língua crioula como uma língua natural que se distingue das restantes devido a três características essenciais: o seu

processo de formação, a sua relação com a língua de prestígio e algumas particularidades gramaticais.

E foi nesse contexto de povoamento das ilhas de Cabo Verde que nasceu a cultura caboverdiana tendo no Crioulo o elemento que melhor define a identidade cultural do povo das ilhas. Contudo, essa nova língua que emergiu no referido contexto histórico foi- se desdobrando em variantes dialectais, de acordo com os elementos étnicos que estão na base do povoamento da cada uma das ilhas e com o seu grau de miscigenação cultural. Sobre a Língua Caboverdiana diz-nos Manuel Veiga (2002:7) que “é tão mestiça como o nosso povo, é tão sincrética como a nossa cultura”. Portanto, o Crioulo tem uma identidade própria que lhe permite autonomizar-se e ser reconhecido como uma língua específica. É língua materna não só de toda a população residente no Arquipélago, mas também da maioria das comunidades emigradas espalhadas pela Europa e pela América, e pelo mundo (Pereira, 1996: 551).

Mas como já se referiu, e como todas as línguas, a Língua Caboverdiana tem as suas variantes regionais, sociais e estilísticas, particularmente a nível lexical e fonético. A situação de insularidade, os diferentes processos utilizados no povoamento das ilhas, a

proveniência diversa dos povoadores, os diferentes sistemas de propriedade que se impuseram no conjunto do Arquipélago, o isolamento de cada ilha no contexto arquipelágico e as características específicas de cada uma das ilhas trouxeram consigo efeitos que explicam os diferentes comportamentos, hábitos, estilos de vida, tradições, bem como a existência de variantes dialectais, visto que em cada uma das nove ilhas habitadas se desenvolveu uma forma característica de falar. A sociedade é consciente da existência de duas grandes variedades regionais do Crioulo: a de Barlavento (S. Antão, S. Vicente, S. Nicolau, Sal e Boavista) e a de Sotavento (Maio, Santiago, Fogo e Brava). Até numa mesma região, as especificidades são bem notórias de ilha para ilha, sem, no entanto, afetar a mútua inteligibilidade dos seus falantes nem o sentimento comum de se falar a mesma língua (Veiga, 2002).

Há quem acredite que de um ponto de vista linguístico, as variantes mais importantes são as de Santiago, Fogo, São Nicolau e Santo Antão e qualquer estudo profundo da Língua Caboverdiana deve ter em conta estas quatro variantes. São as únicas ilhas que receberam escravos diretamente do continente africano, e são as ilhas que possuem características linguísticas mais conservadoras e mais distintas entre si. Já do ponto de vista sociológico, deve-se ter em conta as variantes de Santiago e de S. Vicente que, por comportarem os dois maiores centros urbanos (Praia e Mindelo), são as variantes com maior número de falantes e que têm uma tendência glotofagista sobre as variantes vizinhas.14

Porém, de há alguns anos a esta parte, o tema que vem animando os debates linguísticos no meio letrado caboverdiano tem sido: “Qual é a real situação linguística de Cabo Verde?” Infelizmente, esta pergunta não parece passível de uma fácil resposta. Facto é que Cabo Verde vive hoje numa encruzilhada linguística que, paradoxalmente, parece complexificar-se em vez de simplificar-se com o tempo. Esta afirmação não se deve ao facto de haver mais do que uma língua na socie dade caboverdiana (o Crioulo e o Português). Cabo Verde não é o primeiro nem o único caso desse género. Dos vários casos existentes à volta do mundo podíamos citar a Suíça, a Bélgica, a Finlândia, o Luxemburgo, o México, o Canadá, sendo alguns deles até casos de trilinguismo ou polilinguismo. No entanto, e conforme afirma Manuel Ferreira (1959: 54-55), a questão fulcral é que, “[…] o crioulo de Cabo Verde manifesta-se como fenómeno singularíssimo,

14 Crioulo Cabo-verdiano, disponível em http://pt.wikipedia.org/Crioulo_cabo-verdiano, consultado em 27-

dado que ali surgiu em condições especiais, adquirindo modernamente um relevo de tal envergadura no todo dos valores sociais – étnicos, antropológicos e estéticos que, longe de ser um caso de circunstância, se impõe como um dos problemas capitais a quem pretende estudar a alma do mestiço daquelas ilhas”. Assim, no meio dessa complexidade linguística, antropológica e epistemológica, há os que defendem que em Cabo Verde se vive uma situação linguística bilingue em que o Crioulo e o Português coexistem em situação de paridade. Há outros que defendem que a situação não é de bilinguismo, mas sim de diglossia pois as duas línguas não gozam de igual estatuto sociolinguístico , estando o português num patamar superior. Outros há que defendem a oficialização da Língua Caboverdiana – o Crioulo – como forma de clarificar definitivamente o estatuto de ambas as línguas e a encruzilhada linguística em que esta situação parece transformar-se.

Uma coisa é certa. Conforme já tínhamos afirmado num outro sítio (Trigueiros, 2010 : 150), a presença da Língua Portuguesa na sociedade caboverdiana é uma realidade incontornável. Pelos laços seculares, linguísticos e culturais que unem a história destes dois povos, pela forma como a sociedade caboverdiana se encontra indelevelmente ligada à sociedade portuguesa pelos ditames da sua história, pe la importância dessa língua enquanto instrumento de comunicação com o exterior nas diversas áreas do conhecimento e do saber e das relações comerciais e diplomáticas, a Língua Portuguesa constitui para nós o mais valioso legado que a história da colonização nos deixou pelo que a importância desse património não deve ser minimizada, mas antes preservada e acarinhada. Nas palavras de Roberto Carneiro (2008), Coordenador do Observatório da Imigração do ACIDI, Cabo Verde e Portugal, “dois Estados, duas Nações, irmanadas num destino entrelaçado pelo cimento de uma língua comum que é pátria de pátrias geograficamente dispersas” (Prefácio, p. 7). Esses laços não são certamente passíveis de fácil dissolução.