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Capítulo 3 – O Professor Intercultural como Mediador de Aprendizagem em Contextos

3.3 O Professor eficaz em contexto multi/intercultural

3.3.1 Competências do Professor intercultural

Eis uma das razões por que falar da educação nos dias de hoje implica refletir, reavaliar e encarar de forma despreconceituosa a problemática da diversidade existente nas sociedades atuais. Infelizmente, não se pode afirmar que haja uma relação de direta proporcionalidade entre o grau de complexidade que carateriza a educação hoje e o grau de satisfação das necessidades reais de ambientes de aprendizagem multiculturais. Por outras palavras, apesar de ser inegável a prevalência de comunidades educativas multiculturais e diversas nas composições sociais hodiernas, não é menos verdade que nem todas as sociedades têm sido capazes de (ou se têm esforçado por) proporcionar uma educação intercultural e integradora compatível com a nova realidade.

Segundo Perrenoud (1999: 2), “o bom senso leva a pensar que, se a sociedade muda, a escola só pode evoluir com ela, antecipar, até mesmo inspirar as transformações culturais”. No entanto, afirma o mesmo autor, “[...] a vontade de mudar a escola para adaptá-la a contextos sociais em transformação, ou melhor, democratizar o acesso ao saber, não é bem partilhado e [...] essa vontade frequentemente é frágil e se limita a discursos que não passam à ação” (p. 3). A quem é que isso interessa? Seguindo a linha de raciocínio de Perrenoud, a educação moderna situa-se no centro de duas forças desiguais: por um lado, os países industrializados, por outro, os países em desenvolvimento. Os países desenvolvidos têm os meios necessários para oferecer uma educação mais virada para a realidade sociocultural dos seus membros e de acordo com as suas necessidades. Mas talvez lhes falte o interesse ou a vontade para o fazer. Têm ainda a vantagem de estar mais perto de organizações internacionais e de movimentos pedagógicos com poder de decisão e ainda o facto das minorias étnicas e socioeconómicas que compõem as suas sociedades não se encontrarem em posição política (imigrados sem direitos políticos) ou socioeconómica (pobres e com fraco nível de instrução) que lhes permita reivindicar ou se fazer ouvir. Assim, os governos vão mantendo o status quo das coisas, querendo fazer cada vez mais gastando menos, ignorando ou minimizando a existência dos mais desfavorecidos. Isso sem esquecer que “os debates internacionais [à volta da educação] priorizam os modelos que correspondem melhor aos países industrializados” (p. 5).

Moreira (1999) também faz referência a esses dois mundos em permanente contradição e à dificuldade de se pôr em prática políticas que propiciem uma educação verdadeiramente

integradora: “De um lado, o mundo de desigualdades, de contradições alerta para pólos radicais, chamados em discursos (notadamente no campo educacional), em termos de afirmações locais ortodoxas, xenófobas, e de outro lado, a voz da igualdade [...]” (Baumel, 2004: 153). E Canen (2001: 207) salienta que, “inserida no bojo destas relações sócio culturais desiguais, a escola tem produzido a exclusão daqueles grupos cujos padrões étnico-culturais não correspondem aos dominantes”, o que nos remete à suscitada questão dos discursos superabundantes e das práticas deficitárias, isto é, dos discursos que não passam à ação (Perrenoud, 1999: 3).

Tudo isso vai acontecendo sob o olhar impotente dos países em desenvolvimento que sequer têm os meios para recrutar ou formar professores academicamente qualificados , menos ainda para formar professores capacitados para uma educação multi/intercultural. Consequentemente , a educação intercultural continua a ser um desafio que se impõe e professores preparados e capacitados para ensinar e educar em contextos de diversidade, uma grande necessidade.

E Baumel (2004) acrescenta que,

Os países interessados no processo de inclusão, pela via educacional, citam em torno de suas políticas, conflitos que devem ser analisados, reconsiderados. Primeiramente, no que se refere a Fundos Públicos, o investimento de recursos em torno da segregação ou da inclusão nem sempre está claro ou disponível. Esses recursos são apontados no conjunto dos conflitos, e esse procedimento pode viabilizar facilitações ou obstruções às práticas inclusivas.3

(Baumel, 2004: 156) No entanto, a realidade mostra que ao professor da educação contemporânea está reservada uma grande responsabilidade. Exige-se que seja motivador, dinâmico, dialogante, crítico e reflexivo. Deve ensinar , mas também deve educar. Deve transmitir conhecimentos, mas também deve incutir métodos. Deve ensinar valores fundamentais como a compreensão, o respeito pelo outro, e cultivar a paz, a não-violência, o espírito de responsabilidade. Deve ainda ajudar a desenvolver um espírito crítico e a capacidade de análise, de reflexão, a criatividade e a curiosidade em termos de aprendizagem. Esse professor deve estimular e motivar os seus alunos de forma a propiciar a construção do

3 Aqui o termo inclusão é utilizado com o sentido de integração (cf., por exemplo, Chalita 2001: 212-213). E

é com esse mesmo sentido que aparece referenciado por diversas vezes ao longo deste texto.

conhecimento e a transformar o saber em saber-fazer. Deve ser ainda um mediador de culturas por excelência, promovendo a interação e o entendimento entre indivíduos provenientes de culturas e espaços socioeconómicos diversos que partilham o mesmo espaço de aprendizagem.

Mas um professor com todas essas competências e valências não nasce sozinho, não se encomenda. Precisa ser formado, preparado para os desafios de um contexto multicultural onde a sua atuação possa resultar em ganhos para os aprendentes independentemente do nível ou da situação de aprendizagem. É nesse sentido que se tem feito muita investigação e produzido muita literatura objetivando identificar e definir as caraterísticas do professor que sirva às necessidades dos contextos de aprendizagem diversos e assim conceber estratégias de formação docente compatíveis com as novas exigências da educação hoje. Como exemplos de investigadores contemporâneos cujas contribuições têm sido de grande utilidade nessa área, citaríamos Alarcão (1996), Perrenoud (1999), Vieira (1999), Canen (2001), Alarcão e Tavares (2003), Baumel (2004), Leite (2005), Peres (2006), Bizarro (2006), Branco (2006), Candau (2008), Carneiro (2008), Castro (2009), Zeichner (2009), Alarcão e Roldão (2010), Sá-Chaves (2011), entre tantos outros que se têm interessado pela problemática da formação de professores interculturais ou para a diversidade.

Que competências deverá então possuir um professor intercultural para se diferenciar de um professor convencional? Muito já se debateu, pesquisou e escreveu à volta das competências do professor enquanto agente educativo, formador e transformador do indivíduo para uma integração plena na sociedade local, nacional ou global.

Várias pesquisas referem um conjunto de requisitos sem os quais a profissão docente em contextos multiculturais poderá estar fadada ao insucesso. Em primeiro lugar, o professor intercultural tem de saber pensar e agir interculturalmente, entender e atender à diversidade cultural que se encontra à sua volta. Irina Bokova, Diretora-Geral da UNESCO desde 2009 (a primeira mulher a ocupar esse cargo), defende que “temos de promover uma visão positiva da diversidade cultural e uma literacia cultural avançada através da aprendizagem, do intercâmbio e do diálogo. Estes conceitos são fundamentais na luta contra a discriminação, o preconceito e o extremismo. A diversidade cultural e a literacia cultural são forças essenciais para a renovação das nossas sociedades” (UNESCO, 2013).

Em segundo lugar, o professor intercultural deve ser portador de, pelo menos, três competências essenciais conhecidas por competências interculturais: 1) conhecimentos (específicos sobre as culturas de proveniência dos seus educandos e conhecimento geral sobre tipos de questões que poderão surgir quando membros de culturas diferentes interagem); 2) atitudes (que encorajem o estabelecimento e a manutenção de contactos com pessoas diferentes do “nós”); 3) capacidades (que permitam basear-se tanto nos conhecimentos como nas atitudes na interação com pessoas de culturas diferentes) , (Carneiro, 2008; UNESCO, 2013: 16; Barret et al, 2013: 9-10; Council of Europe, 2008 : 29). São esses os principais objetivos que estiveram na base da criação da Organização das Nações Unidas e posteriormente da UNESCO como agência especializada, tendo como mandato específico a conversão destes objetivos específicos em prática quotidiana. Essa tarefa passa pelo fomento de uma sensibilidade e pelo desenvolvimento de um espírito de solidariedade interculturais visando lutar contra a intolerância, o estereótipo, a discriminação e discursos de ódio e violência (UNESCO, 2013: 4).

Em terceiro lugar, as competências interculturais são adquiridas através da combinação de outras variáveis: experiência, formação e autorreflexão (UNESCO, 2013: 26). As competências interculturais são a via de acesso ao diálogo intercultural defendido por muitos investigadores contemporâneos, entre os quais se situa Michael Byram (1997). Baumel (2004) afirma que, “uma postura intercultural pressupõe inter-relação deliberada entre os diferentes grupos socioculturais. Encaminha e constrói diálogos entre as raças, género, capacidades, de forma crítica, não ingênua” (p. 159), mas alerta para o facto de o comportamento exigido não depender apenas da vontade do professor: “A mudança exigida [...] não depende só dos professores, mas da sua formação atitudinal, conceptual e processual – uma formação integradora – de atitudes frente à diversidade como alternativa cultural” (p. 158). Só assim poderá o professor intercultural incorporar na plenitude a sua personagem e ir ao encontro dos desafios que uma educação intercultural, abrangente e integradora lhe apresenta.

É, portanto, tarefa do professor intercultural garantir que crianças, jovens e adultos adquiram as competências que lhes permitam funcionar eficazmente em contextos marcados por uma crescente diversidade de pessoas, culturas e estilos de vida, por outras palavras, “capacidades para agir de forma efetiva e apropriada quando interagindo com o outro que é linguística e culturalmente diferentes de nós” (UNESCO, 2013: 5). Mas neste

particular, “The Council of Europe’s White Paper on Intercultural Dialogue” (2008: 29) explica que as competências interculturais não são automaticamente adquiridas pelos indivíduos. Têm de ser aprendidas, praticadas e alimentadas ao longo da vida. Se assim é, significa que o próprio professor, que não nasceu professor intercultural, precisa igualmente de aprender e de desenvolver essas competências para estar apto a transmiti-las aos seus educandos. Ninguém dá o que não tem nem pratica o que não sabe. E é aqui que entra a pertinência da formação de professores interculturais ou para a diversidade, de forma a equipá-los com ferramentas e materiais educaciona is, incluindo os tecnológicos, necessários ao desenvolvimento dessas competências nos aprendentes e à consequente mudança de atitudes e comportamentos.

Revela-se imprescindível que o professor intercultural seja profundo conhecedor da sua área de intervenção, mas é igualmente importante que seja detentor das competências interculturais necessárias ao desenvolvimento de uma aprendizagem de sucesso em contextos de diversidade. O professor intercultural não se pode coibir de desenvolver as suas capacidades com vista a ser um competente mediador, facilitador e mobilizador de uma aprendizagem que conduza à formação integral dos indivíduos para operarem tanto nas comunidades em que se encontram inseridos, como no mundo globalizado de que fazem parte. A educação é uma tarefa que exige uma junção descomplexada de esforços de todos os intervenientes: agentes educativos, formadores, pesquisadores, sociedade civil, igrejas, organizações de massa, ambientalistas, decisores políticos e económicos, a todos os níveis, no sentido de educarmos a nossa sociedade global, partindo do local. Só assim conseguiremos a pretendida mudança de mentalidades e de atitude para uma integração plena no mundo real em que vivemos, baseada na compreensão, na interação pessoal e cultural e no respeito pelas diferenças.