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Capítulo 6 – Cabo Verde, um País marcado pela Migração e pela Diversidade

6.1 Caracterização de Cabo Verde

6.1.1 Formação da sociedade caboverdiana

A história da formação da sociedade caboverdiana está diretamente ligada à história do povoamento das ilhas de Cabo Verde, da sua situação geográfica e do seu clima. Segundo dados históricos, à data oficial da descoberta das ilhas (Santiago, Fogo, Maio, Boavista e Sal, em 1460, e as demais em 1462) estas encontravam-se completamente desabitadas (Carreira, 1983: 25; Hanras, 1995: 23; Carvalho, 1998: 16-17; Correia, 1998: 55). Assim, ao falarmos da sociedade caboverdiana estamos a falar de um povo que se foi formando, paulatinamente, ao longo de séculos, com o povoamento de cada ilha, ao contrário de outros territórios colonizados do mundo que à data do início da sua colonização já possuíam uma população endógena própria.

Mas para uma melhor compreensão desse fenómeno, tentaremos traçar umas breves pinceladas sobre a forma como se processou o povoamento das diferentes ilhas, visando uma melhor contextualização e encadeamento dos factos.

Segundo autores consultados, a formação da sociedade Caboverdiana seguiu um processo inverso, isto é, de fora para dentro, e apontam 1462 como sendo a data a partir da qual se deu início ao povoamento das ilhas por aventureiros portugueses, a maioria dos quais provenientes do Algarve, a que se seguira m indivíduos de outras proveniências tais como catalães, genoveses, castelhanos, judeus e degredados portugueses (CGD, 2007: 25).

No entanto, António Carreira (2000: 282) esclarece que “os brancos eram poucos e na maioria portugueses, tendo que recrutar mão-de-obra (escrava) do continente fronteiro visto não possuírem condições de resistência ao clima para cultivar os campos, apascentar o gado e fazer tudo o mais que a colonização exigia”. A mesma tese é defendida pela historiadora cabo-verdiana Elisa Andrade (1996: 36) que aponta 1466 como sendo a data (provável) da chegada dos primeiros escravos a Cabo Verde, mas defende que os negros não eram somente escravos. Havia igualmente (provavelmente numa fase mais avançada) negros livres que acompanhavam espontaneamente os comerciantes, os mercenários e os capitães de navios nas suas deslocações (p. 42).

O povoamento de Cabo Verde deu-se em épocas diferentes, sendo as primeiras ilhas ainda no século XV e as últimas no século XVIII. Carvalho (1998 : 18) refere igualmente o ano de 1462 como sendo o marco temporal que aponta para o início dessa atividade. Sendo

Santiago a maior ilha, a menos árida das três orientais (Maio, Boavista e Sal), menos

rochosa do que a ilha do Fogo, com bons portos e recantos onde os navios podiam abrigar- se, uma localização estratégica privilegiada e, sobretudo, com boas nascentes de água doce, justifica-se que tenha sido a primeira a ser povoada (Andrade, 1996 : 46; Carvalho, 1998: 20). Nessa ilha a água corria em abundância, razão porque foi atribuído o nome de Ribeira Grande ao local a partir do qual a população se foi desenvolvendo (junto ao mar) e expandindo-se em direção ao interior da ilha. A povoação da Ribeira Grande foi elevada a categoria de Vila em 1530 e de Cidade em 1533 (CGD, 2007: 27). Séculos mais tarde, com a ascensão da Vila da Praia à categoria de Cidade (em 1858), embora já fosse capital da Província desde 1769, Ribeira Grande de Santiago passou a ser conhecida por Cidade Velha (Hanras, 1995: 25), nome por que é historicamente referenciada. Com o seu povoamento, a ilha de Santiago viria a funcionar como placa giratória do tráfico escravocrata, comércio muito atrativo e muito explorado nessa época. Os negros eram capturados na Costa Ocidental africana, trazidos para Santiago (Ribeira Grande) onde eram ladinizados (ensinados os rudimentos da língua portuguesa e da religião) e depois

exportados para a Europa e América do Sul. Do século XV ao século XVI o tráfico de escravos tornou-se a base da riqueza dos moradores de Santiago, tendo esse comércio atingido o seu apogeu no século XVI. Esse facto vem associado ao papel desempenhado por Santiago desde o século XV em que os portugueses, ao aperceberem-se do valor estratégico da ilha aquando da sua descoberta em 1460, tudo fizeram para a transformar numa base segura não só para o comércio com a costa africana, mas também para a navegação de longo curso ao longo dessa mesma costa e mais tarde com destino às Índias Orientais e Ocidentais (cf. Carreira, 2000).

Historiadores e investigadores visitados (Carreira, 1983; 2000; Hansas, 1995; Andrade, 1996) são de opinião que o Fogo foi a segunda ilha a ser povoada e ao que tudo indica por iniciativa dos moradores de Santiago, já nos finais do século XV. Calcula -se que os primeiros habitantes do Fogo foram os servos brancos do Infante D. Fernando e os escravos do mesmo Infante. À semelhança de Santiago, houve a necessidade de recrutar mão-de-obra escrava e barata para cuidar da agricultura e do gado. Apesar de a ilha possuir escassos recursos hídricos, tinha condições para ser uma grande produtora de algodão e situava-se muito próxima de Santiago. O algodão era uma mercadoria privilegiada nas transações comerciais dos moradores de Santiago com a Guiné e daí o interesse em alargar a sua exploração à vizinha ilha que o produzia em abundância. No entanto, afirma-se que no Fogo houve uma maior mestiçagem do que em Santiago, mas com uma maioria branca prevalecente (que se foi diminuindo) e com diferenças sociais e raciais muito acentuadas.

Segundo a investigadora Cláudia Correia (1998: 55), as restantes ilhas teriam continuado desabitadas durante todo o séc. XVI, “embora tivessem sido aproveitadas, rendendo em particular, na criação de gado, urzela e sal”. Assim, “a incrementação do povoamento das outras ilhas só se faria a partir do séc. XVII e finais do séc. XVIII” (p. 56).

As ilhas de S. Vicente e do Sal foram, no entanto, as últimas a serem povoadas. No que diz respeito a S. Vicente, relatos dão conta que após várias tentativas fracassadas, começou-se a registar algum êxito a partir de 1795 quando um comerciante abastado da ilha do fogo (João da Silva Rosado) se ofereceu para trazer para S. Vicente 50 escravos próprios e 20 casais das outras ilhas , mediante determinadas concessões e regalias acordadas com a Coroa Portuguesa (Brito-Semedo, 2006: 144). Depois de alguns avanços e recuos, a

população foi crescendo lentamente e no séc. XIX, com a expansão das atividades do Porto Grande do Mindelo na rota da navegação transatlântica, registou-se um fluxo interno de migrações das outras ilhas para São Vicente, principalmente das ilhas de Santo Antão, São Nicolau e Boavista, em busca de emprego, o que se traduziu num rápido aumento da população de S. Vicente (Andrade, 1996: 50). Isso sem esquecer os Br itânicos que aqui se fixaram, a partir de 1838, para a exploração do então autorizado e instalado entreposto carvoeiro para abastecimento à navegação que demandava essa rota do Atlântico.

Quanto a ilha do Sal, o seu povoamento só teve lugar muito mais tarde. Além de algumas famílias brancas, a população foi sendo constituída, sobretudo, por escravos provenientes da Boavista, inicialmente para guardar o gado (1938) , e mais tarde para a extração do sal (ibid., p. 51). Com a construção do aeroporto internacional dos Espargos em 1939, por iniciativa e investimento do Governo italiano (CGD, 2007: 13), a ilha do Sal passou a ser um promissor polo de desenvolvimento no contexto da Província que começou a atrair muitos indivíduos das outras ilhas à procura de melhores condições de vida.

Diferentes pesquisas levadas a cabo ao longo dos tempos sustentam, assim, que Cabo Verde foi povoado basicamente por escravos trazidos de toda a Costa da Guiné, do rio Senegal à Serra Leoa, conjuntamente com europeus que incluíam portugueses, genoveses, castelhanos, franceses, ingleses, holandeses, judeus e povos de outras latitudes (Andrade, 1996: 44; Lopes Filho, 1996; Carvalho, 1998: 21; Carreira, 2000: 281; CGD, 2007). Segundo Andrade (1996: 42), “e ntre os portugueses, foram os originários da Madeira que forneceram o maior número de indivíduos no processo de formação do povo cabo- verdiano”.

A sociedade caboverdiana foi então formada a partir de brancos e negros e do seu contacto e vivência resultaram não apenas uma miscigenação, mas também trocas culturais profundas que provocaram uma grande mestiçagem tanto humana, como social, cultural e linguística (Lopes Filho, 1996: 41), tendo no Crioulo caboverdiano a expressão máxima da sua identidade e veículo de comunicação por excelê ncia. Nesse processo houve, nas palavras de António Carreira (2000), um caldeamento de etnias e povos de onde resultou uma sociedade crioula em que o elemento “mestiço” explicita uma cultura-síntese emergente do cruzamento afro-europeu. O mestiço não era portador nem da cultura africana, nem da cultura europeia, mas sim de uma cultura síntese, produto do encontro de

várias culturas de que o Crioulo é um dos principais elementos (Carvalho, 1998: 22; Correia, 1998: 61). Estavam assim lançadas as bases de uma sociedade mestiça e multicultural, tendo na Cidade Velha o berço da Cultura e da Nação Caboverdianas. Assim, a sociedade caboverdiana tem a particularidade de, já na sua formação, ser uma sociedade geneticamente multicultural e diversa. Na opinião de Carvalho (1998),

Vivendo embora sob regime colonial, a sociedade destas ilhas afirmou -se como uma sociedade de intensa mestiçagem, verificando-se uma dinâmica reelaboração dos contributos etno-culturais de origem branca e negra. O resultado deste cruzamento multi-secular não é uma mera amálgama desses contributos, senão que, a partir dessa base plural, a afirmação de uma identidade própria, ou seja, uma Nação dotada do seu património identitário: desde a língua até à música, passando pela cultura material, pelas tradições, pela literatura, entre outras componentes.

(Carvalho, 1998: 23)

Cabo Verde conta atualmente com uma população residente de 511 685 habitantes, sendo 253 665 (49.6%) correspondente à população masculina e 258 020 (50.4%) correspondente à população feminina.11 Os dados publicados pelo Instituto Nacional de

Estatísticas Caboverdiano (INE), Censo 2010, referem, nessa altura, uma população residente de 491 875 indivíduos,12 sendo que o Observatório dos Países de Língua Oficial

Portuguesa (OPLOP) apontava nessa mesma altura uma população caboverdiana não residente que ascendia os 700.000 indivíduos, com a maior comunidade concentrada nos EUA (com cerca de 250.000 indivíduos) seguida de Portugal (com cerca de 100.000).13