• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 1: Educação Histórica e Passados Dolorosos

1.2. Os The Troubles na Irlanda do Norte (1969-2007)

1.2.8. As memórias que perduram

Como já foi aqui referido, este conflito não é visto da mesma forma por todas partes envolvidas. Este é, sem dúvida, um episódio da História da Irlanda do Norte que ainda hoje continua a moldar a sua sociedade:

“(…) ‘the Troubles’ has had profound and shaping impacts upon politics, culture and the lives of many thousands of people in Great Britain, producing lasting legacies that continue to resonate nearly half a century after the eruption of political violence in 1968-69” (Dawson & Hopkins, 2017, p. 1).

Isto é, não é possível afirmar que os The Troubles decorreram apenas entre o final da década de 60 do século XX e do início do século XXI. Apesar deste conflito ter terminado formalmente, as suas consequências são ainda hoje claramente visíveis e sentidas na so- ciedade Norte-Irlandesa, em vários aspetos.

Como refere o autor Paul Nixon (2008): “In Northern Ireland, Irish Nationalist and British Unionists have very different perspectives in the conflict and its history. History and con- temporary events are used to apportion blame and justify contrasting analyses and ‘solu- tions’ to the conflict.” (p. 5). Ou seja, a História é manipulada pelas várias fações envol- vidas neste conflito, numa tentativa desesperada de justificar atos, por mais bárbaros que estes tenham sido ou, também, de forma a identificar um culpado, cuja responsabilidade

por este conflito tem de ser assumida. De forma geral, este conflito foi apresentado de forma distorcida à sociedade. Como referem os autores Dawson e Hopkins (2017):

“This was constructed either as inter-ethnic conflict between the ‘two tribes’, which required inter- vention by the peace-making British ‘honest broker’, or more insistently as irrational republican ‘ter- rorism’ by criminals which required the reassertion of law and order through police work and criminal justice supported by the military” (p. 6).

Como é evidente, muitos são os autores que condenam a atitude do Governo da Irlanda do Norte e, também, do Reino Unido, uma vez que The Troubles acabaram por ser o resultado de anos de injustiça e discriminação que alcançou um ponto de saturação. Ao atingir este ponto, a população católica viu-se obrigada a lutar pelos seus direitos e foi nesta insurreição que os conflitos entre as duas comunidades se deu. Segundo John Newsinger, é evidente que os mais de 30 anos de conflito na Irlanda do Norte se devem à gestão do partido Conservador, juntamente com as ações do exército britânico. Segundo o autor “The unionists were given carte blanche to crush Catholic resistance, with the Army being used to prop up Orange89 rule”. Esta atitude teve consequências desastrosas para ambas as comunidades. Um exemplo claro do impacto que este conflito teve na so- ciedade e que transpôs as fronteiras da Irlanda do Norte, é o caso real de Annie Bowman. Annie viu-se sem pai90 quando não tinha ainda 3 anos de idade. Este era um agente de desativação de bombas que acabou por falecer em 1973 em serviço. Esta morte precoce deixou sozinha uma jovem viúva com três crianças com menos 5 anos. Esta perda tão dramática teve consequências que se fizeram sentir e que ainda hoje se refletem nos filhos deste homem. Como a autora refere, a sua mãe não foi a mãe que poderia ter sido: “We lost not only our dad but also the mother our mum would have been and the family we would have been closer to.” A autora acrescenta ainda que, hoje, ela e os seus irmãos, nos seus 40 anos de idade, continuam a sofrer de depressões devido ao trauma provocado pela perda do seu pai. Pois, apesar de muito jovens e de não terem qualquer lembrança do

89 Os Unionistas são também conhecidos por Homens Cor de Laranja, devido à História ligada ao Rei Protestante William of Orange. “William and his wife Mary were crowned joint monarchs of England, Scotland and Ireland in 1689. Their accession, known as the ‘Glorious Revolution’, marked an important transition towards parliamentary rule, as we know it today. William’s ousting of his predecessor, the Cath- olic James II, ensured the primacy of the Protestant faith in Britain. His decisive victory over James at the Battle of the Boyne is celebrated annually in Northern Ireland on 12 July.” http://www.bbc.co.uk/his- tory/people/william_iii_of_orange. Consultado a 8.01.2018.

90 “Captain Barry Gritten of 321 EOD Unit, Royal Army Ordnance Corps, was a bomb disposal officer and was killed as he tried to defuse a bomb on 21 June 1973.” (Bowman, 2017, p. 283).

incidente, acabaram por crescer de forma desequilibrada devido ao ambiente em que vi- veram: “although I remember nothing about the days after my dad was killed and I don’t remember my dad at all, the traumatised adults around my brothers and me complicated our recovery from this tragedy.” (Bowman, 2017, pp. 280-281). Para além disso, Annie Bowman relata ainda que apesar dos The Troubles estarem diariamente nas notícias, nunca ninguém comentava estes acontecimentos consigo; esta experienciou “Isolation, silence and fear” enquanto criança. Mais tarde, através do Peace Centre91, a autora teve a oportunidade de conhecer ex-soldados que, tal como o seu pai, serviram em Derry e que lhe permitiu saber como é que foi a sua vivência e também o quão assustador deve ter sido o seu trabalho. Através deste centro, Annie conheceu ainda ex-soldados paramilitares pertencentes ao IRA, sobre os quais escreve:

“I was absolutely terrified, but gradually I talked to individuals one-to-one and found that the ex-IRA members were people who had been hurt too and needed to tell me about their lives and needed me to listen. Some of them were surprised that their actions to help their community, and their view that my dad was a legitimate target, had had such a deep, traumatic and long-lasting effect on my life.”

(Bowman, 2017, p. 281).

A autora acrescenta ainda que estes homens desumanizaram o “inimigo”, uma vez que, no fundo, as mortes provocadas tinham como objetivo atacar o Governo e as forças ar- madas, ignorando, no entanto, a família e os amigos destas vítimas. Annie Bowman refere ainda que “Northern Ireland wasn’t officially at war, our soldiers were fighting in our own country with people who looked like us and spoke the same language.” (Bowman, 2017, p. 282). Esta afirmação sintetiza o sentimento generalizado de muitos cidadãos da Irlanda do Norte, da Irlanda e da Inglaterra. Este conflito armado opôs concidadãos, vizi- nhos que partilhavam a mesma rua, a mesma língua e a mesma cultura. Este testemunho de Annie Bowman é poderosíssimo e demonstra de forma tão clara como um aconteci- mento que teve lugar em 1973, tão longe da sua casa, afetou toda a sua família, a forma como cresceu e os efeitos que ainda hoje, se fazem sentir na sua estabilidade emocional, apesar de tantos anos passados sobre a morte do seu pai.

91 “The Centre opened in 2000 and hosts three organisations – the Tim Parry Johnathan Ball Foundation for Peace, NSPCC and Warrington Youth Club. The charities share many common aims and goals and each, in their own way, work with vulnerable children, young people and adults affected by violence and cruelty in all its forms. The charities tackle many of the key issues affecting society today – prejudice, discrimination and violence within and between our communities.” http://www.thepeacecentre.org.uk/. Consultado a 13.01.2018.

No seguimento do testemunho de Annie Bowman, é importante mencionar a obra de Ma- rion Gibson, “Order from chaos – Responding to traumatic events”, editada em 1999. Esta obra trata os efeitos que os desastres, sejam eles de que natureza forem, têm nas pessoas que, de alguma forma, se veem envolvidas nos mesmos. Segundo esta autora, os efeitos de um desastre espalham-se:

“(…) like ripples far beyond the point of impact. Victims, injured, survivors, bereaved families, on- lookers, friends and neighbours, helpers and professional caregivers, the whole communities are caught up in the turmoil of events whose effects will be felt by generations yet unborn.” (Gibson, 1999, p. vii).

Esta afirmação da autora é extremamente assertiva e aplica-se à realidade da Irlanda do Norte. Segundo a mesma autora, “disaster traumatic event, emergency, critical incident, and crisis situation” são alguns dos termos utilizados, para definir situações que aconte- ceram de forma abrupta e como resultado tiveram a alteração do curso normal da vida para os envolvidos (Gibson, 1999, p. 1). De salientar que estas situações não resultam apenas de catástrofes naturais, uma vez que, em muitas situações, a mão humana está por detrás destes incidentes. Assim, a guerra e o terrorismo são duas realidades a que temos assistido nas últimas décadas (e até séculos). A guerra, mesmo que não decorra em solo nacional, é transmitida quase em direto pelos meios de comunicação social. O mesmo acontece com os atos terroristas, que apesar de não serem transmitidos em direto (já que são atos difíceis de prever), são posteriormente difundidos pelo mundo a uma grande ve- locidade. Não é possível esquecer os gritos das vítimas francesas no atentado do Bataclan, em novembro de 2015, ou o pânico no rosto das pessoas que se viram sob uma chuva de tiros, no atentado de Las Vegas, em outubro de 2017. Ou mais recentemente, os atentados na Nova Zelândia e no Sri Lanka, em março e abril de 2019, respetivamente. Na era em que vivemos, todos nós somos vítimas deste flagelo, que segundo M. Gibson (1999), é um “(…) worldwide phenomenon” (p.27). Já relativamente à guerra, a autora escreve:

“All through recorded history, humankind has been involved in the disaster of warfare that may take place on native or alien battlefields. (…) the number and nature of the injuries sustained while ‘organ- ised’ confrontation by warring armed forces result in ‘legitimate’ casualties, there are always other civilians involved.” (p.27).

Síntese do Capítulo

Assim, quando analisamos o caso da Irlanda do Norte é difícil descrever este conflito como uma guerra civil, (esta definição nunca é atribuída aos The Troubles), ou a atos de terrorismo que se prolongaram por várias décadas. Independentemente da terminologia atribuída, a verdade é que os The Troubles foram uma constante interrupção do dia a dia dos cidadãos da Irlanda do Norte, da República da Irlanda e da Inglaterra. Estas interrup- ções foram muitas vezes marcadas por mortes e destruição: perdas de vidas e de bens materiais. Num período em que ainda não se falava em apoio psicológico para as vítimas e familiares das vítimas, restava aos mesmos tentarem lidar com a situação da melhor forma que podiam e sabiam. Muitas vezes, as vítimas ou os seus familiares transformaram a sua dor em ódio pelo outro, pelo autor do ataque, pela comunidade, pela luta que era levada a cabo pelas fações políticas em oposição. A autora M. Gibson (1999), analisa esta questão de forma muito assertiva, afirmando:

“War can be said to be an act of deliberate person-made disaster and certainly terrorism acts fit into this category. In such disasters, there is usually a person or a system to blame. The anger of those effected is usually centred on this perceived cause. (…) Nature or God can be collectively blamed for natural disasters but, in a technical/person-made disaster, the perpetrator may be accessible as a focus for anger and legal processes.” (p.18).

Ou seja, o ódio e a inimizade presente, na Irlanda do Norte são uma clara demonstração da dor e de todo o trauma causado durante as décadas em que os The Troubles se desen- rolaram. São muitos os que se viram diretamente e indiretamente envolvidos neste con- flito.

Neste contexto há uma questão que se mostra essencial colocar: o que fazer então em relação às crianças? Como foi possível verificar, com o relato de Annie Bowman, a falta de comunicação e o silêncio tiveram consequências desastrosas, a longo prazo, na sua vida pessoal e na sua estabilidade emocional. Então, qual é a melhor estratégia a adotar quando se trata de crianças em relação a desastres que incluem morte, perda e/ou destrui- ção? A autora Marion Gibson (1999), escreve o seguinte, tendo em conta a sua experiên- cia:

“I felt like children would be better hearing the truth of the situation as part of the total loss they were experiencing. My belief is that children can understand such painful truth if it is explained to them in age – appropriate terms and with loving support. Children need to hear the truth from those whom they trust. Any attempts to alter the reality will be found out in time. The whole truth could become a very painful reality, when later in life a child finds out from a ‘good’ friend or playground confident.

Such situation will leave the child wondering what other facts that were explained to them were also false.” (p.12).

Nesta linha de pensamento, e em relação ao ensino e aprendizagem da História dos The Troubles, é fácil perceber que o seu ensino, nas escolas, é mais benéfico do que o silêncio. Por mais doloroso que seja estudar um passado turbulento e ainda tão presente na socie- dade, a sua dissimulação poderá ter consequências graves, especialmente quando estamos a falar de duas comunidades saídas de um conflito muito violento, com um elevado nú- mero de vítimas mortais, de vítimas colaterais e que se solucionou apenas há cerca de uma década. Como a autora refere, ouvir a verdade, por mais dolorosa que seja, é sempre preferível ao silêncio e à ocultação. Estes servem apenas para perpetuar uma memória repleta de dor, ódio e ressentimento.

Capítulo 2: O sistema de ensino da Irlanda do Norte desde a primeira