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Capítulo 1: Educação Histórica e Passados Dolorosos

1.1. Conceitos Relevantes para a Investigação

1.1.5. Ensino de Passados Dolorosos

“Os cidadãos necessitam de observar o passado com responsabilidade, em várias perspetivas, e refletir sobre o poder da memória e das representações históricas no sentido de gerar solidariedade e tolerância.” Alves et al, 2012.

Por Passados Dolorosos entendem-se todos os acontecimentos que marcaram profunda- mente uma comunidade, sociedade, nação ou país. Ou seja, eventos muitas vezes repletos de violência extrema, física ou psicológica, destruição e sofrimento, num espaço de tempo considerável ou curto.

Elizabeth A. Cole (2007) afirma que nas sociedades a recuperar de episódios violentos, as questões relacionadas com o seu passado são muito complexas, uma vez que o passado é, muitas vezes, composto por mortes, sofrimento, destruição e com uma percentagem de população afetada geralmente elevada.

Nas celebrações do dia Internacional da Paz em 2013, o então Secretário Geral da Nações Unidas, Ban Ki-moon, afirmou o seguinte:

“The International Day of Peace, marked on 21 September each year, offers an opportunity for the world to pause, reflect and consider how best to break the vicious cycle of violence that conflict cre- ates. The theme for the Day this year is “Education for Peace”. The United Nations will examine the role education can play in fostering global citizenship. It is not enough to teach children how to read, write and count. Education has to cultivate mutual respect for others and the world in which we live, and help people forge more just, inclusive and peaceful societies” (Ban Ki-moon, 201338).

Esta afirmação possui um significado extremamente importante no contexto das socieda- des que lidam com passados violentos e dolorosos, uma vez que coloca os Sistemas Edu- cativos no centro da mudança que é necessária nestas comunidades, em ordem a alcançar uma coexistência pacífica entre os vários grupos étnicos. Neste contexto, é importante citar a ideia de Khursheed Kamal Aziz presente no seu livro “The Murder of History” (1993): “(…) even if amnesia is accepted or chosen by the generation that experienced the conflict, as in the Spanish Civil War, the contested past often returns as a subject for public debate in future generations” (Aziz, citado por Cole, 2007, p.7). Esta ideia não deixa dúvidas, ignorar o nosso passado, por mais violento que seja, não faz com que este desapareça da História, muito pelo contrário, uma vez que se está apenas a adiar o con- fronto, o momento em que a sociedade vai ter de lidar com o seu passado. Ora, o século XX foi um dos mais violentos da História da Humanidade, como afirmouAlessandro Portelli (1998).39 Toda a violência e morte que envolveu o século XX deixou um legado de destruição e sofrimento que é ainda a realidade de muitos, como afirmam Denise Ben- trovato e Martina Schulze (2016). Segundo estas autoras, há ainda muitas vidas a serem perdidas devido a conflitos armados violentos. Para Bentrovato e Schulze, a Educação tem-se mostrado um dos principais canais escolhidos para promover “understandings of and lessons from the past, with a view to preventing future wars and advancing peace and reconciliation” e, atualmente, trabalhar questões sensíveis relacionadas com a guerra e paz, em sala de aula, são tidas como essenciais para consciencializar os mais jovens para que o passado violento não se volte a repetir: “Never again” (Bentrovato & Schulze, 2016, p. 15). Contudo, nem todos os países conseguem problematizar e falar da sua História dolorosa e isto acontece principalmente nas sociedades onde os conflitos violentos são relativamente recentes, como é o caso da Irlanda do Norte. Assim:

39 Juan Moreno-Vera e Rafael Aldaguer (2019) referem que, na disciplina de História, muitos dos conteúdos que são ensinados aos alunos estão relacionados com conflitos armados. Os mesmos autores acreditam que é difícil para um professor de História evitar ou fugir destes temas conflituosos.

De facto, é maioritariamente nas aulas de História que os alunos têm a oportunidade de aprender sobre conflitos armados, como por exemplo: a invasão Normanda, as invasões Napoleónica, a Guerra Civil Es- panhola, a Guerra Colonial Portuguesa, a Primeira Guerra Mundial, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, entre tantos outros conflitos bélicos. As consequências a curto e a longo prazo destes conflitos são fatores essenciais para que os estudantes possam relacionar o impacto destes eventos históricos com o pre- sente e a realidade que se vive atualmente. É, no entanto, importante referir que estes conflitos afetam os estudantes de forma diferente, uma vez que o impacto que estes têm depende, da região que afetou, da duração dos mesmos, bem como dos efeitos na população.

“(…) divided and transitional societies have frequently opted to exclude the study of their recent vio- lent history from the curriculum altogether. In other cases, an official narrative has been enforced in defiance of calls for a critical and democratic approach to history teaching. Education systems have thereby failed to respond to the urgent need to help younger generations make sense of the past and thus of the present, potentially entrenching dangerous misunderstanding and misperceptions.” (Ben- trovato & Schulze, 2016, p. 16).

Neste sentido, a autora Helena Pinto (2019) afirma que “Os alunos precisam de oportu- nidades que desafiem as suas preconcepções sobre o passado, para aprenderem a lidar com interpretações diferentes e para darem sentido ao passado” (p. 441).

Porém, quando os Governos ignoraram e tentaram esconder os seus passados dolorosos dos mais jovens e onde estes tópicos acabaram por ser inseridos nos currículos escolares, apenas várias décadas após o fim do conflito armado, (o que parece à primeira vista, um ato que mitiga anos de supressão da verdade), tem pelo contrário efeitos desastrosos para o processo de paz destas sociedades. Ou seja, ao suprimir o ensino dos passados doloro- sos, das aulas de História, durante vários anos, os Governos deixaram a transmissão da memória destes passados nas mãos dos familiares dos mais jovens. Acontece que muitas das histórias contadas são sectárias e com uma visão parcial, prolongando, assim, mitos e ódio. Ora, estes jovens cresceram e partilharam esta visão com os seus filhos, o que continua a difundir as visões sectárias que ainda hoje dividem algumas sociedades. Ape- sar de, atualmente, os mais jovens terem acesso a uma narrativa mais imparcial e a factos e evidências do que aconteceu, os mitos e as histórias contados pelos mais velhos ganham um estatuto que é assumido como verdade absoluta e que as aulas de História tentam combater, mas muitas vezes sem sucesso. Assim, o ensino dos passados dolorosos não possui apenas benefícios e não é um processo fácil, contudo, ao ensinarmos os mais jo- vens o seu passado doloroso estamos a ajudar “(…) divided societies to heal wounds and mend the torn social fabric.” (Bentrovato & Schulze, 2016, p. 17). Esta ideia é reforçada também por Elizabeth Cole: “(…) understandings of history are crucial to a society’s ability to reckon with the past for the sake of a more peaceful future.” (Cole, 2007, p. 13).

A História, segundo Alan McCully e Keith Barton (2005), tem um papel extremamente importante na formação da identidade de indivíduos e da comunidade. Estes autores afir- mam ainda que quando grupos com experiências históricas diferentes entram em conflito, o passado poderá ser usado para assim justificar e perpetuar a discórdia. Assim, como Alecsandro Vieira (2016) escreve que a negação de “temas divergentes” e a omissão dos

mesmos nos currículos e manuais escolares pode “adiar ou atrasar atitudes reconciliató- rias ou de assimilação em relação a histórias difíceis ou controversas no presente.” Ao se tratarem estes temas controversos nas salas de aula e nos manuais escolares, há que ter em atenção que as narrativas apresentadas devem ser abordadas de forma multiperspeti- vada, para que “não só países, mas diferentes classes, gêneros, comunidades religiosas e outros grupos, protestem pacificamente e expressem suas opiniões livremente.” (Vieira, 2016, pp. 16-17). Nesta linha de ideias, Denise Bentrovato e Martina Schulze defendem igualmente que o ensino de História “(…) is shown not only as a (potential) source of conflict but also as an important component of attempts to reconcile divided societies.” (Bentrovato & Schulze, 2016, p. 19). As mesmas autoras defendem ainda que o ensino de História depois de acontecimentos violentos, tem um papel importantíssimo para aju- dar as sociedades divididas a construir um futuro partilhado, sendo a educação histórica a base para esta reconciliação (Bentrovato & Schulze, 2016). Julia Lerch traz igualmente uma conclusão relevante no contexto do ensino dos passados dolorosos e relativamente às narrativas e aos manuais escolares usados por países afetados por guerras civis e por países que nunca experienciaram este tipo de realidade:

“(…) there are important differences in narratives of subnational diversity and nationhood between textbooks in countries with a legacy of civil war and those in countries without such a legacy. Text- books in post-conflict countries do not seem to have incorporated recent multicultural narratives of diverse population groups and their rights to the same extent as textbooks in non-conflict countries. Instead, post-conflict countries appear to demonstrate a pervasive drive to build the nation through textbooks.” (Lerch, 2016, p. 41).

Esta conclusão é clara ao mostrar-nos que os países saídos de um conflito armado têm ainda muito trabalho a fazer, de modo a educar os seus cidadãos relativamente ao seu passado doloroso e que, as estratégias usadas, não têm, talvez, sido as mais eficientes para promover a compreensão mútua e a paz entre as várias comunidades.

Para Elizabeth Cole (2007), a educação histórica pode ajudar a promover a reconciliação de sociedades com passados violentos; contudo, a mesma autora defende que para que isto seja possível é essencial que um certo nível de reconciliação esteja já atingido, pois só assim será possível iniciar a revisão dos manuais escolares. Caso contrário, o público rejeitará as revisões feitas, já que estas vão, inevitavelmente, desafiar narrativas tidas como verdade absoluta por um grande número de cidadãos. Ao desacreditar estas narra- tivas, o professor corre o risco de gerar controvérsia na sua sala de aula, cujas consequên-

cias podem ser várias. Segundo a mesma autora, todas estas considerações práticas e pol- íticas exercem influências de “(…) how, when and to what degree historical narratives are revised in the direction of the standards of good academic history.” (Cole, 2007, p. 19).

No caso da Irlanda do Norte, as questões controversas relacionadas com a História naci- onal são totalmente evitadas no ensino primário como afirmam McCully e Barton (2005). No entanto, segundo Alison Kitson, o currículo de História da Irlanda do Norte é visto muitas vezes como um bom exemplo para outras sociedades também a recuperar de um conflito violento recente. Um dos aspetos mais valorizado é o facto de todas as crianças estudarem um currículo comum, independentemente da fação político-religiosa a que per- tencem (Kitson, 2007). É no ensino secundário que os alunos iniciam o estudo da sua História nacional, tendo a oportunidade de investigar vários tópicos relacionados com a História da Irlanda, mas tendo a contextualização de várias questões históricas britânicas e europeias (Barton & McCully, 2005). É esperado que no fim do estudo destas temáticas os alunos possuam um conjunto de conhecimentos e competências que lhes permita a compreensão de uma maior variedade de questões culturais e políticas Norte-Irlandesas. Assim, “If school history is successful in reaching its goal, it should provide students an alternative source of historical understanding – alternative, that is, to the presumably par- tisan and sectarian histories they encounter outside school” (Barton & McCully, 2005, p.87). Neste sentido, Alison Kitson afirma que a maior parte dos conhecimentos históri- cos dos alunos não é adquirido nas salas de aulas/escolas, o que faz com que os mais jovens continuem a consumir versões da história real, versões que continuam a ser usadas para legitimar certas ações e acontecimentos que atormentaram a Irlanda do Norte durante décadas (Kitson, 2007). Estas múltiplas narrativas, segundo A. McCully, podem ser jus- tificadas pela complexidade que envolve os vários grupos étnicos e que usam o passado para justificar e definir onde é que pertencem. McCully assegura também que a História que os jovens aprendem na escola compreende apenas uma parte do conhecimento adqui- rido sobre o passado, já que a família, a comunidade e outras influências informais são também fontes de conhecimento relativo ao passado, como defende também Alison Kitson (McCully, 2012, p.147). Estas fontes de conhecimento acabam por ter um impacto na vivência em sociedade, uma vez que ao partilharem uma memória coletiva onde pre- dominam relatos sectários, a sociedade está a prolongar uma vivência conflituosa e se- gregada, na qual o ensino dos passados dolorosos se torna ainda mais difícil. Segundo A.

McCully, o ensino de História numa sociedade dividida apresenta um desafio especial, uma vez que a História está intimamente ligada às emoções associadas com a identidade nacional e a pertença coletiva (McCully, 2012). Tendo em conta o contexto em que se ensina a História da Irlanda do Norte e a sensibilidade das questões relacionadas com os The Troubles, Alison Kitson refere que muitos professores preferem jogar pelo seguro relativamente ao que ensinam e como ensinam algumas questões mais controversas, o que a autora defende “(…) and therefore fail to exploit in the opportunities that history presents.” (Kitson, 2007, p. 123).

Na Irlanda do Norte quase 4000 pessoas perderam as suas vidas durante os The Troubles. Raptos, ataques bombistas, tiroteios e incêndios provocados foram o quotidiano da popu- lação deste território. Além disso, muitos viram os seus amigos e familiares morrer ou a ficarem feridos nos vários confrontos que ocorreram durante este período. Paralelamente, deve-se também que os The Troubles são ainda um passado muito recente, em que a mai- oria dos seus intervenientes e testemunhas continuam vivos, partilhando as suas experi- ências com os seus familiares, amigos e gerações mais novas. Este é um tópico muito doloroso na sociedade Norte-Irlandesa e que tende a ser evitado ao máximo pelas pessoas, em meios públicos.

Assim, afigura-se fundamental abordar estes acontecimentos com os mais jovens, averi- guar que conhecimentos estes já possuem e desmitificar a informação falsa, exagerada e que apenas contribui para a contínua segregação das sociedades e para o prolongamento dos conflitos violentos. A disciplina de História é um palco privilegiado para debater estas questões, investigando o passado, os factos e refletindo sobre as suas indagações, desen- volvendo assim a sua consciência histórica. O Professor de História deve ser, o mestre imparcial, honesto e fiel à verdade que guia e esclarece os alunos neste processo de análise reflexiva sobre os passados dolorosos, de forma a promover a paz e a compreensão e não o prolongamento da violência e do ódio. Assim, deve-se “evitar o esquecimento, trazer a densidade histórica que garanta o correto conhecimento do passado, dotar os alunos de competências críticas para assumirem as responsabilidades dos “deveres da memória” (Alves, Oliveira, Ribeiro & Moreira, 2012, p. 7).