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Rapsódia XXIV Na morada de Hades A paz: Ulisses vai ao campo, onde

O BANQUETE COMO ( RE ) MEMÓRIA

IMAGEM 7:BANQUETE DOS PROFESSORES

FONTE: DIAZZI, Paula. Londrina. 2015.

O engenhoso Ulisses, depois de ter cortado as porções e misturado o vinho, aproximou-se do arauto, guiando o fiel aedo, Demódoco, reverenciado por todo o povo; ajudou a sentar, no meio dos convivas, numa cadeira encostada a uma elevada coluna. Então o engenhoso Ulisses, depois de ter cortado, do lombo de um porco de alvos dentes, apenas uma talhada coberta de abundante gordura, deixando intacta a maior parte, falou para o arauto: “Arauto, toma, dá esta carne a Demódoco, para que ele a coma. Não obstante minhas preocupações, quero saudá-lo [...]. Assim falou; o arauto levou a porção de carne e a pôs nas mãos do divino Demódoco, que a recebeu satisfeito em seu coração. Os convivas estendiam as mãos para as iguarias que lhe eram servidas. Depois de terem fartado de beber e de comer, o engenhoso Ulisses falou para Demódoco: Demódoco, [...] canta a história do cavalo de madeira (HOMERO, 1981, p. 78).

O termo banquete na obra Odisseia, como também neste projeto de pesquisa-ação, representa a sociabilidade e a partilha entre as pessoas. Quanto aos banquetes de que Ulisses participava, tratava-se de reuniões para comer, beber e ouvir (cantar) poesias, como retrata uma das cenas na citação acima. Além disso, o banquete64 configura-se como um espaço para as narrativas serem

“cantadas” ou contadas coletivamente, como um ritual de hospitalidade, no qual não apenas os hóspedes, mas também os anfitriões têm a oportunidade de se identificar com as histórias contadas e, também, narrarem as suas experiências.

Foi justamente após a cena de quando Ulisses é interrogado por Alcino, que ele conta a sua história por longas horas, no palácio dos Feácios. A leitura da obra despertou, em mim, o desejo de oferecer durante todos os encontros um “banquete” aos professores. Pensei que poderia ser hospitaleira como Alcino na recepção dos meus “hóspedes”. Além disso, assim como o aedo oferece aos convivas prazer com o seu canto, o narrador proporciona aos seus ouvintes:

através de sua estória bem contada visa a um assentimento, que pode se traduzir em uma boa recepção, em presentes, em transporte (nestes três casos pensamos em Ulisses narrando para os Feácios), em uma manta (Ulisses-mendigo para Eumeu) ou em uma maior confiança e um melhor status como hóspede (Ulisses-mendigo para Penélope), ou, no caso dos anfitriões (Nestor, Menelau e Eumeu), em uma boa reputação (junto ao seu hóspede) como anfitrião, ou seja: internamente estas estórias (ou a arte narrativa que elas supõem) visam a uma finalidade prática e, longe de serem autônomas, têm uma dimensão retórica a qual seria estranha uma arte literária desinteressada e visando ao puro entretenimento. No entanto, do ponto de vista da audiência que as recebe, ainda que uma dimensão moral esteja também presente nas estórias cantadas pelos aedos (estes “profissionais” da narrativa), elas parecem visar ao mero prazer de ouvi-las (o que é indicado pelo verbo térpo, usado para descrever a ação do aedo sobre os ouvintes), não tendo

64Sobre as práticas do banquete, o artigo “O banquete e as narrativas da Odisseia”, do autor

Teodoro Rennó Assunção reflete sobre a origem da palavra o significado de banquete e ainda de que modo o “banquete” se configura como ocasião privilegiada, típica de disponibilidade ou tempo livre, necessários para a narração e a audição de narrativas.

propriamente uma finalidade exterior a elas mesmas. A Odisseia parece, assim, acenar indireta e reflexivamente para a sua própria capacidade em ato de dar prazer (a) e entreter o seu auditor (dele não demandando mais do que o tempo e a atenção da escuta), mas abrindo simultânea e sutilmente a questão mais complexa da possível finalidade moral ou educativa da sua estória maior e englobante e a da possível função de exemplo de seu protagonista central (ASSUNÇÃO, 2013, p. 11).

Nesse sentido, pensei serem os banquetes uma forma de agradecê-los pelas histórias “sensíveis” que contaram durante várias tardes do projeto de pesquisa-ação.

Embora o termo banquete não tenha sido utilizado por mim no primeiro momento, convidei-os, desde o primeiro encontro, a fazerem um intervalo para podermos saborear alguns salgados e doces e desfrutar de algumas bebidas.

Mas, tão logo, um dos professores, o Saturnino, quando viu a mesa de recepção, comentou que estávamos participando de um banquete como Ulisses. Ao final de todos os encontros, este mesmo professor agradeceu a participação, dizendo que, sem os banquetes, “o ato de narrar poderia ter perdido o significado mais "grego" [...]” Também recebi, após o final da pesquisa, um e-mail da professora Sherazade, agradecendo por “proporcionar as sextas-feiras mais produtivas, felizes e deliciosamente degustativas”.

Percebi que a sensibilidade foi aguçada com os alimentos e as bebidas, assim, procurei deixar um suspense toda sexta-feira sobre o que seria levado para partilharmos, pois, a cada encontro, organizava a mesa, os alimentos e as bebidas para, além do consumo, disparar a memória dos “hóspedes”.

Na época dos encontros, quando os professores estavam apresentando suas histórias de vida, procurava trazer para os banquetes doces de quando éramos crianças, por exemplo: doce de abóbora, pipoca em saquinho, paçoquinha, pé de moleque, maria-mole, balas de banana, etc.. Assim, quando sentávamos para lanchar, cada professor começava a lembrar da sua infância da escola, as

brincadeiras em casa e, assim, compartilhávamos uma narrativa regada na experiência de criança.

Em outro encontro, próximo ao Dia dos Professores (15 de outubro), levei bolo para comemorarmos, salgadinho, docinho, pratinhos e copinhos coloridos, promovendo uma festinha. Lembro-me bem de que os professores observavam todos os detalhes e Cleópatra e Ariadne comentaram: “Nossa, tudo isso para nós?”. Arrumava o banquete em uma mesa grande que tinha dentro da nossa sala de reuniões, com toalhas e flores. Sentávamos todos ao redor da mesa e, então, começávamos a contar as experiências pessoais, as receitas eram trocadas, descobríamos quem era um bom cozinheiro, os gostos sobre as comidas eram partilhados, rememorávamos as festas de aniversário, quando crianças, em casa e na escola, e compartilhávamos viagens. Além do mais, os banquetes ofereciam uma disposição melhor para continuarmos as leituras.

Para além da proposta do intervalo, quando finalizávamos o banquete e retornávamos às discussões, era comum os professores carregarem os pratinhos e as bebidas para ao espaço, dando continuidade ao banquete na sala de estudo.

Em tempos em que a modernidade capitalista impede, a cada dia, as pessoas se confraternizarem, pois o mundo do trabalho esgota o ser humano e não lhe possibilita tempos ociosos para o lazer, entretenimento e diversão, viver tardes prazerosas de estudo, diálogo e partilha de experiências fez-me perceber serem possíveis tais situações serem engendradas, mesmo em um tempo marcado pelo relógio. Como dizia Walter Benjamin, apesar de vivermos um tempo vazio e homogêneo, ainda é possível viver um tempo pleno de sentido por meio da rememoração. Aqui neste projeto formativo, o banquete por essa pesquisadora foi compreendido como sugere o título desse tópico: “O banquete como (re)memória”. O professor Saturnino produziu uma narrativa sobre as suas impressões acerca dos banquetes realizados nos dez encontros.

Como parece nos propor o próprio universo narrativo da Odisseia, os banquetes eram lugares propícios a um exercício social que servia principalmente para fomentar níveis de “hospitalidade” entre os convivas, seja ele um convidado, um “penetra” ou mesmo o próprio anfitrião. Situação muito cara aos gregos da Odisseia (como podemos entender de vários episódios do poema), e que vai muito além da comunicação entre o grupo que banqueteia. Isso porque, a meu ver, no modelo de banquete descrito como ideal neste poema, a hospitalidade (que é o fim último da reunião) aparece como uma situação que espera romper barreiras sociais de variados tipos e sentidos. Um rompimento que procura gerar uma espécie de

igualdade (ao menos discursiva) entre aqueles que compartilham da

mesma mesa e da mesma ceia. É, talvez como algumas situações festivas de hoje e de ontem, um lugar onde se quer ver abolidas as desigualdades tocantes à origem cultural e posição social dos interlocutores.

Desse arquétipo de banquete/hospitalidade, temos vários exemplos negativos e positivos ao longo da narrativa da Odisseia. No primeiro caso, podemos citar os episódios de Polifemo (que devora qualquer “outro” que adentre sua morada), Calipso (quem domina e engana e aprisiona, por meio da mágica, seus convidados), Circe (que transforma os companheiros de Ulisses em animais, antes de tornar-se comparsa do herói) e a atitude dos pretendentes na ausência de Ulisses nos banquetes. Do segundo grupo de exemplos, o positivo, podemos falar da estada de Telêmaco na casa de Menelau, Ulisses no banquete de Alcino e, também, dos diálogos provocativos e acusatórios que o próprio herói, fantasiado de mendigo com a ajuda de Palas-Atena, acaba por provocar entre os pretendentes em sua própria casa com o objetivo de ironizar suas faltas de cordialidade/hospitalidade.

Em meu entendimento, a jornada de nosso grupo de estudos sobre a Odisseia procurou seguir, claramente, os exemplos positivos de banquete da Odisseia. Isso pelo motivo de que nossa professora “anfitriã” figurou tal como Alcino ou Ulisses no papel de “dono da festa”. Ou melhor, no propósito de nossa reflexão, a professora figurou como provocadora (ou causa motora) do banquete. Isso porque, de acordo com a leitura que faço do arquétipo de anfitrião da Odisseia, tal personagem parece desistir do papel de “dono” do castelo. Está ali apenas para receber os outros, propiciar conforto e segurança, e não para sobrepor-se aos demais convivas.

Diferente de Polifemo, o anfitrião ideal da Odisseia está pronto para aceitar “invasores” (como mendigos e viajantes desconhecidos) em seus salões, entendendo-os mais como uma espécie de “dádivas divinas” trazidas pelo destino, do que penetras por si. Isso porque a riqueza de um banquete grego (como previsto no poema) acha-se

naquilo que os convidados trouxeram para compartilhar: sua fala, seu discurso, sua sabedoria e conhecimento.

Em suma, na Odisseia, a experiência de vida de um conviva, quando compartilhada em um banquete, é o presente mais propício e precioso que poderia ser oferecido a um anfitrião. Tal “preciosidade” se faz evidente quando aquele náufrago desconhecido, que é Ulisses, torna-se o centro das atenções no banquete de Alcino sob a promessa de revelação de sua identidade, o único “bem” que tinha para oferecer em troca da hospitalidade. O que de fato Ulisses põe em prática compartilhando, sob a insistência do anfitrião e carregado da emoção despertada por outro rapsodo, toda a sua história até então.

Por tais motivos é que o anfitrião da Odisseia — tendo como modelo Alcino, Ulisses ou Telêmaco — difere-se do ciclope. Não “devora” seus convivas ou intrusos, submetendo-os ao egocentrismo de seu próprio discurso preconcebido. Mas é aquele que fornece aos convivas, previamente convidados ou ocasionalmente arrastados até lá pelo destino, toda a segurança e conforto para expressar suas opiniões, mostrar seus argumentos sob determinado propósito ou simplesmente compartilhar histórias de vida.

O anfitrião ideal é aquele que aceita a alteridade e proporciona segurança para que ela se expresse.

As reuniões (ou “banquetes”) da jornada de nosso grupo de estudo não foram diferentes. Nossa professora orientadora assumiu, em todos os momentos, o papel do anfitrião modelo da Odisseia. Provocando discussões sobre o poema e bibliografias relacionadas com temas abordados, podemos perceber que o objetivo real deste curso, para nossa anfitriã, tratava-se mais daquilo que nós, “convivas”, podíamos contribuir por meio do compartilhamento de ideias, reflexões, histórias de vida e experiências pedagógicas, do que cumprir algum cronograma estratificado de estudo, embora nossas discussões e contribuições estivessem relacionadas a um percurso antes programado.

Nesse sentido, no meu entendimento, essa jornada de estudos focou-se em questionamentos e reflexões que acabaram por render oportunidades lúcidas de levar os “convivas” do curso a pensarem e compartilharem sobre suas próprias trajetórias de vida e ensino, buscando as raízes de suas possíveis identidades e posicionamentos enquanto professores.

Agindo como uma verdadeira anfitriã, a professora orientadora nos ofereceu o “banquete intelectivo” da Odisseia, convidando a cada um de nós a saborear dessa narrativa grega arcaica, somente para depois nos dar a oportunidade de descrever os gostos que cada um de seus episódios nos causou. Em nossa mesa, houve espaço para que os gostos de cada um se manifestasse e fossem, cada qual a sua

maneira, atendidos. Como em um banquete ideal da Odisseia, a festa era comandada por cada um de nós, conforme nossas necessidades discursivas iam se emaranhando com uma trama principal que, inclusive, emergia do próprio diálogo intenso sobre os episódios da obra e os episódios de nossa vida particular e profissional.

Penso que o resultado final desse curso também se manifestou de maneiras diferentes na trajetória de cada um dos convivas. Para mim, as trocas intensas do banquete ajudaram-me a me enxergar mais enquanto professor, numa espécie de exercício de rememoração de identidades, num momento importante da minha vida profissional.

Imagino que uma narrativa sobre essa nossa jornada de estudos também assemelhar-se-ia à própria origem dos poemas épicos da Ilíada e da Odisseia. Uma reunião de vozes e cantos com significados urdidos em diferentes períodos, entoando as experiências de sujeitos que se põem a conhecer e a lidar com diferentes temporalidades de maneiras distintas um do outro, conciliadas numa só narrativa por um poeta/escritor sensível a essa liquidez das ideias. Assim como possivelmente se propõe Homero quando se dispôs a rememorar, em uma só narração, aquilo que na cultura de seu povo era cantado de geração em geração nos banquetes por poetas anônimos.

Reunidas numa só narrativa.

Portanto, por mais que tivéssemos um A riqueza que queria alcançar

Várias vozes = traduzidas em uma só narrativa = CYntia é Homero! Mas também Alcino, que dá voz a todos, inclusive os marginalizados e desconhecidos, e quer aprender com a experiência alheia.

Em um banquete arquetípico da Odisseia, o próprio Anfitrião desiste do papel de “dono” do castelo. Está ali para receber os outros, propiciar conforto e segurança, e não para se sobrepor aos outros.

Além do sentido do banquete para o Saturnino, o professor também produziu outra narrativa, na qual usa o banquete como metáfora para expressar a educação e o fazer-se professor. Apresento essa narrativa em imagem monadológica para que vocês também possam, a partir da leitura, encontrar outros sentidos.