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FONTE: NAQUET, Pierre Vidal. 2002

Euricleia, acercando-se do amo, lhe deu banho, mas, súbito, reconheceu a cicatriz, que outrora um javali lhe fizera com sua alva defesa, quando ele fora ao Parnaso visitar Austólico e seu filho (HOMERO, 1981, p. 178).

Tal como a Euricleia reconheceu seu amo após 20 anos fora de casa, pela cicatriz encontrada no pé de Ulisses, também encontrei fortes marcas na minha memória com a leitura.

A escolha da Odisseia está ligada à minha história de vida, pois a leitura foi muito presente em casa, por isso, quando a escolhi, estava reencontrando-me com as minhas raízes. Quando criança, minha mãe tinha o costume de, todas as noites, escutar eu e meu irmão a lermos em voz alta, na sala de casa, vários livros

de literatura infantil. Tenho saudade desses momentos, lembro o tom da minha voz, entonações finas, grossas, altas e baixas, aguardando a expressão do rosto da minha mãe para a continuidade das leituras. Como a sala era grande, os sons faziam ecos e as histórias mergulhavam em nossas vidas, a tal ponto que todas as noites aguardávamos esse momento, como se fosse algo novo, que despertava sensações diferentes, mas, no fundo, eram as histórias que traziam em suas imagens outros sentidos. Inúmeros foram os livros de contos de fada em alto relevo e em várias dimensões (“Chapeuzinho Vermelho”, “Patinho Feio”, “A bela Adormecida”, “Pinóquio”, “Os três Porquinhos”, entre outros) que meu pai comprava. Ficava encantada só de olhar e passar a mão na capa para sentir os desníveis e mexer lentamente para ver as diferentes imagens que iam se formando e me aproximando lentamente da história que me aguardava. Talvez, na minha infância, não existiram dias que “vivi tão plenamente como aqueles que pensamos ter deixado passar sem vivê-los, aqueles que passamos na companhia de um livro preferido. [...]” (PROUST, 1991, p.9-10).

Tenho a coleção guardada e, outro dia, inspirada pela tese, li para meu marido cada história, revivi os personagens e as ilustrações chegavam ao meu pensamento muito antes de virar a página do livro: a sensação é de ter mergulhado naquele tempo. Hoje entendo por que essas narrativas vivem dentro de mim: na verdade, é “que eu vivo dentro delas”, sentimento parecido com o de Benjamim (1995), quando se deparava diante dos objetos que colecionava.

Já diziam os narradores dos contos de fadas34 que: um conto para

encantar deve levar os ouvintes ao prazer, à magia, ao riso, às lágrimas, oferecer uma [...] “imagem daquele que se lembra, assim como um bom relatório arqueológico,

34O conto de fadas sempre ensinou e continua ensinando às crianças que é melhor “enfrentar as

forças do mundo mítico com astúcias e arrogância [...] O feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como uma entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado” (BENJAMIN, 1985, p. 215).

deve não apenas indicar as camadas das quais se originam seus achados, mas também, antes de tudo, aquelas outras que foram atravessadas anteriormente” (BENJAMIN, 1987, p. 240).

Portanto, com a escolha da Odisseia para a tessitura desta tese, espero também despertar nos leitores o gosto pela literatura, mais especificamente, para a Odisseia. Acredito na importância de ultrapassar o “limiar” entre a literatura e história, produzindo conhecimento histórico-educacional em diálogo com os professores e na relação com a obra literária enquanto “evidência35 histórica” não

separada de seu contexto histórico, social, político e cultural, e, por isso, possibilitando estreitar a relação entre os diferentes saberes (históricos e literários) durante o processo de produção do conhecimento (THOMPSON, 1981). Nesse sentido, a dúvida imediata que pairou ao escolher a obra foi: é possível a leitura da Odisseia estimular os professores a rememorarem suas experiências vividas? Trazendo memórias involuntárias? Pensei nessa possibilidade, porque é o que ocorre na leitura do romance Em busca do tempo

perdido, quando Marcel Proust disse,

procurando equilibrar-me, firmei o pé numa pedra um pouco mais baixa do que a vizinha, todo o meu desânimo se desvaneceu [...]. Como quando provei a “madeleine”, dissiparam-se quaisquer inquietações com o futuro, quaisquer dúvidas intelectuais. [...] um azul intenso ofuscava-me os olhos, impressões de frescura, de luz deslumbrante rodopiavam junto de mim [...]. E logo a seguir, bem a reconheci, surgiu-me Veneza [...] e me era agora devolvida pela sensação outrora experimentada sobre dois azulejos desiguais do batistério de São Marcos, juntamente com todas as outras sensações àquela somadas no mesmo dia [...] (PROUST, 2004, p. 148-149).

35 “Evidência de comportamentos (inclusive de comportamento mental, cultural) acontecendo no

Quando li essa passagem, pensei não ser só Marcel Proust a sentir o balanço do chão, o leitor também vive as sensações sofridas pelo narrador. Assim, procurava uma leitura mágica da obra Odisseia, juntamente com os professores. Por isso, busquei pela literatura realizar uma leitura com os professores da obra entendida como documento histórico para despertar sensibilidades que estão sendo apagadas ou educadas com a modernidade capitalista.

Acrescento, ainda, que Benjamin também buscava inspiração na literatura para desvelar os modos de pensar e viver dos homens no tempo,36 ou

seja, a obra literária como uma possibilidade de revelação do instante, aquilo que reveste a linguagem humana enquanto memória capturada por imagens alegóricas. Considero que a literatura revela o emocional e o particular do universo da cultura e inspira a reestabelecer vínculos com o presente, a agir no tempo do agora e a recuperar, nas narrativas, as dimensões do inconsciente e consciente.

Dessa maneira, a literatura e a história iluminam-se mutuamente em um movimento de choque, para deixar recolher os “fragmentos e resíduos que são as imagens que o autor retira de seu interior por ´explosão`, como parte deste possível traçado constelacional” (LOWY, 2004, p. 14). Quais imagens os professores poderiam capturar na leitura da Odisseia? Será que conseguiriam recolher os fragmentos de suas experiências vividas? Os professores fariam uma viagem pelo labirinto de sua memória ao ler a Odisseia?

36Que se afasta do tempo vazio (abstrato) e sem sentido, dominado pelos valores burgueses, (século