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Ao palácio de Alcino se dirigiu Atena, a deusa de olhos brilhantes, meditando no regresso do magnânimo Ulisses. Penetrou no aposento artisticamente trabalhado, onde dormia a donzela semelhante às Imortais na estatura e no aspecto, Náusica, filha do Alcino. [...] Como um sopro de vento, a deusa deslizou até o leito da donzela, parou por cima de sua cabeça e dirigiu-lhe a palavra [...] Náusica, será possível que tua mãe tenha uma filha tão negligente? Teus vestidos de linho ondeado jazem ali em desordem. Teu casamento está próximo, no qual importa que te apresentes elegantemente vestida [...] vamos lavar, logo que desponte a Aurora. [...] pretendem tua mão o mais nobre de todos os Feáceos neste país, que também é o de tua família. [...] Atena retirou-se para o Olimpo [...] imediatamente sobreveio a Aurora de belo trono, que despertou Náusica de fino véu; a qual, admirada do sonho, correu através do palácio, para anunciar aos pais (HOMERO, 1981, p. 60).

O surgimento da proposta de pesquisa atravessa o meu percurso pela Unicamp. Havia cursado todas as disciplinas do Doutorado na Unicamp e frequentava o grupo de pesquisa “Kairós: educação das sensibilidades, história e memória”, coordenado pela orientadora da tese, Maria Carolina Bovério Galzerani, no Centro de Memória, da Unicamp, e tive o prazer de conhecer e estudar as obras de Walter Benjamin, um intelectual “inclassificável”, como dizia Hanna Arendt (1974).

31A dúvida era a seguinte: se, além dos encontros coletivos propostos, também faria entrevistas

Na disciplina “Memória, Modernidade Capitalista e Educação”, ministrada pela professora Maria Carolina, lembro que ela apresentou Benjamin de forma sutil para a turma, iniciou explicando ser um pensador alemão, nascido em 1892, pertencente a uma família judaica e abastada. Pai banqueiro e mãe filha de grandes comerciantes. A sua condição burguesa lhe permitiu formação intelectual, sendo autor de vários artigos desde os dezoito anos. Em universidades da Alemanha e da Suíça, dedicou-se ao estudo da filosofia. Viveu o período das duas guerras mundiais. Acompanhou a liquidação dos valores burgueses e o período nazista na Europa. Crítico, literário, tradutor, ficcionista e poeta, destacou-se na Escola de Frankfurt, mas dela distanciou-se, aprofundando-se nas leituras do materialismo histórico. Com o rompimento das relações entre a Alemanha e a França, em 1939, foi exilado da Alemanha e internado, apesar de doente, em um campo de concentração, de onde conseguiu sair devido à intervenção de colegas intelectuais franceses. Quanto à sua morte (1942),

há ainda controvérsias, pois, para alguns biógrafos, trata-se de um suicídio, como uma maneira que ele encontrou para evitar ser preso pelos nazistas no dia seguinte, enquanto outros, em menor número, levantam a discussão sobre a possibilidade de um assassinato (PETRUCCI-ROSA, 2012, p. 146).

A primeira leitura proposta pela professora Carolina para o grupo de estudo foi o texto a “Teoria do Conhecimento - Teoria do Progresso”, do livro

Passagens (2007), considerada, por mim, muito difícil, pois não conseguia

estabelecer sentidos com a minha pesquisa, que se preocupava com a formação continuada de professores.

Ao final desse dia dos estudos, saindo da Unicamp com a companheira Nara, com quem, durante o curso, compartilhei muitas angústias, alegrias, fomos à livraria do IEL (Instituto de Estudos de Linguística) para comprar a trilogia de

Benjamin. Pensei: “Nem comecei o doutorado e como vou entender os três livros:

Magia e Técnica, Arte e Política, Rua de Mão única e Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo? ”. Mal sabia que não ia viver sem essas obras durante a

construção da tese. Inclusive, ao escrever este capítulo, fui buscar um dos livros na cabeceira da minha cama para citá-los: O Narrador, que havia levado comigo na noite anterior.

A cada dia, descubro mais indícios no pensamento benjaminiano que me instigam a compreender o mundo. Benjamin (1985) dialogou com o seu tempo, rompendo nessa interlocução com os limites cronológicos temporais para sobrevoar com suas sensibilidades as condições da sociedade da sua época, o que torna fértil a sua leitura ainda hoje, visto que suas preocupações ainda se fazem presentes. Conheci, com esse autor, um pensamento aberto (plural), livre de dogmas, com uma preocupação aguçada sobre o mundo em que vivia e um olhar sensível com os diferentes sujeitos, invisíveis na sociedade da sua época (finais do século XIX e XX).

Uma das contribuições para minha formação como historiadora e professora, na área do ensino de História, foi o livro Magia e técnica, arte e

política: ensaios sobre literatura história da cultura, referente ao capítulo “Sobre

o Conceito de história”, produzido por Walter Benjamin em 1940, que me fez ressignificar a minha concepção de história e memória.

Além disso, participei, durante o primeiro ano do curso, dos seminários da linha de pesquisa do GEPEC, na Unicamp, onde a Carolina era uma das integrantes do grupo juntamente com a professora Ana Aragão e Guilherme Do Val Toledo Prado. As reuniões aconteciam quinzenalmente e os doutorandos e mestrandos, com a participação dos professores, apresentavam suas pesquisas ao grupo. Lembro que, quando apresentei a minha proposta inicial de projeto de pesquisa, o professor Guilherme, como leitor crítico do trabalho, falou-me: “Você quer falar

sobre professores ou quer falar com os professores? ”. A pergunta soou como eco que ficou na minha cabeça, fui embora com ela para casa.

A professora Carolina também me perguntou: “Para que eu queria pesquisar sobre formação continuada de professores: apenas para saber ou para viver isso do lugar de formadora/professora na relação com o outro? ”.

As leituras de Walter Benjamin, as orientações da professora Carolina e a contribuição do professor Guilherme foram fundamentais para eu passar a enxergar para além da racionalidade instrumental circundante. Passei a conhecer possibilidades metodológicas longe de modelos cientificistas, tive oportunidade de conhecer outras maneiras de pesquisar, tendo em vista que Walter Benjamin também não se enquadrava a regras, nem ao campo “objetivo”.

Portanto, ao longo das aulas com a professora Carolina, bem como os estudos dos grupos “Kairós” e o GEPEC, o meu olhar foi se transformando e deslocou-se para as seguintes preocupações: “descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total” (BENJAMIN, 2007, p. 503).

As reflexões aguçaram algumas questões adormecidas ao longo da minha trajetória docente, tais como: o problema da falta de diálogo32 e a perda das

experiências entre os professores da Educação Básica nos cursos de formação continuada. A princípio, pretendia trabalhar com a história oral no doutorado, porém, ficava inquieta, no sentido de encontrar outras maneiras de conhecer os terrenos das memórias.

Após quase um ano e meio no doutorado e angustiada em como realizar a pesquisa, entre o sono e a vigília, flagrei, em “sonho”, uma linda madrugada de lua cheia, um relâmpago em meu pensamento, o clarão abria-se para as exigências do agora33. Foi o momento do “despertar do sonho” diante de uma imagem que se

32Quando passei a convidar os professores para construirmos juntos a pesquisa, esse fato ficou

mais evidente.

formava num “lampejo, como uma constelação. [...] uma imagem, que salta”. Eis a imagem da obra Odisseia, de Homero, surgindo esvoaçante e trazendo consigo uma possibilidade para a construção do meu caminho metodológico da tese. Em seguida, escrevi a ideia, pois “a imagem passa velozmente e a captura é um instante” (BENJAMIN, 2007, p. 504).

A partir disso, desenhou-se, mansamente na calada da noite, todo o percurso metodológico em minha cabeça, inspirada na Odisseia. Encontrei uma nova configuração para trazer as experiências dos professores ao embarcarem na arte de narrar as suas vidas. A obra Odisseia surgiu como alegoria e possibilidade de imprimir as palavras dos professores. Como o pensamento benjaminiano que trata da alegoria do cristal, que, na possibilidade do estilhaço, delineia-se a descontinuidade do fragmento para a construção de “outras” imagens. Outras imagens se formaram, comecei a estabelecer elos entre a minha história de vida com a literatura, e essa é outra história.

antecipadamente, em que o inesperado e as oportunidades não previstas podem surgir a qualquer momento.