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Mas por que é importante considerar a Odisseia para o desenvolvimento do projeto de pesquisa “O canto da Odisseia e as narrativas docentes: dois mundos que dialogam na produção do conhecimento histórico-educacional”?. Qual a relação entre a Odisseia com as preocupações sobre a narrativa, experiência e memória? Por que articular essas discussões junto com a perspectiva benjaminiana? Onde se encaixa, nesse debate, a formação de professores? Mas por que a preocupação com a memória, narrativa e experiência?

Walter Benjamin, nos ensaios “O Narrador” (1985) e “Experiência e Pobreza” (1985), alerta para o fato de que o ato de narrar histórias, assim como as experiências, está a cada dia se extinguindo.

No seu texto “Experiência e Pobreza”, ele nos instiga a refletir sobre a narração na modernidade: o que aconteceu com a narrativa? As pessoas ainda sabem contar histórias? E hoje, os moribundos ainda

dizem palavras tão duráveis que possam ser transmitidas de geração em geração como se fosse um anel? A quem ajuda, hoje em dia, um provérbio? Quem sequer tentará lidar com a juventude invocando sua experiência? (BENJAMIN, 1985, p. 140).

Esses questionamentos oferecem algumas referências para compreendermos a noção de “experiência” (Erfahrung). Quanto à experiência, no sentido benjaminiano, esta não se desvincula da temporalidade compartilhada entre várias gerações e pressupõe uma tradição comum, retomada na continuidade da palavra transmitida de pai a filho.

Em oposição ao tempo vazio e marcado pelo relógio, no capitalismo moderno, a continuidade da tradição e a noção de temporalidade das sociedades artesanais é interrompida e, com isso, a tradição também se rompe. Tradição que

não é simplesmente algo inerente à religião, mas pertencente a uma prática comum; portanto, as histórias contadas pelo narrador tradicional não se restringem ao ato de ler e ouvir. Muito além dessa perspectiva, as histórias partilhadas também são seguidas, o que implica entendermos que são formativas (Bildung)43 para todas as

pessoas pertencentes a mesma comunidade (GAGNEBIN, 2011).

A narrativa tratada pelo autor berlinense é concebida como transmissão de experiências entre diferentes gerações, fundada na circulação das

tradições coletivas, de sensibilidade, na acepção plural de verdade, na relação do narrado com o vivido, na dimensão mais ampla de sujeito, de ser humano (portador de consciência e inconsciência), e, sobretudo, na recuperação da temporalidade (GALZERANI, 2004, p.296).

Para Galzerani (2004a) a narrativa que não se aparta da memória e não existe sem as pontes entre passado, presente e futuro.

Ulisses, após suas viagens cheias de descobertas e encontros com os desconhecidos, sai mais rico em experiências e histórias, ou seja, com sabedorias a partilhar. Essa arte de contá-las e recontá-las, infelizmente, perde-se com o passar dos anos, quando as histórias não são mais conservadas. Hoje ninguém mais fia ou tece enquanto ouve uma história. Desaparece também o ouvinte, ouvintes como aqueles que Ulisses encontrou no palácio de Alcino, os quais, depois de longas horas contando a sua história, continuavam encantados e diziam:

Diante de nós estende uma noite infinita; em palácio, ainda não são horas de dormir; peço-te que narres as gestas divinas. Se quisesses relatar as provações suportadas, escutar-te-ia até que surgisse a Aurora (HOMERO, 1981, p. 107).

43 Para o debate sobre bildung na perpectiva benjaminiana, o livro a seguir possibilita uma reflexão

teórica profícua. MITROVICH, Caroline. Experiência e Formação em Walter Benjamin. São Paulo: Editora da Unesp, 2011.

A Odisseia é, para Benjamin e Lukács, o modelo originário da narrativa tradicional, pois é perceptível que, junto ao prazer de contar e lembrar, corresponde o prazer de escutar e aprender com as histórias. Mas o narrador como Ulisses não pode existir mais. Na Odisseia, o ato de lembrar e contar é a capacidade infinita de sociedades regidas por ritmos de trabalho coletivo e descanso, radicalmente contrários ao sistema capitalista. O dom narrativo para os homens da modernidade não encontra nenhum lugar para ser partilhado, nem mesmo condições, muito menos pessoas para ouvir histórias (GAGNEBIN, 2014).

Parafraseando Benjamin, o que aconteceu com tudo isso? Ocorre que, na modernidade, com o avanço do capitalismo, a vida em sociedade, particularmente entre as diferentes gerações, modificou-se como um precipício, as condições do viver urbano mudaram demasiadamente, em um ritmo aceleradíssimo, não possibilitando a assimilação de tais transformações pelos sujeitos.

Tendo em vista, ainda, que o capitalismo na modernidade assume o tempo a partir da sua dimensão econômica, ou seja, o tempo é dinheiro, com isso, a memória também se modifica, implicando no declínio do lembrar infinito e coletivo do tempo. Assim, ocorre a ascensão de narrativas individuais de sujeitos que vivem isolados na sociedade e voltam sua vida para lutar pela sobrevivência e alcançar sucesso econômico. Daí, a memória coletiva comum se encurta, dividindo-se em lembranças soltas de histórias circunscritas às particularidades, relatadas por escritores solitários, e, também, lidas por pessoas solitárias: eis o que nós conhecemos como romance.

Portanto, com o avanço da modernidade não encontramos os narradores tradicionais presentes entre nós. As pessoas estão com dificuldade de narrar algo sem embaraços e generalizações. O sujeito está desprovido da capacidade de intercambiar experiências que pareciam seguras e intransferíveis em outros tempos (época em que os artesãos teciam seus trabalhos manualmente, contavam aos seus aprendizes histórias dos seus costumes e de suas tradições, enquanto os

viajantes, no retorno à sua terra, narravam histórias de culturas diferentes e distantes que haviam conhecido) (BENJAMIN, 2011).

O caráter de comunidade entre vida e palavra encontra seu germe nas sociedades artesanais, cujos ritmos de trabalhos são lentos e opõem-se ao trabalho no modelo de produção industrial. Além disso, o caráter do trabalho é totalizante, contrapondo-se ao trabalho em série (fragmentado) da indústria. Assim, o ritmo de trabalho artesanal, inscreve-se em uma temporalidade, a de que o tempo é excedente para contar. O movimento das mãos dos artesãos nos remete a imagem respeitosa daquilo que é transformado, ou seja, há uma relação profunda com o ato de narrar: já que a narrativa é uma maneira de dar os contornos necessários à infinita atividade narrável em uma relação imbricada entre a mão e a voz, o gesto e a palavra.

Existe uma dimensão utilitária da narrativa fundada pela comunidade da experiência. O ancião, quando chegava bem próximo da morte, assumia a figura de depositário privilegiado de uma experiência que transmitia às gerações mais novas. O ápice da prática de aconselhar encontra-se na figura do moribundo, que, no limiar da morte, aproximava-se de dois mundos: o familiar, pertencente ao mundo dos vivos e o “outro” mundo, aquele desconhecido tanto por ele, como pelos familiares e seus conhecidos. A imagem do moribundo, no leito da morte, também pode ser comparada com a figura do viajante (narrador), que vem de terras longínquas. Ambos são “aureolados por uma suprema autoridade que a última viagem lhes confere” (GAGNEBIN, 2011, p. 58). Assim, “o moribundo é a última figura do viajante, daquele que nos coloca em relação com o longínquo, essa relação de distância e de aproximação que está na base da narração” (GAGNEBIN, 2014, p. 225).

Para esse entendimento, o texto “Experiência e Pobreza” (1985) inicia- se com uma narrativa lendária de um ancião que conta, no leito da morte, aos seus filhos, que havia um tesouro escondido em seus vinhedos. Logicamente, eles

começaram a cavar a terra, mas não encontram nenhuma pista. Porém, com o outono, as ditas vinhas do falecido pai produzem demasiadamente, comparadas a outras regiões. Então, vieram a compreender que o pai havia passado uma experiência: o trabalho, e não o ouro, como supostamente haviam pensado. A riqueza tratada não se deve à acumulação de dinheiro, mas ao relato do pai transmitido aos filhos no leito da morte sobre a sua experiência do trabalho. Esse conto antigo do vinheiro deixa um ensinamento: o aprendizado por meio da experiência passada pelos anciãos às gerações mais novas.

Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos: Ele é muito jovem, em breve poderá compreender. Ou: Um dia ainda compreenderá. Sabia exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, diante da lareira, contadas a pais e netos (BENJAMIN, 1985, p. 114).

Benjamin revela uma experiência que requer a transmissão como um modo de orientar as sucessivas gerações. Há uma filosofia voltada para o saber prático, plural e fundador da narração. Além disso, a imagem do moribundo que transmite um saber remete também a outra relação: narração e morte, em outras palavras, a morte empresta ao ancião sua autoridade, em dois sentidos: o poder normativo e a instituição de um autor (GAGNEBIN, 2014).

No entanto, as pessoas mais “velhas”44, na sociedade moderna, não têm

espaços, seus discursos são desconsiderados, não são ouvidos, e quando narrados, enquadrados como inúteis.45

44 Parei para pensar essa relação com os professores que têm 25 a 30 anos em sala de aula: como

são vistos por seus colegas de trabalho? E nos cursos de formação continuada? E por seus alunos? E pela sociedade? Busquei flagrar nas mônodas apresentadas no Capítulo 4 essa questão.

45Essa discussão é aprofundada com a autora Ecléa Bosi, na obra Memória e Sociedade: Lembranças

Há uma tendência prevalecente entre os jovens na modernidade a respeito do conselho, muitos não querem ouvi-los, pois vivem isolados, em um mundo fechado e particular, não encontram na narrativa uma experiência coletiva, não vivem em comunidade, nem mesmo desfrutam de um tempo partilhado, ou seja, não compartilham do mesmo universo de práticas culturais e linguagem.

Além disso, as transformações na concepção de tempo e a forma como o homem moderno lida com a morte modificaram profundamente a possibilidade de narrar. A sociedade burguesa junto com as instituições higiênicas e sociais, privadas e públicas, encaram a morte de forma diferente do passado: poupam o sujeito moderno de participar com o “outro” a passagem da vida para a morte, parafraseando Benjamin, de “participar do espetáculo da morte”. Antes, morrer era um momento público na vida das pessoas e entendido como algo exemplar: “recordem-se as imagens da Idade Média, nas quais o leito de morte se transforma num trono em direção ao qual se precipita o povo, através das portas escancaradas” (BENJAMIN, 1985, p. 207).

Exemplar e/ou autoridade é a expressão que assume a morte,

pois no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens-visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso. Assim, o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade. A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. É da morte que ele deriva sua autoridade. (BENJAMIN, 1985, p. 207-208)

Ao contrário do caráter exemplar e/ou autoridade, a morte, na modernidade, é cada vez mais expulsa do mundo dos vivos. Se levarmos em consideração que, nas sociedades pré-capitalistas, praticamente não existia nenhuma residência que não tivesse acolhido um morto, quando olhamos para os dias de hoje, percebemos ao contrário: os espaços são depurados de qualquer

vínculo com a morte. Mas como isso é possível? O limiar entre a vida e a morte acontece em hospitais e hospícios, locais onde o moribundo é entregue pelos seus herdeiros. Portanto, na modernidade, a experiência está empobrecida também pelo fato de que, no leito da morte, o saber e a sabedoria do homem não têm mais espaço e pessoas para escutarem o conselho, ou seja, ouvirem uma narrativa que merece ser transmitida às futuras gerações (BENJAMIN, 1985).

Inspiro-me aqui em Jeanne Marie Gagnebin, na análise feita no prefácio do livro Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da

cultura, de Walter Benjamin (1985), em que ela traz o conto “Uma mensagem

imperial” de Franz Kafka, para mostrar a imagem da morte na modernidade usada por Benjamin.

O imperador — assim dizem — enviou a ti, súdito solitário e lastimável, sombra ínfima ante o sol imperial, refugiada na mais remota distância, justamente a ti o imperador enviou, do leito de morte, uma mensagem. Fez ajoelhar-se o mensageiro ao pé da cama e sussurrou-lhe a mensagem no ouvido; tão importante lhe parecia, que mandou repeti-la em seu próprio ouvido. Assentindo com a cabeça, confirmou a exatidão das palavras. E, diante da turba reunida para assistir à sua morte — haviam derrubado todas as paredes impeditivas, e na escadaria em curva ampla e elevada, dispostos em círculo, estavam os grandes do império —, diante de todos, despachou o mensageiro. De pronto, este se pôs em marcha, homem vigoroso, incansável. Estendendo ora um braço, ora outro, abre passagem em meio à multidão; quando encontra o obstáculo, aponta no peito a insígnia do sol; avança facilmente, como ninguém. Mas a multidão é enorme; suas moradas não têm fim. Fosse livre o terreno, como voaria, breve ouviria na porta o golpe magnífico de seu punho. Mas, ao contrário, esforça-se inutilmente; comprime-se nos aposentos do palácio central; jamais conseguirá atravessá-los; e se conseguisse, de nada valeria; precisaria empenhar-se em descer as escadas; e se as vencesse, de nada valeria; teria que percorrer os pátios; e depois dos pátios, o segundo palácio circundante; e novamente escadas e pátios; e mais outro palácio; e assim por milênios; e quando finalmente escapasse pelo último portão — mas isto nunca, nunca poderia acontecer — chegaria apenas à capital, o centro do mundo, onde se acumula a prodigiosa

escória. Ninguém consegue passar por aí, muito menos com a mensagem de um morto. Mas, sentado à janela, tu a imaginas, enquanto a noite cai (BENJAMIN, 1985, p. 58).

O conto mostra como a tradição está esfacelada na modernidade, pois o moribundo transmitiu a mensagem preciosa, cautelosamente, ao mensageiro. Porém, esta jamais será transmitida aos súditos, tendo em vista que o caminho é infinito para a transmissão e a multidão impede suas passadas, tornando a sua tarefa impossível de ser realizada. O que vemos é uma mensagem perdida em um percurso sem fim, deixando visível a impossibilidade de narrar, marcando a narração da modernidade.46

Ora, se a face da morte sofreu modificações com a modernidade capitalista e empobreceu a experiência de morrer é porque a transmissão da experiência se perdeu, tal como aconteceu com a narrativa (BENJAMIN, 1985).

Se identificarmos uma relação essencial entre o morrer e o narrar, trata-se, então, de construir uma nova relação com a morte, tanto no aspecto ligado à sociedade, como no que concerne ao individual, à morte quanto ao processo de morrer (GAGNEBIN, 2011).

Tendo em vista as experiências no período pré-capitalista constituírem os sujeitos, a perda da experiência concomitante com a narrativa desemboca na falta da orientação prática das pessoas. A incapacidade de receber ou dar conselhos (algo que não é intervir no modo de viver do “outro”, mas que conta sobre um saber) acarreta na desorientação das pessoas e leva o sujeito a reencontrar, no “herói solitário do romance, forma diferente de narração que Benjamin, após a

46Apesar disso, Kafka buscou transmitir a experiência moderna do fim da narração e da ausência

de conselho, a sua desorientação, em uma linguagem da tradição. Ela traz o movimento da abertura (não intervém na sua narrativa, se faz esquecer) e busca, no avesso do nada, apalpar a redenção, por isso, é entendida por Benjamin como uma nova forma de narração, ou seja, uma narração moderna.

Teoria do romance, de Lukács, analisa como forma característica da sociedade burguesa moderna” (GAGNEBIN, 1985, p. 11).

Benjamin preocupa-se com a morte da narrativa nos seus dois ensaios, porém, em “Experiência e Pobreza”, ajuda-nos a refletir acerca dos efeitos da Primeira Guerra Mundial e a relação com o declínio da experiência e da narração, pelo fato de os soldados retornarem praticamente emudecidos da guerra.

É notável, na reflexão benjaminiana, que os combatentes não deram conta de assimilar as forças que imperaram sobre a sua vida de forma tão rápida pela poderosa técnica, que logo se manifestou como uma experiência de choque (conceito construído a partir das ideias de George Simmel), impossível de traduzir em palavras. Esse fato ficará mais evidente nas leituras de Freud (1920-1996), que, na mesma época, acompanhou os soldados que viveram essa experiência e não conseguiam colocar suas lembranças em uma ordem simbólica. As observações freudianas voltaram-se para o seguinte diagnóstico: trauma, ou seja, os soldados ficaram traumatizados, correspondendo, no pensamento benjaminiano, à palavra choque. Choque que impossibilita o sujeito de lembrar e contar dentro de uma linha de raciocínio produtor de sentido.

Porém, algo nos surpreende para compreender ainda mais esse fato (ausência de palavras e esfacelamento da narrativa): nesse ensaio, Benjamin nos chama a atenção para o comportamento da burguesia (século XIX e XX), pois, quando as perdas das referências coletivas foram ficando latentes, a classe burguesa busca aconchego e calor no refúgio de suas casas, ou seja, há uma espécie de interiorização.

Essa pobreza de experiência leva a uma nova barbárie47. Mas o que de

fato implica essa pobreza de experiência? O sujeito fica preso às artimanhas da

47A barbárie está inserida no próprio conceito de cultura: como conceito de um tesouro de valores

modernidade, como um invólucro que não permite olhar para os lados. Nessa condição, tem dificuldades de aspirar novas experiências, busca libertar-se delas, almeja um mundo em que possa apenas exibir sua pobreza externa e interna. Esse sujeito é permeado por uma fugacidade cotidiana, marcado pela perda da memória, da identidade, da sensibilidade, da tradição, entre outros, provocando o aparecimento de um novo conceito de experiência, ao contrário do (Erfahrung), chamado de vivência (Erlebnis), que remete à vida particular do indivíduo, em sua inefável preciosidade, mas também em seu isolamento.

Na obra Paris, Capital do Século XIX, Benjamin (2007) também traz a imagem da modernidade engendrada por uma cultura pobre, não apenas no aspecto social, como no arquitetônico. A interiorização mental está atrelada à espacial: a arquitetura começa a valorizar o interior. Assim, as residências são construídas à imagem do indivíduo, em “casas de vidro”, ajustáveis e móveis. O vidro é o material dessa cultura.

Mas, afinal, qual representação traz o vidro com o avanço da modernidade? Tal como o homem moderno desse tempo, o vidro desmistifica qualquer segredo, privacidade e segurança. Ao contrário disso, o vidro é duro, liso, frio e sóbrio, sobre o qual nada se fixa. Por conseguinte, os materiais de vidro não apresentam aura. As marcas no vidro são fáceis de serem removidas, as pegadas das pessoas não ficam marcadas após sua limpeza. Ocorre uma despersonalização generalizada do burguês, porém, ele busca encontrar um remédio para essa frieza, por meio da posse pessoal e personalizada acerca de todas as coisas que lhe pertence, como: seus sentimentos, seus filhos, seus objetos pessoais (gravados com o nome) e o interior (móveis) de sua casa. Enfim, a busca de deixar rastros com tudo que se ligava à sua intimidade, mas que desapareceu do espaço público. A personalização de seus objetos tinha como propósito minimizar o anonimato e

do processo no qual eles sobrevivem. Desta maneira, servem à apoteose de último, não importando, o quão bárbaro possa ser (BENJAMIN, 2007, p. 509).

deixar suas marcas, um puro desejo de manter a aparência de uma intimidade intersubjetiva.

Mesmo entendendo como algo compreensível essa atitude, é ilusória e, ao mesmo tempo alienada, é uma falsa impressão, pois o homem moderno não consegue mascarar, nem solucionar a questão da divisão clara entre o espaço público e o privado, divisão essa não existente, se retomarmos o fragmento do poema da Odisseia que abre a introdução dessa tese.

Concomitante a essas mudanças, aparecem tendências no âmbito das artes. Por essa via, o diálogo de Benjamin é fértil com as obras de Brecht, Paul Klee, Kafka e Baudelaire acerca da modernidade. Traz o exemplo do Mickey Mouse para mostrar que tal arte, enquanto “nova barbárie”, não inventa ilusões confortantes, ao contrário, o camundongo é um dos desejos do homem moderno e a sua existência é algo repleto de milagres, não apenas ultrapassam a dimensão dos milagres técnicos, como também os ironiza.

Pois o mais extraordinário neles é que todos, sem qualquer improvisamento, saem do corpo do camundongo Mickey, dos seus aliados e perseguidores, dos móveis mais cotidianos, das árvores, das nuvens e lagos. A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que veem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga numa