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O CALEIDOSCÓPIO DE MÔNADAS DAS NARRATIVAS DE VIDA E AS IMPRESSÕES DA PESQUISADORA

Rapsódia XXIV Na morada de Hades A paz: Ulisses vai ao campo, onde

COMEÇAREI A DECLARAR MEU NOME PARA QUE CONTINUE A SER SEU HÓSPEDE

4 AS PARADAS DA VIAGEM EM IMAGENS MONADOLÓGICAS NARRATIVAS DE HISTÓRIA DE VIDA

4.10 O CALEIDOSCÓPIO DE MÔNADAS DAS NARRATIVAS DE VIDA E AS IMPRESSÕES DA PESQUISADORA

Construir o conjunto monadológico, eis o desafio da pesquisadora. Como ressignificar as mônadas? Uma tarefa que não tem receitas prontas, mesmo assim, saio em busca de pistas benjaminianas, encontro a mônada “Rosquinha, pena, pausa, queixa, futilidade” (1987), em que Benjamim rememora um jogo infantil alemão, na época do romantismo burguês, século XIX, onde o jogador recebia um conjunto de palavras e precisava organizá-las em um texto compreensível de tal maneira que sua ordem não fosse alterada. Orientava que, para isso, o texto mais curto e o uso de poucos mediadores facilitaria a organização. Para as crianças, as palavras são como “cavernas, entre as quais conhecem curiosas linhas de comunicação”. Pensando agora ao contrário; “olhe-se para uma dada frase como se fosse construída segundo a regra do jogo. De golpe, ela deveria nos brindar com uma visão estranha e excitante. Contudo, uma parcela desta visão está encerrada em todo ato de ler”. O leitor culto está sempre à espera de “locuções e palavras”, quanto ao significado das mesmas, é somente o “suporte” do qual descansa à sombra que elas lançam como se fossem imagens em planos diferentes. Benjamin traz o exemplo de como uma criança de 12 anos ligaria as palavras: rosquinha, pena, pausa, queixa, futilidade. “O tempo se lança através da natureza feito uma rosquinha. A pena colore a paisagem e se forma numa pausa que é preenchida pela chuva. Não se ouve nenhuma queixa, pois não há nenhuma futilidade” (BENJAMIN, 1987, p. 272). A relação que a criança estabelece com as palavras é de ordem

espiritual, não em uma dimensão lógica. Portanto, a criança recria a experiência vivida.

Pensei, nesse momento, inspirar-me na busca de um perfil infantil, guardado em minhas memórias para ressignificar as experiências vividas, presentes nas imagens monadológicas. Assumir essa condição, acredito, é aceitar o inacabamento dos sujeitos, bem como encarar o desafio de produzir novos sentidos, não se trata de refazer as experiências a partir de olhares moralizadores, mas encontrar brechas para as mônadas poderem trazer imagens de sonhos, desejos, sentimentos, conflitos, contradições, incompletudes dos professores, sem passar pelo filtro controlador da pesquisadora, deixando vir à tona toda a intensidade da vida. As mônadas são centelhas de sentidos que tornam as narrativas dos professores mais que comunicáveis, sobretudo, experienciáveis (PETRUCCI-ROSA, 2012).

O conjunto monadológico dessa viagem revela as tensões, as contradições e a singularidade das experiências da Alice, Minerva, Cleópatra, Sherazade, Tessália, Saturnino, Galateia e Ariadne, articulada com o universo sociocultural mais amplo e o olhar carregado de subjetividade dessa pesquisadora/professora. Eis o brilho da mônada: trazer a potencialidade das imagens constelares.

As mônadas que trazem as histórias de vida possibilitam-nos mergulhar no vivido e perceber as marcas da experiência, do enraizamento dos professores e compreender esses sujeitos na sua inteireza. Busco Elison Paim, quando, em diálogo com Benjamin, aponta as contribuições do seu pensamento para falar em formação de professores e memórias:

Benjamin nos instiga a pensarmos como as memórias dos professores podem contribuir para o seu fazer-se. Possibilita que questionemos em que medida as memórias de formação escolar, de suas vidas, de sua construção como cidadãos, como profissionais da

educação, podem contribuir para que a academia passe a conhecer e respeitar os professores e professoras. E, mais do que isto, pensar em que medida os próprios professores e professoras podem se fortalecer, respeitando-se mais, em contato vivo com suas próprias memórias e ensinando a academia a conhecê-los e respeitá- los? (PAIM, 2005, p. 177).

A imagem de memória benjaminiana, nessa pesquisa, fortaleceu-nos enquanto seres humanos, possibilitando enxergarmo-nos como pessoas inteiras, portadoras de dimensão racional, afetiva, sensível, consciente e inconsciente.

Os momentos dos encontros foram muito férteis e fortaleceram as relações entre os professores, por meio de narrativas orais das histórias de vida, que possibilitaram o convívio entre as gerações, e da partilha de conhecimento regado na experiência.

As mônadas trazem as reminiscências dos professores que se reportam a períodos de formação, vividos em paisagens brasileiras, rurais e urbanas em Cornélio Procópio, Londrina, Congonhinhas, Nova Fátima, no estado do Paraná, ou, ainda, no estado de São Paulo, nas cidades de Pirajuí, Presidente Alves, Piedade e São Carlos.

Cleópatra e Ariadne são professoras que carregam uma vasta experiência, tendo em vista terem ambas em torno de 30 anos de docência, portanto, enquanto rememoravam, teciam uma narrativa experimentadora da beleza de compartilhar suas histórias coletivamente.

Focalizamos histórias ligadas à macro-história, possibilitando aos ouvintes o contato com outros tempos, por exemplo, do período da ditadura militar presente nas mônadas “Entendi por que não podia falar em sala de aula” e “Na época do ginásio eu não sabia o que era período militar”, época na qual o nacionalismo era exacerbado no seguinte aspecto: exaltação da pátria, dos símbolos cívicos e dos desfiles públicos.

Ambas encontraram uma escuta sensível, a rememoração oxigenou suas vidas, a Tessália, ao se debruçar sobre suas memórias, despertou um interesse anterior de construir a árvore genealógica da família. Com essa experiência, comentou que, no futuro, irá fazer um álbum de família pelas lentes fotográficas, algo que não será comercializado, mas compartilhado com seus familiares. A Cleópatra também se envolveu muito com a proposta de abrir a sua caixinha de lembranças e trouxe memórias oralizadas que se entrecruzaram simbolicamente com fotografias memorialísticas, produzidas na década de 1970 e 1980. Apresentou, ainda, um quadro com várias fotografias que trouxeram suas experiências à tona, levou para os colegas para a sua apresentação e, hoje, esse quadro encontra-se na parede de sua casa. A Ariadne mergulhou na profundeza de suas memórias familiares, trazendo, à tona, os detalhes, o passado e o presente se entrecruzaram de forma emotiva, de tal maneira que, ao final de sua rememoração, as dobras das palavras sumiram e as lágrimas tomaram conta do momento consumado pela intensidade de uma experiência ressignificada no presente (mônada “Quando você tem uma visão crítica da história”).

Não é necessário viver a realidade da Tessália, Ariadne e Cleópatra para nos identificarmos com suas experiências formativas: nas narrativas, experimentou-se a vida do “outro”. As expressões gestuais, os pormenores das palavras, os tons suaves das vozes e a explosão das narrativas possibilitaram-nos sentir as sensações do presumido impalpável.

Os professores que puderam ouvi-las também aprenderam com as experiências compartilhadas e cruzaram as memórias das professoras com suas memórias de família. Apesar da professora Alice e o Saturnino terem nascido após o período da ditadura militar, quando a Cleópatra contava alguns acontecimentos, eles comentavam terem também ouvido dos seus pais histórias semelhantes. As histórias dos professores se entrecruzavam e um fio ia puxando o outro. Outrossim, a professora Sherazade trouxe em suas memórias tais

acontecimentos, ligados à sua família, na mônada “Fugimos da perseguição da ditadura no Brasil: somos judeus”. Momentos vividos como nos conta Walter Benjamin (1985, p.201) que o narrador “extrai da sua experiência própria ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história”.

A acepção de experiência benjaminiana foi colocada em ação em nossos encontros com os professores, aquela pela qual nos deixamos tocar, somos tocados e saímos transformados: “esta pode ser hostil ao espírito e aniquilar muitos sonhos que florescem. Todavia é o que existe de mais belo, intocável e inefável, pois ela jamais será privada do espírito se nós permanecermos jovens” (BENJAMIN, 1984, p. 25).

Infelizmente, momentos como esse de partilha das experiências estão em declínio nos cursos de formação continuada, pois não se abrem espaços para os professores mais “velhos”67 (experientes) rememorarem, nem reconhecerem, no

professor com maior tempo de docência, os guardiões da experiência, da tradição. Ao contrário: muitas vezes são vistos como ultrapassados, “desatualizados” e um “peso” dentro do sistema escolar. “A velhice desgastada, ao retrair suas mãos cheias de dons, torna-se uma ferida no grupo” (BOSI, 1994, p. 83).

Por isso, muitos deles, ao participarem de processos formativos, escondem-se, apagam-se e encolhem-se, e

impedidos de “lembrar e ensinar, sofrendo as adversidades de um corpo que se desagrega à medida que a memória vai-se tornando cada vez mais viva, a velhice, que não existe para si, mas somente para o outro. E este outro é um opressor. Destruindo os suportes materiais da memória, a sociedade capitalista bloqueou os caminhos da lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus rastros (BOSI, 1994, p. 19).

67 A expressão velhos, neste trabalho, é para designar os professores entre 30 anos de docência,

Trago para esse diálogo Ecléa Bosi e a sua obra Memória e Sociedade, que encharca de vida a memória dos velhos, alertando-nos de que o desaparecimento da voz da experiência é uma perda para todos, levando ao empobrecimento da nossa cultura.

Na mônada “Tudo começou com os livros”, focalizamos a professora Cleópatra trazendo uma imagem carregada de memória política. Após ter vivido a ditadura militar e entendido sobre os acontecimentos da época com a ajuda de um familiar militante, percebemos o dito por Walter Benjamin: “inimigo não tem cessado de vencer”, ou seja, a ideologia dominante triunfando em seus discursos oficiais, todos que venceram fazem parte “do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são o que chamamos de bens culturais” (BENJAMIN, 1985, p. 225).

O autor alerta de que o perigo é o sujeito se entregar às classes dominantes como seu instrumento. Contrariamente a essa atitude, Cleópatra desvela cenas de resistências na mônada “Trabalhadores de todo mundo uni-vos”, ao salvar os livros proporcionadores de leituras para conhecer e opor-se ao sistema dominante (ditadura). Em um segundo momento, joga no vaso sanitário alguns livros para não correr o risco de ser presa pelo sistema ditatorial, na época, censurador da leitura de livros considerados subversivos, como aquele de que ela estava de posse “Proletário de todo mundo uni-vos”. Este, no entanto, ela conseguiu salvar e levou no dia de sua apresentação. Flagramos memórias-conhecimentos ambivalentes que se ressentem pelos acontecimentos da época e, ao mesmo tempo, anunciam movimentos de mobilização e resistência, como na mônada “Não aceitava o que lia”, devido à censura, falta de liberdade de expressão e perpetuação do poder durante o regime ditatorial.