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Depois de se terem fartado de beber e de comer, o engenhoso Ulisses falou para Demódoco: Demódoco, és de todos os mortais aquele a quem mais reverencio: ou a Musa, filha de Zeus, te ensinou teus cantos, ou Apolo; pois cantas com requintada arte os reveses dos Aqueus, suas proezas, seus sofrimentos, seus trabalhos, como se os tivesse presenciado ou ouvido cantar a alguma testemunha. Mas, prossegue, muda de assunto, canta a história do cavalo de madeira, construído por Epeu com a ajuda de Atena e que o ilustre Ulisses arteirosamente introduziu na acrópole, pejado de guerreiros, que saquearam Ílion. Se me contares este feito em todos os seus pormenores, proclamarei, à face de todos os homens, que uma divindade, tua protetora, te outorgou teu canto divino. Assim falou e o aedo, inspirado por um deus, começou a entoar seu canto [...]. Entrementes o coração de Ulisses ia desfalecendo, e as lágrimas, correndo das pálpebras,

umedeciam-lhes as faces. [...] A todos passou despercebido que estava chorando; Alcino, que se encontrava sentado junto dele, foi o único que o viu e notou, ao perceber-lhes os profundos gemidos. Ato contínuo, disse aos Féaces, amigos do remo: Que Demódoco cesse de tocar a sonora lira [...]. Dize por que choras e gemes no segredo de seu coração, quando ouves cantar as desgraças de Ílion. [...] perdeste acaso, diante de Ílion, algum parente esforçado, algum genro ou sogro? São estas as pessoas mais caras, depois das que nos estão ligadas pelos laços do sangue e pela estirpe. Ou talvez algum denodado companheiro, que te estimava? Porque o companheiro cordato vale tanto como um irmão (HOMERO, 1981, p. 80).

O fragmento do poema acima flagra o momento em que o rei Alcino interrompe o canto do aedo Demódoco sobre o famoso cavalo de pau, construído por Ulisses, na Guerra de Troia, e questiona Ulisses acerca da sua sensibilidade. Esse episódio é um dos mais emocionantes da obra pelo fato de que Ulisses reconhece a sua história cantada por outro e, estranhando sua condição de herói grego, assume-se protagonista no palácio de Alcino e narrador de sua própria história. Dessa passagem em diante, Ulisses narra toda a sua viagem e é caracterizado como um narrador tradicional. (HARTOG, 2004)

Será Ulisses um narrador épico? Recorro à expressão da palavra

Erzahler, traduzida por narrador, que traz o verbo erzahlen, narrar, contar de

forma geral e épica em um sentido amplo, entendendo o epos como o relato, em prosa ou versos, dos feitos ou acontecimentos que envolvem um herói ou um povo (GAGNEBIN, 2014).

As aventuras, os desafios, as provações, Ulisses sabe contá-las e recontá-las (o ato de contar histórias40 sempre foi a arte de contá-las novamente)

(BENJAMIN, 1985). Ulisses é o narrador autêntico caracterizado como narrador épico, porque está enraizado em uma longa tradição de memória oral, bem como popular, o que lhe dá a autoridade de contar suas experiências das quais todos os

40 O que Benjamin parece nos dizer é que se faz necessário contar histórias que não se reduzam

ouvintes fazem parte e compartilham da mesma prática cultural e de uma linguagem comum (GAGNEBIN, 2014).

Ulisses lembra a figura do narrador de Walter Benjamin (1985), que, em um dos seus mais belos ensaios, “O Narrador”, trata dos narradores pertencentes a dois grupos: o camponês sedentário e o marinheiro. O primeiro seria o homem que permanece a vida inteira na sua terra e carrega suas tradições e histórias. O segundo, o marinheiro, aquele que viaja e, quando retorna, tem muito a contar dos lugares que conheceu e dos povos com que conviveu. É da segunda família de narrador que Ulisses faz parte, pois tem histórias a partilhar por conta das suas experiências de viagem (tempo no mar e na terra). Ulisses representava uma das famílias do narrador benjaminiano, a figura arcaica do viajante que trazia relatos41

de terras longínquas, imprimindo às histórias contadas as marcas do narrador e agregando-lhes novos significados. Ele assume a figura do narrador no sentido de que “a experiência que passa de pessoa para pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos” (BENJAMIN, 1985, p. 198).

O narrador benjaminiano é um homem que sabe dar conselho. Conselho que só pode ser dado se uma história for dita, expressa em palavras, mas não de forma cansativa e definitiva: ao contrário, com as aflições de uma história que se desenvolve no presente, aberta a possíveis desdobramentos, sucessões diferentes, “conclusões desconhecidas que podem ajudar não só a escolher, mas

41Para Certeau, “os relatos cotidianos contam aquilo que, apesar de tudo, se pode aí fabricar e

fazer. São feituras de espaço”. Porque “[...] se é verdade que existe uma ordem espacial que organiza um conjunto de possibilidades [...] e proibições, [...] o caminhante atualiza algumas delas [...]” (2012, p. 177-178). Ele caminha por frestas nas quais não era esperado, atravessa as ruas em pontos impróprios, faz desvios, toma atalhos... Ao se apropriar e “torcer” a ordem, o passante “[...] as desloca e inventa outras [...]” (2012, p. 178).

mesmo a inventar, na retomada e na transformação por muitos de uma narrativa à primeira vista encerrada na sua solidão” (GAGNEBIN, 2011, p. 63).

Assim, o narrador benjaminiano é aquele que traz a oralidade em seu seio e, ao estabelecer essa relação com a obra Odisseia, também identifico conservarem seus poemas as marcas da oralidade (características dos poemas épicos), passadas de geração a geração pelo narrador tradicional. Flagrei, também, na obra, a imagem de experiência na perspectiva benjaminiana, do herói que sai mais rico em histórias e experiências comunicáveis sendo, por isso, portador de sabedoria.

A obra Invenção do Cotidiano, de Michel De Certeau (2012, p. 144) ao tratar da tradição oral, o autor ficou admirado com Marciel Dettiene (historiador e antropólogo) pela sua maneira de entender o relato:42

recitação com gestos táticos. [...] alguém pergunta: mas o que querem dizer? Então se responde: vou contá-los de novo. Se alguém lhe perguntasse qual era o sentido de uma sonata, Beethoven, segundo se conta, a tocava de novo.

Recitar para Certeau é entrar no jogo com mais elementos para que possam surtir efeitos “outros”, exercitando a

arte de pensar. Quem tem ouvidos para ouvir que ouça! O ouvido apurado sabe discernir no dito aquilo que aí é marcado de diferente pelo ato de dizê-lo aqui e agora, e não se cansa de prestar atenção a essas habilidades astuciosas do contador (CERTEAU, 2012, p. 154).

Nas artes de dizer, Certeau e Benjamin entendem haver uma conexão entre cultura e história e, ao se fundirem, desdobram-se em múltiplos sentidos e

42 Os relatos cotidianos ou literários são nossos transportes coletivos (metaphorai) (Michel De

estão longe de se constituírem como narrativas que apresentam verdades únicas: oferecem, na verdade, possibilidades de “outras” histórias, ou seja,

Não visa mais o paraíso de uma história global. Circular em torno das racionalizações adquiridas. Trabalha nas margens. Deste ponto de vista, se transforma num vagabundo. Numa sociedade devotada à generalização, dotada de poderosos meios centralizadores, ele se dirige para as marcas das grandes regiões exploradas. “Faz um desvio” para a feitiçaria, a loucura, a festa, a literatura popular, o mundo esquecido dos camponeses, a Ocitânia, etc., todas elas zonas silenciosas (CERTEAU, 2012, p. 87).

O relato oral muda, portanto,

a fronteira em ponto de passagem, e o rio em ponte. Narra, com efeito, inversões e deslocamentos: a porta para fechar é justamente aquilo que se abre; o rio, aquilo que dá passagem; a árvore serve de marco para os passos de uma avançada; a paliçada, um conjunto de interstícios por onde escoam os olhares (CERTEAU, 2012, p. 196).

Pelo fato de capturar, na obra, a figura do narrador benjaminiano, acreditei que a Odisseia seria uma fonte inspiradora para os professores narrarem as suas experiências vividas. Procurei, a partir do conceito de memória-articulado nesta pesquisa com a noção de narrativa, a construção de “outras” histórias acerca dos processos formativos.

Por isso, ressalto que, nesse projeto, a rememoração busca a relação com o vivido e as preocupações com o presente, bem como a abertura para as dimensões sensíveis dos seres humanos e o desapossamento dos regimes de “verdade” absoluta. (GALZERANI, 2008a)