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1 DECISÕES PÚBLICAS NO BRASIL: PATRIMONIALISMO E CLIENTELISMO

1.5 O BRASIL DA MODERNIDADE

Cumpre observar que muitas das práticas políticas tradicionais, que configuram as relações entre Estado e sociedade, desde os tempos do Brasil Colônia, são confrontadas pela necessidade de adaptação das políticas públicas à modernidade dos novos tempos. A grande velocidade das transformações econômicas e sociais no País e no mundo, a partir da segunda metade do século passado, suscita discussões sobre o processo de modernização dessas

práticas. O intenso processo de urbanização da população brasileira, a partir da década de 195014, representou um dos grandes desafios enfrentados.

Diante desse processo, BURSZTYN (1999) analisa a persistência de práticas clientelistas, teoricamente associadas às sociedades rurais tradicionais. PEREIRA DE QUEIROZ15 apud BURSTYN (1999, p. 207), lembra que “existe uma linha de continuidade interna de nossa política; ela se evidencia, por exemplo, no aparecimento do novo tipo de coronelismo, o coronelismo urbano” A esse propósito, aquele autor já argumentara que o sistema coronelista assume hoje novos contornos, com a mediação dos favores do Estado passando progressivamente para as mãos de funcionários, que materializam localmente o caráter assistencial e paternalista daquele. Os representantes de oligarquias tradicionais e os chefes políticos locais, que historicamente têm dominado o cenário político nacional, assumem compromissos com a modernidade, aliando-se a novos grupos econômicos (BURSZTYN, 1990).

O referido autor lembra que, após 1930, os sistemas políticos brasileiros respondem à ascensão ao poder central de grupos sociais representativos dos interesses urbanos. Para explicar o fenômeno do coronelismo urbano ele defende a tese das elites camaleônicas. Renunciando às vantagens de sua eventual hegemonia econômica, diversos segmentos das oligarquias brasileiras garantem sua sobrevivência (e a de fenômenos como o coronelismo, o latifúndio improdutivo e as enormes transferências de recursos públicos) via programas governamentais, que sustentam poderosos interesses locais, sem retorno para a sociedade.

A mecânica de execução do Orçamento Geral da União, nos dias atuais, ilustra essas colocações de BURSZTYN (1999). Parcela expressiva das receitas arrecadadas pela União é repassada aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios. Segundo STN (2006), “o rateio da receita proveniente da arrecadação de impostos entre os entes federados representa um mecanismo fundamental para amenizar as desigualdades regionais, na busca incessante de promover o equilíbrio sócio-econômico entre Estados e Municípios”.

14 “O século XX foi caracterizado, no Brasil, por um intenso processo de urbanização iniciado em meados do século e fortalecido a partir de 1960. A parcela de população urbana passou de 31,2% em 1940 para 67,6% em 1980. A mudança de país predominantemente rural para urbano ganhou velocidade no período 1960-1970, quando a relação se inverteu: dos 13.475.472 domicílios recenseados no Brasil em 1960, pouco menos da metade (49%), se situavam nas áreas urbanas; em 1970, quando foram contados 18.086.336 domicílios, esse percentual já chegava a 58%” (IBGE, 2006).

15 PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isabel. Cultura, Sociedade Rural, Sociedade Urbana no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1978.

A título de ilustração, tomam-se os demonstrativos da execução orçamentária referente ao mês de junho de 200616. A arrecadação de tributos federais (Imposto de Renda e Imposto

sobre Produtos Industrializados) nesse período foi de R$ 15,4 bilhões, importando uma receita líquida do Tesouro de R$ 13,8 bilhões. Desse total, R$ 2,6 bilhões foram transferidos aos municípios; R$ 2,7 bilhões aos estados; e R$ 0,4 bilhão para os fundos destinados a investimentos nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, totalizando assim R$ 5,7 bilhões (cerca de 40% das receitas da União).

Essas transferências constituem a principal fonte de recursos para a execução de obras de infra-estrutura pelos Estados e Municípios. Não se trata de financiamento pelo qual se paga, mas sim de investimento público, cujo retorno depende essencialmente da efetividade das condições de viabilidade previstas na fase de planejamento dos empreendimentos.

Cumpre ressaltar que os governos estaduais e municipais, com enormes carências de recursos para investimentos na área social (que concentra boa parte de suas atribuições constitucionais), costumam investir em infra-estrutura apenas os recursos mínimos necessários à sua viabilização. Ou seja, planejam e executam obras prevendo em seus orçamentos anuais apenas a contrapartida mínima (10% a 20%) para pleitear a inclusão dos projetos no OGU – Orçamento Geral da União, fazendo jus a essas transferências.

Porém, o planejamento para a execução das grandes obras públicas, mormente com recursos fiscais (não provenientes de empréstimos internacionais), é pouco eficiente. São relativamente comuns, na mídia, denúncias e notícias de escândalos referentes a obras inacabadas — quase sempre com suspeita ou comprovação de superfaturamento e desvios de recursos de toda a espécie. Investem-se assim vultosos recursos em obras que não se pagam, agravando, por conseguinte, o problema da dívida pública nacional. Esses investimentos em grandes empreendimentos de infra-estrutura podem ser enquadrados nos tais programas governamentais que sustentam poderosos interesses das elites camaleônicas, a que se referia BURSZTYN (1999).

Por outro lado, o crescimento das cidades e das grandes metrópoles, com seus impactos sobre a política (evidentes, por exemplo, em movimentos como o das “diretas já”, que marcou o fim do regime militar, em 1984, ou aquele pelo impeachment do Presidente Collor, em 1992), induziam à hipótese de que o coronelismo estaria com os dias contados (BURSZTYN, 1999). O que se observou, entretanto, após a redemocratização do País, em 1985, é que as

novas formas urbanas de clientelismo, espelhando velhas práticas rurais, têm-se constituído em fator de continuidade e manutenção da ordem política, ainda caracterizada pelo domínio de lideranças e grupos conservadores.

Esse quadro pouco se alterou mesmo com a ascensão ao poder, em 2003, de um partido que têve suas origens nos movimentos sindicais do final do período militar e início da nova república, o PT. Escândalos recentes, como o do “valerioduto”17, em 2005/2006, e o da

“máfia dos sanguessugas”18, em pleno ano eleitoral de 2006, evidenciam a manutenção de

antigas práticas patrimonialistas e clientelistas de captura do Estado, por interesses privados, aliados a grupos políticos dominantes.

Em busca do voto conservador da população empobrecida, sobretudo em regiões menos desenvolvidas, como no interior do Nordeste, lideranças políticas de origens diversas acenam para a sociedade com o salvacionismo de grandes obras públicas, ainda que sua realização dependa de negociações não priorizadas — destacando-se os processos participativos de avaliação de impactos socioambientais exigido, inclusive, pelo arcabouço legal vigente.

Há que se levar em conta que o País, redemocratizado, vive atualmente uma grande penúria de recursos, face às enormes carências em termos de programas sociais e de infra- estrutura. Com isso, investimentos cujo retorno, na prática, é incerto, deixam de ser priorizados pela área econômica do governo, que tem alocado anualmente montantes bastante inferiores aos previstos no OGU para as transferências a estados e municípios, e também para investimentos federais em grandes obras. Os saldos de recursos não alocados, resultantes dessa política, são canalizados para a geração de superávit primário e o pagamento de juros da dívida externa brasileira19, condição essencial à estabilidade da Economia e à credibilidade do

País perante credores e investidores internacionais, em um mundo globalizado.

Não obstante, entre os grupos sociais que representam interesses urbanos, no Brasil moderno, pode-se incluir aquele cujo poderio econômico está diretamente relacionado à realização de grandes obras de infra-estrutura. É notório o fato de o empresariado da

17 Manipulação de recursos de origem não declarada, envolvendo fundos de pensão de grandes empresas estatais, em um caixa dois do PT, beneficiando parlamentares da base de sustentação do Governo Federal, em troca de votos para a aprovação de projetos de lei encaminhados pelo Executivo para a discussão e aprovação do Poder Legislativo.

18 Aprovação pelo Legislativo e liberação pelo Executivo de emendas aos projetos de leis orçamentárias anuais, destinados a compra superfaturada de ambulâncias para municípios indicados, com distribuição sistemática de propinas aos envolvidos, em montantes expressivos.

19 Característica marcante da política econômica inaugurada com Fernando Henrique Cardoso (1995/1998 e 1999/2002) e mantida no governo Lula.

construção pesada no Brasil cortejar tradicionais personalidades da política nacional, como forma de buscar, na empobrecida fonte do orçamento da União, os investimentos que movimentam o setor. Cooptadas, lideranças políticas, muitas das quais herdeiras da tradição oligárquica dos velhos coronéis, apresentam emendas às leis orçamentárias anuais, beneficiando seus estados e municípios20.

Mas não basta assegurar na lei os recursos necessários ao início e continuidade das grandes obras. É preciso trabalhar por sua execução financeira, em razão do que verificam-se muitas das notórias disputas por indicações para cargos públicos no Executivo21. Discutindo a

modernidade conservadora, patrimonialista das práticas políticas brasileiras nos dias atuais, BURSZYN (1999, p. 223) assinala que “quando não são os mesmos fidalgos que encarnam o poder, qualquer que seja sua legenda, este é materializado através de prepostos recrutados na burocracia estatal”.

Tratando da modernidade brasileira, como das sociedades latino-americanas em geral, MARTINS (1999, p. 235) propõe a hipótese de que “a secularização do poder temporal nessas antigas colônias da América Latina constitui uma experiência inacabada”. Ou seja, sem negar as conquistas da sociedade brasileira, plural e democrática, como a conhecemos hoje — conquistas entre as quais podemos incluir uma Política Nacional do Meio Ambiente22 das

mais competentes, em um mundo globalizado —, o autor questiona a força da nossa democracia. Confronta-a com a força da tradição, que teria resistido tenazmente, em todos os tempos, à ordenação do Estado em bases racionais, bem instrumentado, e ao princípio do interesse público e comum como determinante maior, em termos dos objetivos políticos da sociedade.

Raymundo Faoro afirma que

As formações sociais são, para a estrutura patrimonial estamental, pontos de apoio móveis, valorizadas aquelas que mais a sustentam, sobretudo capazes de fornecer-lhe os recursos financeiros para a expansão (FAORO, 1979, p. 739).

20 Uma simples análise dos orçamentos gerais da União, nos últimos anos, mostra que uma parcela expressiva dos projetos referentes a grandes obras de infra-estrutura, para excecução com recursos exclusivamente de origem fiscal, consta dos textos legais aprovados por conta de emendas parlamentares; mormente as de bancada dos estados que, por sua natureza, têm maior peso, constituindo importante moeda de troca nas negociações entre Executivo e Legislativo.

21 Trata-se, aqui, de uma relação entre Executivo e Legislativo freqüentemente referida, na mídia, como “promíscua”. Exemplo recente dessa relação é o que adveio do referido escândalo da “máfia dos sanguessugas” (ver nota de rodapé n.o 17). A negociação das grandes obras públicas no balcão do Estado assegura, por certo, ganhos em uma escala muito maior que a da compra de ambulâncias.

Sob esse ponto de vista, compreende-se a aliança do Estado com setores e grupos de caráter especulativo, lucrativo. Segundo o autor, os interesses estatais predominam, com força para conduzir e deformar a sociedade, condicionando inclusive o funcionamento das constituições, referidas como escritos semânticos ou nominais, sem correspondência com o mundo que regem.

Parece, assim, que não há exagero em MARTINS (1999), quando este afirma que nossa cultura burguesa é marcada pela cooptação e pelo oportunismo; quando se refere aos príncipes modernos, que configuram o Estado em sociedades com tais características; quando conclui que, entre a sociedade e o Estado existe uma espécie de pacto, tendente a excluir a democracia como princípio político.

A não ruptura com o passado e a submissão do capitalismo moderno à lógica oligárquica assegura a sobrevivência desta, com certa representatividade política, capaz de influenciar as políticas governamentais. Assim, se o Brasil, por um lado, possui uma política de Meio Ambiente bem elaborada, privilegiando a gestão socioambiental dos empreendimentos com base em um sistema que tem como princípio a descentralização23, por

outro lado, é impossível negar que prevalece, até os dias atuais, uma considerável hipertrofia do poder central, característica dos processos decisórios referentes ao planejamento e implantação dos grandes empreendimentos de infra-estrutura. A transação entre interesses públicos e privados marca, neste caso, a prática política, mantendo a realidade das grandes obras públicas ainda muito distante do que preconizam, como modo de gestão desejado, a Constituição Federal de 1988 e a Política Nacional do Meio Ambiente.

Ressalta-se que a legislação ambiental brasileira ampliou-se e consolidou-se em nosso País a partir da década de 1980, quando foi formalmente instituída a Política Ambiental, e com a elevação do EIA/RIMA (instrumento básico de implementação da AIA) ao status de instrumento constitucionalmente exigido, em 1988. Entretanto, pesquisando a articulação de interesses no Brasil em vista do processo de formação de políticas, VIANNA (1994) observa que, nas últimas décadas, diversos trabalhos identificam claramente elementos de continuidade que contaminam os processos de mudança. A autora faz referência a pesquisas que “demonstraram exaustivamente a natureza fragmentária do processo decisório e o corporativismo instrumental das elites como forma de garantir a contemplação de seus interesses no projeto de modernização econômica em curso” (VIANNA, 1994, p. 32). No dizer de BURSZTYN (1990, p. 81), “há uma acomodação constante entre mudanças

econômico-sociais e comportamento político das elites, cuja tônica é o continuísmo.” É evidente que o peso crescente da dimensão ambiental, no processo de mudanças que se impõe à res publica, é igualmente contraposto por essa capacidade de acomodação.